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terça-feira, abril 28, 2015

Tempo antigo

Os camponeses da China
não dominam seu destino
Os camponeses da China
não usam a tinta antiga, não cantam as canções
que falam dos campos de arroz
cansados
Os camponeses da China
são invasores de seu próprio país
Os camponeses da China
podem dormir ao relento
porque não têm linguagem que os defenda
e moram na outra cidade
o gueto e nem seus pensamentos são livres
Ninguém ouve esses camponeses
Os camponeses da China
impõe respeito, batem
em suas mulheres, querem demonstrar autoridade
porque aprenderam a lei do cão
Um dia - parece - eles queimarão os castelos e espancarão os filhos dos nobres
o imperador pensa que o livro não é para os camponeses
quem limparia o chão por três moedas de cobre?
os camponeses da China, quando sol desce
no horizonte nem dourado, nem violeta, limpando
o suor, admiram o palácio
mas para o palácio
eles não são mais
que camponeses da China

Afonso Lima

Azul

As sereias eram os únicos pássaros que não cantavam. Um poeta chamara seu silêncio de "a mais terrível música". Depois disso, os marinheiros tapavam os ouvidos. As lendas diziam que tocavam flautas, chamavam os mortos e previam o futuro, e alguns se atiravam ao mar. Elas mesmas passaram a duvidar o que eram. Muitas voavam contra as rochas. Ulisses não ouviu nada e entendeu, mas não havia mais nada que pudesse ser feito.

Afonso Lima

A confissão


O Minotauro queria apenas ficar no jardinzinho no centro do labirinto com seus livros. Os camponeses de Creta que dançavam e bebiam nas festas de Minos não sabiam o ditador cruel que ele era. Ele fazia parte das coisas que precisavam ficar escondidas. Seu destino o obrigava a fritar coraçõezinhos de jovens atenienses, ninguém era mais vigiado que ele. Talvez ele fosse o centro da roda terrível, os miseráveis que comiam pouco procuravam a culpa do seu castigo. O Minotauro tocava sua lira triste. Cansara-se de confessar. Teve uma ideia: teceu com os cabelos dos mortos longa linha e fez com que a criada da rainha - que, piedosa, há anos nutria seu filho com vinho e novidades literárias - levasse o carretel até o quarto da princesa Ariadne. O Minotauro passeou pelo labirinto com nostalgia. Logo sua cabeça estaria numa parede do palácio de Atenas. Seria afinal apenas para si mesmo. 

Afonso Lima

segunda-feira, abril 27, 2015

XIV

Ele chegou no escritório atrasado, XIV estava preparando as notícias do dia seguinte. Ele contou que teve uma noite estranha. Acordou em sua cama e não podia se mover. Através da parede, viu sua filha vomitando no banheiro. Numa rua dançavam muitas pessoas, drogas, homens beijavam meninas de doze anos sem rosto, uma mãe procurava sua filha desesperada. De repente um deles vira para XIV e diz: "Sou nobre, ganhei essa medalha na guerra contra os índios". Uma menina enrolada num cobertor cinzento mendiga com um bebê no colo. Onde está seu pai, pergunta XIV, ela mostra um cadáver de um homem negro, como um fruto pendurado nas árvores. Um padre ao seu lado diz: "Eu vim pedir ao senhor para deixar enterrá-lo". Na rua onde dançavam, agora se via carros queimados, ataques à lojas, confrontos. Só então percebe que no outro quarto, sua filha, que vomitava depois do jantar, desmaiara. Não pode se mover. XIV percebe um nativo escondido atrás da porta e acorda. XIV comenta que foram chamados para pensar a pauta da próxima semana, querem inserir subtextos, um grupo terrorista ou vingador solitário andara cometendo crimes contra policiais na periferia. Ele chegou no escritório atrasado porque não dormira bem, descobrira que andara pela casa procurando alguma coisa nas gavetas. Achara ao lado de sua cama um tênis sujo de sangue.  

Afonso Lima

domingo, abril 26, 2015

Sabedoria

ema ema ema
odeio um sistema
lua lua lua
não se escapa do tempo
por existir
é poema
excomungado pelo passado
fichário planta pássaro
tudo é sagrado
eu celebro do ramo escuro ao céu cinzento
água que tudo renova
vulgaridade é pensar pouco
desprezar o que não cabe
o que mais não significa: pornografia
sem riso, sem rir da ilusão
relógio universal, escritório-eu
o que seria desse sem outro
bobo melancólico, jogando a pergunta no mundo
eu: mutações de uma história com outra história
transformar absoluto
pensativo fantasma segue em frente
lua noite e serpente
só fica o que muda

Afonso Lima

domingo, abril 19, 2015

Casas

São dois tipos de casa. Não é que não doa o coração. Mas tudo bem, tudo tem - um dia, eles serão alguém.
Vê-los comer com a mão.  É assim, ai de mim, se sente - por esses que dormem no colchão.
Se o pássaro não tem ninho. Se a mão do destino - mata na cidade grande. Eu sigo adiante, casa é onde se sente.
Desde sempre, em todo mundo, tudo bem. Não é que não doa o coração, eles não são propriamente, esses que moram no colchão, gente.

Afonso Lima

sábado, abril 04, 2015

Entrevista - trecho do livro "Canções para Dias Difíceis"


- Tudo bem?
- Boa pergunta.
- (rindo) Um estilo punk?
- Punk zen. (risos)
- Vamos começar pelos seus livros queridos.
- Sim. Um deles tinha capa verde, lembro bem, enorme, capa dura.
- Verde como?
- Acho que as coisas mais importantes a dizer sobre os velhos livros... É sobre o prazer intenso, sobre a transformação que provocam. Em certo momento, talvez os escritores perceberam que tudo era unificador, universalizante, eram os sistemas científicos positivistas, o poder absoluto dos reis e depois das corporações, etc. Proust para mim pode ser o surgimento do particular, e, ao mesmo tempo, do fluxo. Esse projeto moderno imagina também o que agora o por que agora: o que pode ser literatura quando tudo tem uma utilidade, quando a linguagem se empobreceu e estagnou... Os Shakespeare, velhos, vermelhos, me mostraram a deliciosa terra da imaginação. Os russos, amarronzados, lembrando uma tradição secular, mostravam um mundo injusto, um sentido ético, uma consciência sobre os sentimentos e hábitos, que é o que nos falta. Só Clarice era luz pura, puro enraizar-se, pura terra úmida, delicada retirada da pele, novinha em folha. Woolf... não lembro. Talvez porque eu seja Woolf.
- Algumas pessoas acham pedante falar desses livros hoje.
- É porque nossa elite se fechou sobre si mesma. O projeto de que nada será de graça, de que vencem as raças superiores, de que aqueles que não tem transporte, nem saúde, nem habitação, merecem isso porque seu trabalho não têm mesmo valor... esse projeto é contrário ao literário, para quem a moça nordestina com olhar perdido, uma flor, uma rua, tudo é parte de uma sinfonia brilhante e fala. Para excluir constantemente os "diferentes" precisamos de uma polícia forte e de pessoas sem identidade, sem reflexão.
Na adolescência, a biblioteca de sua casa tinha o quê?
- Eu não li muito. Minha mãe trabalhou como funcionária pública, bem na era em que tudo que é público é visto como "obstáculo à competição". O que é competitivo é sempre estrangeiro e não importa se as pessoas ficarão sem emprego, como no Iraque. Mas, retomando... Havia 100 mil livros na biblioteca do banco federal. Depois, para evitar gastos, foi fechada. Adorava caminhar pelos livros e a madeira antiga. Eu, no fundo, era um adolescente solitário, sem muitos amigos de verdade, só que tive oportunidade de mergulhar em oceanos anteriores à tudo, conversar com esses fantasmas sinceros.
- Ainda hoje?
- Você sabe como é São Paulo. É preciso dizer não. De repente você está numa multidão, cercado de prédios decadentes, ou caminhar até o centro num domingo parece passar por um campo de refugiados. Minha imagem de mim mesmo é caminhando, cruzando a cidade, um parque, um campo. E, lutar muito para criar o mapa, com o recolhimento.
- Mas quais...
Acho que disse isso em outro lugar. Grandes, clássicos, fortes. Se ficamos apenas no jogo exterior, no corpo, nas ações de comer e pegar comida, algo se desfaz. Por que será que, de tempos em tempos, os gregos tinham que por uma máscara, sair das regras sociais, falar com a voz dos outros, acreditar que eram transpassados por vozes e energias do cosmos? A transformação revitaliza a sociedade. Muda as formas de pensar. O mais importante foi a imensa luz na torre, Sodoma, Ana Karenina, o crime da machadinha... Não muito mais. Pelo menos nesse intervalo entre ser reprovado no vestibular e tentar de novo. Mas voltando ao início... Lembro que eu tinha quatorze, estava num hotel perto de uma famosa cascata em Gramado com minha avó. Eu estava lendo a República, minha avó achava que eu era estranho.
- A avó que você diz "aristocrática", fazendeira?
- Digamos que sim. Para mim, era o lar, o cheiro de bolo (era doceira), tinha medo. Herdeira. Da alma melancólica e pesada, digna, altiva. Quando, adolescente, fui para Berlim... Berlim nessa época ainda não era vista como um centro internacional de cultura ou cidade verde, eu, pelo menos tinha a sensação de uma cidade em reflexão, tentando entender o que significava a queda do muro, mesmo um tempo depois. Descobri minha avó um pouco por lá. Estava no Aquarium e encontrei uma senhora parecida com ela. O mesmo coração. Era uma serenidade, uma máscara, mas perfeitamente funcional no mundo. Ouvi na igreja Kaiser-Wilhelm um Monteverdi e lembrei dela também. Eu sou muito mais esparramado, desatento, preguiçoso, mesmo ler precisa do dia certo, em que o sangue dorme, sou pedra e lama; sua ordem e disciplina, luz e força, carinho frio, um oposto complementar. Ela entrou em depressão quando minha tia – uma amidade de quarenta anos – quando ela morreu, anos depois. Sentada em um banco comigo aguardando o corpo, pela primeira vez deixou rachar a superfície: merda de vida, disse. São as pessoas que me conheceram de verdade.
- Pesado, heim?
- É a vida e tudo que fazemos dela. "Ela virou escrita", como disse alguém.
- E no entanto, você sempre reagiu a...
- Gosto da visão grega antiga, onde tudo era mudança. A identidade era importante no século XVIII para fugir da soberania do rei; para que serve uma identidade hoje?
- E o teatro...
- Isso é o que Shakespeare pode fazer a uma pessoa. Quando você lê um texto, não vai julgar como julga no mundo real: não podemos aceitar tudo, mas no texto, sim, e os personagens mais demoníacos são aqueles de quem mais gostamos. Escrevo teatro desde os quinze anos, talvez não seja bom, mas escrevo. Quando cheguei em São Paulo... pareceu-me que tudo é muito realista. Realismo quebrado, mas realista. Eu fui indo para coisas narrativas em 2007, depois estados da mente, foi natural, coisas que eu li, mapas da mente. As pessoas diziam... nada agradava ...que não tinha conflito, não entendiam o lugar, o enredo. Não gostavam, pensava, será que eu perdi a relevância, a varinha de condão? Terrível. Mas depois, percebi que nada tinha a ver comigo.
- Essa é uma autoficção autobiográfica?
- Sim, mas verdadeira.
- Eu li uma crônica sua na qual contava sobre um mago que conheceu na Inglaterra...
- É verdade. Nos conhecemos um uma festa. Ele usava dreads vermelhos, mas já tinha seus 50 anos. Uma capa de couro preto. Ele mal me viu e falou que eu deveria ser astrólogo, dançarino, pintor ou colecionador de antiguidades. Eu poderia mesmo ser qualquer dessas coisas. Como eu conto no texto, atravessamos a cidade em meio a fog, ele falando das mulheres que conquistou e conquistando algumas. Era culto e herdeiro de uma indústria. Ele disse: "Você tem o pensamento cósmico. Parece ter viajado o mundo". Fiquei com isso na cabeça. Nunca tive propriamente a sensação de saber perfeitamente para onde estava indo.
- Seu trabalho já foi dito experimental e, paradoxalmente, classicista e parnasiano. Como vê isso?
- Eu andei namorando Borges, mas estaos na era do clichê, "o que ninguém é é obrigado". Não tenho, nem deveria ter opinião à respeito. Muito ocorreu no século XX, um arcaico que era o contemporâneo. Dizem também que quando Leminski mostrou pela primeira vez seu livro Catatau para os amigos eles disseram: você é um bandido que sabe latim. Eu não sei, mas acho a frase ótima. Veja, se você não tem dinheiro de berço, acaba sendo um observador, luta por palavras estranhas, imcômodos, e tem que achar seu jeito de ser, para não ser levado pelas modas. É o mundo do estado de emergência, calamidade pública, como se disse. É a tensão brasileira em ser totalmente marginal e rebelde e lutar por uma herança que é e não é nossa.
- Vamos falar do conto "Parmênides", onde você fala de psicologia arquetípica.
- Brinco, melhor dizer que eu brinco com. Da modernidade, herdamos uma proposta estética que é "criar as regras pelas quais se cria", ou seja, toda proposta é uma proposta de possiilidade da linguagem, juntar de forma nova as velhas palavras revelando o olho que olha. A teoria de Hillman é provavelmente fantástica e séria, mas pra mim sempre teve um sentido de materializar e racionalizar o movimento junguiano de questionar o positivismo. Não sei se Jung estava certo, mas tem coisas incríveis no fato de você arriscar um salto na metafísica. O que será a realidade? É preciso continuar buscando.
Por que escrever? Por que a arte?
Será que é porque é a única coisa que não tem definição? A humanidade está morrendo por falta de aparelho de pensar, de papa para pensar, de pensamentos de igualdade, e por causa de mecanismos econômicos que podem mesmo acabar com a natureza. Sabe, talvez o mergulho numa outra consciência ajude na tolerância para diálogo: a incapacidade de entender outra lógica, a autocomplacência com nossa suposta superioridade, nosso discurso organizador, pode levar ajudar até no que pode ser a lei maior do capitalismo doente, o darwinismo social, a competição histérica e a exclusão do "fraco": a guerra para abrir mercados pode vir de um sentimento: Eles eram uma raça inferior, Eles não entendem a democracia, Eles gostam de empresas públicas ineficientes e corruptas, Eles tinham medo que suas empresas fracassassem diante da competição estrangeira, Vencem os melhores é uma lei biológica.
- Mas isso não seria do campo da filosofia? Você já foi acusado de ser filosófico demais.
- A escrita nada tem de pessoal. Ele, esse sujeito autor, pode ler sobre filosofia do Renascimento e depois passar meses sem vontade de nada, ou lendo romances policiais e vendo filmes. Por isso o trabalho da criação não deve ser visto do ponto de vista comercial, como tudo hoje em dia. A vida de um artista não segue aquela linha comum, um crescendo em direção à carros, viagens e casa, mas pode parecer ociosa até que um texto resume e significa tudo. Não é comum, mas devia ser, talvez, fazer a biografia dos livros lidos, onde se viveu de verdade. Vivemos uma época de empobrecimento extremo do pensar, a ponto de ter de reensinar a ler, pensar freia, e pegamos a primeira coisa que propõe uma lógica, aceitamos os fundamentalismos midiáticos e religiosos sem confronto. Chego a pensar que deveríamos afastar com rigor tudo que nos afasta de uma construção subjetiva - porque é a única riqueza perene, a raiz profunda.
(...)

Afonso Jr. Ferreira de Lima