Páginas

Ajude a manter esse blog

sexta-feira, setembro 29, 2017

o invisível/ the invisible

o galho desce

a mecânica do voo

balanço livre

desequilíbrio

o rio não corre

fere (primavera das sombras)

meu nariz


não há um vento lá fora

o que em mim continua

colhendo vozes

suspenso

o verde

o cisne nobre na água escura

a calçada em pedaços



o som do galho

subir, descer

as pétalas no chão

sou pós-morte

vozes e objetos eu visito


Afonso Jr Lima



the invisible -

the branch descends

the mechanics of the flight

free swing

imbalance

the river does not run

it hurts (spring from the shadows)

my nose


there is not a wind out there

What in me continues

picking up voices

suspended

the green

the noble swan in dark water

the sidewalk in pieces



the sound of the branch

up, down

the petals on the floor

I'm after death

voices and objects I visit



Afonso Jr Lima


segunda-feira, setembro 25, 2017

No útero

- Pelo formato da cabeça, posso dizer que será uma pessoa mais delicada, introvertida, mais ligada ao social que ao mecânico.
- Ah, doutor, e quanto às mãos...
- As mãos indicam que será meio ano ativo sexualmente, meio ano desligado disso.
- E quanto...
- O pênis diz de uma inteligência média, mas os testículos indicam boa habilidade de linguagem.
- O senhor sabe que, quando fizeram a ecografia de minha irmã, ela foi considerada entre inumana e não classificável. Depois se mostrou que ela era limítrofe, pertencia ao gênero max, e, sexualmente, ela varia entre três espécies de matriz. Penso se essa classificação não é apenas para termos uma identidade à serviço de alguma coisa...
- Bem, com esse movimento dos pés e do coração, perfeitamente normal, seu bebê será humano. Depois de testarmos o sangue, saberemos se será max, homi, fema, dron ou clone.
- Eu já lhe comentei... sobre o manuscrito de uma tradução... que meu avô... ele fala de uma ciência em que as leis são apenas as exceções que ocorrem mais frequentemente...
- Deve ser anterior ao Estatuto.
- Queria um teste sobre a propensão ao suicídio. Me faltam palavras... Eu... Penso, às vezes, se nossa sociedade gera cada dia mais pessoas que desejam morrer. Parece que a dor existe como natureza de nossa sociedade. Se for o caso, fazei recolocação neural...
- Sim, assim que pudermos analisar o muco teremos uma posição.
- Às vezes penso se devia ter assinado o Estatuto da Clareza. O fato de não colaborarmos com pensamentos inquietantes não estaria gerando mais angústia...

Afonso Junior Ferreira de Lima

sexta-feira, setembro 22, 2017

"Nuremberg", de Santiago Sanguinetti

A peça Nuremberg, do dramaturgo uruguaio Santiago Sanguinetti, é uma obra no momento certo.
Lindamente dirigida por César Maier, com ótima atuação de Osmar Pereira.
Reflete o repertório do diretor, a capacidade de lidar com textos elípticos e transições rápidas.
O ator tem o desafio de apresentar diversos tons de um neonazista, enquanto tentamos viver na sua pele.
Estamos vivendo uma era em que há confusão entre o fato e o representado.
Uma tela sobre zoofilia é um incentivo à sua prática.
Um filme sobre pedofilia é apologia.
E falar sobre a violência também seria um incentivo.
Essa moral superficial parte do pressuposto de que não temos em nós esse lado escuro. E que ele não acha as melhores justificativas para excluir, julgar, ferir.
O que significa termos um espaço onde podemos treinar ser humano?
Onde podemos observar, temer, refletir?
Além disso estamos vendo as conseqüências de termos uma classe média que sempre viveu como se não existisse 80% da população na pobreza. Como se a pobreza não fosse um problema. Como se a corrupção fosse o maior prolema do Brasil - o combate usado politicamente, uma lei de vale tudo, fora de proporção e de lugar. Como se a Amazônia flutuasse no espaço e não dependesse de um governo progressista - que acaba favorecendo também trabalhadores, indústria nacional e distribuição de renda. Como se as famílias pudessem florescer num ambiente tóxico.
O ódio nasce dessa paralisação, desse isolamento, e até dessa discussão dos direitos humanos na bolha vanguardista (na ausência do poder institucional), que, ao chegar ao público, cria um discurso de "isso me ofende", "pra que mudar"?
Os pobres de direita são reflexo também desse abandono promovido pelo capitalismo-catástrofe que reduz investimento público e pensa apenas em como criar leis que possibilitem mais lucro e menor salário. Como poderiam entender seus problemas se a educação é rompida para que se evite apontar o dedo para quem está pagando pouco imposto e gerando cidades segregadas (bairros floridos e bairros degradados)?
Gosto muito da iluminação da peça.
O diretor ouve o texto e lhe dá várias cores.
O ator também usou de técnica para falar alto sem irritar nossos ouvidos.
O tom sombrio da peça nos lembra que Nuremberg não está distante.
Que nossa classe média está cheia de herdeiros que receberam o medo do comunismo na veia e têm preguiça de pesquisar o que é verdade.
Que todo estudante de economia pode chegar a posições fundamentalistas apenas porque desconhece o todo.
Enfim, uma escolha que mostra a independência de espírito e a reflexão sobre o agora dos artistas envolvidos, que nos alertam para um perigo real.

Afonso Jr. Lima



quarta-feira, setembro 13, 2017

A quietude, montanha

Quando eu quis saber o que estava além do mundo das aparências
Deixei correr rio abaixo todos os valores da minha geração
A afirmação de uma coisa tão tênue como o eu dissolveu-se
Quando fui planta e conversei com os insetos
A ganância, a superioridade intelectual, o brilho que ofusca
Seu realismo é para mim hábito e valores podres

Meu sorriso agora procura as rachaduras na verdade mais sedimentada
As mãos que preparam o alimento, a luz do dia que começa
Uma canção cantada distraidamente, o primeiro olhar de uma paixão
O silêncio de uma lápide de cem anos
Aquilo que é opaco, que foge, que diz que ainda não
Caminho por entre galhos, por entre árvores, como fogo e ar

Observo a cidade distante, o vapor cinzento, logo virá a tempestade
Não reconheço nos heróis do meu tempo a beleza que se atribuem
O verdadeiro, o essencial
Sedução outra, meu corpo no espaço e no tempo
Não o pensar como controle
Cada ser da terra importa
A doutrina do abandono desmorona

Alegria que tudo transforma
A fonte brota, a terra úmida
A generosidade dos corpos
Minha chama é mais que uma guerra pequena

Não serei aquilo que não sou
Tudo que é estranho deve viver e regenerar
Sigo meu caminho vazio
Deixei o poder e acolho meus irmãos

Afonso Jr. Ferreira de Lima




segunda-feira, setembro 11, 2017

O corpus

Algumas obras não foram escritas por ninguém ou o foram por todo mundo, como a Ilíada ou a Odisseia (acho que roubei essa ideia de alguém e agradeceria se achassem o culpado).
Temos de lidar com a realidade de que o corpus afonsino se esparramou de tal modo - alguns creem que existem bots que criam histórias e as reproduzem nas línguas do mundo, da Indonésia ao Uruguai - digo, de tal modo que toda a obra é apócrifa.
Histórias de 140 caracteres, plataformas para obras autopublicadas, arquivos publicados em sites de compartilhamentos, livros impressos...
Alguns acham que os textos são na verdade o ocultamento de um coletivo secreto:

Jogos
Urgentes (de)
Novos
Investigadores
Ostencivamente
Rebeldes

Foram escritas teses sobre como seu modo de operação criticaria a indústria cultural do livro (que dificulta a publicação para o autor e o contato com o leitor, pelo preço), como refletiria um posicionamento sobre o abandono do regime da verdade pelo regime da linguagem, já que o próprio selo da autoria se tornara um shakespeariano poeta sem rosto, como isso teria relação com um mundo imaginário platônico em que a vida é a própria obra e a comunicação pela obra.

Entretanto, não há dúvida de que existiu um original.
É o que se sabe por um email descoberto pela BBC.

"Encontro um conto de 1995, da oficina de C.
Eu queria muito fazer essa oficina, mas não tínhamos dinheiro.
Rezei muito para que nosso pai desse.
Milagrosamente, ele deu o dinheiro.
O C. é um bruto e disse logo que escritor só depois dos
30 (e Rimbaud com 17?)"

Alguns compararam seu caso com o de Sándor Márai, que no auge da fama foi proibido e seus textos ficaram em suspenso até que ele desapareceu.
Outros dizem que essa situação reflete a própria literatura, na qual nada de fato acontece, mas a percepção é de que algo aconteceu. Seria uma reflexão sobre o modo pós-kantiano de verdade com sua incerteza intrínseca?
Os critérios para verificação - testemunhos, dois autores citando a validade, complexos métodos de contagem de palavras - se mostraram impraticáveis. Por que esses textos ficaram de preferência no mundo virtual, nunca buscaram com afinco o monumento do papel? Por que tantos estilos, gêneros e temas?
O fato dessa vasta Mirabilia de textos serem assinados com seu nome, ou seus nomes, já foi visto também como um comentário sobre um mundo de informação fechada, um mundo paralelo em que todos os discursos combinam, mas não são relevantes ou não afetam o sistema.
Não admira que um desses textos assinados como AJR se chame "Pessoas muito burras".
Eu também não descarto de todo a tese de que as empresas que vemos vendendo livros em livrarias de aeroportos, cafés em shoppings ou mesmo comida vegana com o nome JR sejam parte desse trust.
Oscar Wilde teria dito que corpus como os que incluem Quixote e Hamlet estão no sub-texto de qualquer palavra escrita.
Não poderíamos ainda avaliar a qualidade média desses textos (não antes de elaboradas IAs capazes de conferir dados em escala), mas já podemos dizer que o corpus afonsino lançou uma irônica afirmação da literatura enquanto desaparição.
Ou pelo menos, é o que parece.

Afonso Jr. Ferreira de Lima

domingo, setembro 10, 2017

Notas sobre a catástrofe

*
A polícia secreta tinha infiltrados em todos os grupos, nos bares, nas conferências, nos cafés, nas leituras em voz alta e em reuniões que organizavam greves.

F.
Ele deseja simular a captura por inimigos.
Ele os conduzia para serem fuzilados.
F. viu o amigo perder a coragem e parecer querer falar.
Ele matou o aliado. Abriu seu peito e retirou o coração.
F. ficou anos em silencio no hospital.

*
Os meninos uniformizados, com suas caras tristes, assistiam os homens serem levados ao cadafalso. Dizia-se que eram camponeses que haviam fugido dos donos de terra. Eram "homens de segunda classe". Até o magnata do petróleo da região dissera: "Existem comerciantes ricos que ainda são legalmente propriedade de alguém". Outros diziam: "A ferrovia convive com a escravidão", "O avô de Tchékhov era servo", "Eles nos livraram de Napoleão, mas ainda vivem na era das trevas". Os bancos foram chutados pelo carrasco. 

A.
As duas irmãs o ajudaram desde a juventude.
A. se casou com o assistente polonês de seu irmão, que conheceu em uma viagem.
Ele foi condecorado na polícia secreta.
Foi preso e fuzilado.
policial secreto
A. escreveu suas memórias e foi presa.
A. enlouquece.

*
Os soldados subiram a avenida contra os manifestantes com seus chicotes, que podiam matar, e a polícia com seus sabres desembainhados. O sangue nas ruas e a bandeira "Abaixo a tirania" caída na lama.

K.
Ela publicou suas memórias.
Ela e marido foram presos em 1937.
Ele foi fuzilado, ela foi solta.
Muitos exemplares foram destruídos.
Nos arquivos privados das famílias, constrangedoras verdades.

*
Pode-se ler na faixa: "Pai, olha por nós".
Marcham em direção ao Palácio, querem reforma agrária, liberdade religiosa, extinção da censura, maior participação no governo. O exército dispara.

N.
Houve a guerra aos camponeses.
Ela não suportava os flertes marido.
Ela queria ter uma carreira, mesmo com filhos.
Ela sempre fora boa com suas ex-mulheres, mulheres abandonadas.
Ela tirou sua própria vida.
Várias belas mulheres foram fuziladas.

*
"Meu pai nada dá para nós, ele me pune por eu querer estudar. Minha mãe, que cuida de mim, vive situação deplorável, imploro-vos de joelhos que me ajudeis".
Casa velha, pequena, suja. Os quartos eram miseráveis. Ar mofado, o telhado deixava entrar chuva e vento.

*
Um filho de sapateiro em 1878 de uma região invadida pelo império russo. No seminário, escondendo a vela embaixo da cama ou do cobertor, paixão por Zola. Aos 23 anos, preparou uma lista de 300 livros para seu círculo de amigos. Leu Schiller, Maupassant, Balzac e Thackeray. Platão conheceu no original grego, adorava Gógol, Saltivok e Tchékhov. Escreveu muito no exemplar de "Os Demônios", e dizia que Victor Hugo mudara sua vida.

L.
A guerra civil acabou. Ele está na secretaria geral.
Ele queria centralização, coordenar o programa de industrialização, cinco anos depois da abdicação.
Houve reação contra a República Federativa.
L. tenta negociar o apoio dos rebeldes que preferem a independência.
Ele foi vaiado na assembléia dos trabalhadores quando pediu a eliminação do nacionalismo.
 “Ele é demasiado bruto, é necessária sua remoção da secretaria geral".
O testamento jamais será lido no Congresso do Partido.

Afonso Junior Lima

quinta-feira, setembro 07, 2017

"Império do Mal"

O primeiro corpo foi o de uma moça jovem, magra e de celular novo. No seu pulso, uma tatuagem.
Depois apareceram atletas, entregadores de água, taxistas.
Momai foi chamado no terceiro.
Ele foi procurar o professor aposentado H. Salgari.
- Eu já vi essa tatuagem. Em uma foto num livro. Um assassino escreveu na parede "Destruindo o Império do Mal". Essa é uma expressão que o senhor usou, não?
Salgari parecia assustado.
- O senhor sabe o que eu fiz durante a década de 1970? Trabalhei para o governo. Eu impedia que o desejo de poder se tornasse uma coisa romântica na história dos revolucionários, a "Oligarquia dos Selvagens", como a chamávamos. Não foi um acaso o Filho ser um homicida, o Pai era um sanguinário. Ou o senhor acha mesmo que uma ditadura utópica podia viver sem degringolar em campo de concentração?
Ele olhou pela janela.
- O senhor já deve ter visto Sindicato dos Ladrões. O senhor sabe que Elia Kazan foi acusado de ter feito um filme sobre denunciar seus amigos... para livrar sua cara sobre suas delações voluntárias de colegas ao Comitê de Atividades Antiamericanas?
- Parece-me que o senhor quer me dizer algo. Eu suspeito que esses homens foram mortos por alguma coisa não-humana. Mas, e o símbolo?
Salgari pegou na mão uma medalha na estante.
- "Kasan Dedo-duro", virou seu nome. Eu lutei contra o mal. Mas eu assisti a coisas monstruosas também do nosso lado. Eu vi coisas assustadoras. Mas não posso falar sobre isso.
- O senhor precisa dizer a verdade - disse o detetive. Até onde iriam com isso? Seria preciso ainda outro encontro? Quem mais podia falar?
- Muitas vezes pensei se... a fúria do Exterminador não nasceu no rio gelado de -20 graus no qual pescava esturjões e foi pego por uma tempestade. Os detetives que o prenderam não imaginaram estar semeando um Império Sangrento.
O visitante agradeceu. Quando abriu a porta, o professor disse.
- É isso mesmo. Nos laboratórios da democracia, pessoas foram testadas. Pessoas que não puderam se adaptar, pessoas miseráveis.
Momai foi caminhar no parque, pensando sobre grupos secretos, DNA modificado e seres que comem pessoas.

Afonso Jr. ferreira de Lima

domingo, setembro 03, 2017

O fatalista

Existe a lenda de que os mortos podem saber o futuro. Não é meu caso.
M. L. 
Seu conto "O fatalista" é para mim uma pedra magna na caixa de tesouros desse rico povo. Nessa história, lê-se: "Discutia-se a respeito da crença muçulmana de que o destino do homem está inscrito nos céus". 
Eu havia debatido isso mesmo com ele num inverno terrível no Cáucaso. O lugar das batalhas. Creio que eu mesmo nunca derramaria tanto sangue como o que foi derramado no extermínio das tribos circassianas. 
Montanhas, rebanhos, um sabre marcado na pedra em algum túmulo, essa era a paisagem. Seu amigo revolucionário acabara de ser batido num duelo suspeito. 
O jovem oficial, que fervia de ideias, ouviu-me contar sobre Polidoro, "o que traz muitos dons", filho mais novo de Príamo, que o rei mandara levar para longe do campo de batalha, enviando-o com grande número de riquezas para o seu tio, Polinestor, "o que arquiteta muitos planos". O tio, depois da queda de Tróia, resolveu matá-lo para roubar o tesouro de Príamo.
Mas os deuses tiveram pena dele e, estando o cruel soberano na beira do mar, viu retornar a seus pés o corpo já apodrecido. Quando aproximou-se, seus olhos se abriram e o cadáver lhe disse: "Sua sorte está escrita". O rei caiu morto ali mesmo. Os gregos tinham na predestinação o pilar da vida, sempre trágica, talvez porque a sorte de um aristocrata era perecer na guerra. Mas, que sei eu do coração dos homens? Talvez sonhem com a morte.  
O meu amigo poeta era um corajoso crítico do czar, de Hegel e de Byron, tudo que sua geração amava. Já viu longe, os demônios além da bruma do sentimentalismo. Seu tempo era morto, um feto que nunca via a luz, apenas eu iria morrer pra ver seu futuro. 
Seu personagem, o misterioso tenente alto e de olhos negros, ouve uma premonição sinistra do narrador e logo depois é morto numa rua escura. Mas o próprio M. L., que escapara de um duelo com um francês, viria a perecer logo depois talvez por ordem do czar. Seu amigo tinha um conto chamado "O tiro da pistola", que usava como epígrafe o verso: "Nós nos duelamos". 
Meu jovem poeta, que chegara em S., decide mudar-se subitamente para P. - diz a um conhecido que sente ter pouca vida pela frente. Ele ri nos salões do seu colega com longa espada e maneiras de herói romântico. Até ser desafiado. Talvez fosse uma espécie de pressentimento. Dizem que os loucos correm para o castigo quando não enxergam saída. 
Eu sempre ficara em dúvida se, no seu conto, havia uma intenção sombria quando o tenente, que podia passar indistinto na escuridão, chama a atenção do assassino desvairado ao fazer-lhe uma pergunta. Da mesma forma, um homem que perdera o grande amigo, que podia ter morrido em 1840 - e só não morreu porque o francês errara o tiro - e vai bater-se com um colega um ano depois para deixar esse mundo aos 27 anos, me pareceu sempre suspeito. 
Como diria o morto: "Sua sorte está escrita".

Afonso Jr. Ferreira de Lima



Círculo vazio

Muitas vezes me pego pensando como poderíamos nós, filhos do prosaico, heróis de aventuras mínimas, escrever algo tão ordenado, idealista ou profundo como uma narrativa russa. Nós, que vamos lutar na padaria, comemos no restaurante da esquina, subimos e descemos de vagões comprados com sobrepreço. Sem o peso de histórias épicas ou mesmo sem tempo de ordenar em grandes estruturas delicadas o fluxo de minutos-resposta. Será que temos um novo gênero, a roda dos dias ainda não explicados, a natureza-morta viva?
Penso em como circular em torno do vazio, e o que me vem sempre é o mais simples dos temas, por exemplo, o cão que agora late em plena avenida do século XXI.
Eu e meus vizinhos, por exemplo. A sintonia que se cria nesses sons mudos, sem a capa da razão e do diálogo. Mudaram-se há pouco, três deles.
Não ouço mais o violão da frente à meia-noite.
Nem os amigos de sexta do apartamento abaixo.
A criança que chora, a musica pop do domingo no pátio também partiram com a família do primeiro andar.
A música dos vizinhos e suas rotinas ficam mais claras quando existe apenas silêncio e escuridão.
A menina ensinava seu irmãozinho a falar.
O casal de namorados brigava. Compraram uma TV nova, assisto junto vários filmes.
A moça bonita diz ao seu namorado que estava gostando com gemidos indubitáveis. (Mas ela se foi).
Nada disso tem o peso da morte, o questionamento sobre o destino, a culpa de um crime já realizado ou nunca nascido, o peso da metafísica ou da crise.
Mas emana desse amontoado de objetos já sem utilidade uma poesia leve e dura como a alma de um robô. Porque de alguma forma devem ter algo as pedras, as folhas marrons e a antena de uma formiga, mesmo que seja um alma mais lisa e austera que a de um cristão.
Uma vez, na universidade, disse meu professor:
- Diferente do mundo para nós, ao poeta, as coisas mínimas são estranhas.
Eu pensei logo: todas as coisas são estranhas.
Muitas vezes podem essas vozes soarem juntas. Eu vejo no computador um filme e a vizinha fala sobre o livro que lhe deu origem. Eu leio um livro sobre Cuba e a música de domingo é de Cuba. Eu resolvo cantarolar uma canção e o casal fala do autor da canção.
São movimentos conjuntos, a ligação pros pais, o choro, a briga por ciúme.
E, acima de tudo, que música eu toco?

Afonso Jr. Lima







sábado, setembro 02, 2017

"As moléculas sabem o futuro"

A lenda diz que na biblioteca está tudo que já existiu, mas também tudo que vai existir. Quando perguntei para meu mestre, ele disse: "As moléculas sabem o futuro". Era uma citação de um personagem cientista em "A história da Ilha", de M. Issaiévich. 
A mim foi dada a sessão da História. Minha mãe era estudiosa e conservadora de autores russos. Havia crescido nos Livros, entre o Imperialismo e a Ásia.
Quando comecei a ler, minha história preferida era justamente "A história da Ilha".
Neste conto, um grupo de homens parte para colonizar uma terra à oeste e levar a "civilização" aos que chamam de sub-humanos ou bárbaros. Suas mulheres são controladas para a reprodução e costumam ter filhos todos os anos - uma personagem tem 12 filhos em 12 anos e se suicida. A sociedade existente anteriormente acaba sendo apagada, os colonos são os únicos que podem comprar os produtos que produzem. Mas isso gera um medo constante sobre o que existiria fora da muralha. Por fim, uma estranha doença começa a acometer as crianças do lugar, que se tornam como que sonâmbulas, e acabam dormindo para nunca mais acordar. O cientista tenta, inutilmente, achar a causa e, por fim, começa a estudar as lendas e os sonhos dos "bárbaros". Descobre que neles havia a crença de que, paralelo ao nosso tempo linear ou aparente, existe um outro tempo, no qual tudo se encontra. Assim, ele suspeita que as crianças estão tristes porque seu corpo sabe de algo que ocorrerá no futuro aparente. 
Esse conto assustador me fascinava e eu desenhei muitas folhas ilustrando essa sociedade.
O que me fazia desde cedo pensar sobre a minha própria, por que acabamos vivendo na biblioteca, se existiriam humanos lá fora ainda e se existia algum lá fora, por que existia a máxima gravada na pedra: "A Salvação está contida nos Livros". 

Afonso Junior Ferreira de Lima