A festa na rua, eu não sigo sua regra
desvia o átomo, luz do céu
papagaios gritam, sinos,
rebeldes, opacos, imprevisíveis
quem me conhece é um poeta da natureza
complexo acaso, em busca de uma verdade
temos alguns sinais, tentar desvendar
outros, dentro do filme escrito para nós
não somos ajudados pelo meio
e, mesmo assim, queremos um heroísmo
algo novo, mitologias, alma de peixe
e sapatos que nos liguem à terra
os bosques, crianças sorrindo
não merecemos ser explicados
somos vento, fogo, correr de águas, flores
das tempestades, fugindo, dançando
anjos travestis e matéria divina
e mesmo para a noite acharemos um nome
Afonso Lima
segunda-feira, junho 29, 2015
segunda-feira, junho 22, 2015
As Pinturas da Colina
Qual a origem da Canção do Caminho Vermelho? Imaginemos um grupo de caçadores coletores que descansam ao lado de uma ruína. É uma coluna avermelhada no alto de uma colina em meio a uma mata densa. Era onde os animais sobreviventes se reproduziram. Imagens com animais feitas à carvão com data de 15 mil anos atrás. Algumas gravações com ponta de sílex nas rochas e restos de madeira calcinada. De repente, uma criança descobre uma faixa vermelha no chão. Os pais seguem por ela, um cão descobre cavernas no subsolo. Animais pintados. Figuras mostrando grande número de animais mortos. Talvez uma catástrofe. Decidem se abrigar ali? Vestígios de fumaça no teto mostram que possivelmente cerimônias religiosas foram realizadas na caverna artificial. O caminho foi marcado por uma fileira de pedras pontiagudas. Próximo à coluna avermelhada, um objeto de metal representando abstratamente a forma humana com data anterior foi colocado sobre uma espécie de altar. O grupo de caçadores coletores deve ter ali formado uma aldeia, pois várias gerações parecem ter desenhado à carvão nas paredes dos túneis. Na Canção do Caminho Vermelho, uma deusa traz aos humanos as primeiras sementes e lhes ordena que sejam plantadas ao redor da coluna. A deusa conta a história de uma guerra, teriam sido dizimados os humanos da "antiga época", e os deuses teriam condenado os seres a uma era gelada. Todos eles teriam morrido, mas dois humanos ressuscitam. Quando a linguagem surge, a Canção do Caminho Vermelho, que deve ter sido cantada por séculos, é transcrita. Infelizmente, as primeiras versões da canção provavelmente foram feitas no couro de bovídeos (extintos).
Afonso Lima
sexta-feira, junho 19, 2015
Investigação
A história se conta assim: o aristocrata belga estava fascinado pela obra do autor francês e começou a recolher todos os dados biográficos dispersos por Paris, entre a lama, o lixo e os esgotos dessa cidade que ainda pouco havia reconhecido nosso herói.
Seu interesse de filólogo surgira quando, entre os quase cem volumes, com cerca de quatro mil figurantes, encontrara uma página supostamente criptografada, e que ele tentou decifrar de várias maneiras. Para tanto, seu olhar se voltou principalmente para as cartas.
Um dia de glória foi quando, comprando queijo no mercado, percebeu que o vendedor embrulhava o produto num papel com a letra do autor. Os credores haviam vendido tudo que encontraram em sua casa quando de sua morte.
Passando por sobre os escombros dessa cidade que derrubava bairros inteiros, foi colhendo confissões, objetos pessoais, manuscritos e primeiras edições. Anotando rigorosamente suas andanças, chegamos a um mapa impressionante de suas odisseias, por exemplo, quase o cruzar duas vezes a cidade em um dia. Para se atravessar a capital, nessa época se levava em torno de seis horas, graças ao transporte público insuficiente.
Ao mesmo tempo começou o nobre a escrever detalhadamente um dicionário de Nomes Próprios, Lugares, Moda, Objetos e Animais que animavam essa obra gigantesca. Começou a dizer aos amigos que ele próprio estava incluído na página criptografa. Seus últimos dias, após a publicação de dez volumes críticos e do dicionário, foi foram de quase loucura, nos quais obrigava os convidados de seu castelo - no qual cada quarto e sala reconstituía um detalhe da obra - a assumir papéis de personagens e falava de seres fictícios como de pessoas reais.
Até hoje não há uma explicação definitiva para a página misteriosa.
Afonso Lima
quinta-feira, junho 18, 2015
Mortos
O que aconteceu?
a radiação rebelde que levou as cidades?
o caos temperamental do vírus?
todos estão mortos e as cidades
repousam de uma longa estafa
ocas e mais serenas
Mas ainda assim caminham.
as cidades produzidas sentem passos sem peso
- eram as almas a pesar, seu lado tóxico decantado
engarrafados motoristas de rostos imóveis
ainda mandam mensagens de texto
ainda anseiam, famintos, mais e mais
mortos na foto
O frio, um mau cheiro - os átomos mais leves
há muito haviam fugido - mãos dedicadas muito brancas
dissertações defendidas, reuniões de comissão
um tumulto na promoção, barras de vestido de noiva
mecânicos mortos sem um sonho mínimo
tudo estava igual entre reis e plebeus, só cada qual
tinha uma diversa etiqueta
tristes destinos em movimento, medo de tentar e partir
meticulosos cálculos, e, ao olhar pensativo de uma rua
pareceria talvez que somente a vibração elétrica
do novo já antigo podia parar por um instante
o fluxo do homogêneo; intocados cafés da manhã
repetidos por hábito - vidros transpararentes, os mortos
talvez tenham morrido, secado, num longo processo
em que - quanto menos eram vistos,
quanto mais esqueciam, e já não sabiam o norte
mais brinquedos ganhavam e jardins
Mas como sempre a esperança ou o que seja rastejava
Brotando entre fios de verde no negro úmido
Quem sabe novas casas, novos tipos de porta?
O sol que ainda cai sobre ramagens
Cada folha, que insiste em ser diferente
As sementes que insistem em apodrecer
a radiação rebelde que levou as cidades?
o caos temperamental do vírus?
todos estão mortos e as cidades
repousam de uma longa estafa
ocas e mais serenas
Mas ainda assim caminham.
as cidades produzidas sentem passos sem peso
- eram as almas a pesar, seu lado tóxico decantado
engarrafados motoristas de rostos imóveis
ainda mandam mensagens de texto
ainda anseiam, famintos, mais e mais
mortos na foto
O frio, um mau cheiro - os átomos mais leves
há muito haviam fugido - mãos dedicadas muito brancas
dissertações defendidas, reuniões de comissão
um tumulto na promoção, barras de vestido de noiva
mecânicos mortos sem um sonho mínimo
tudo estava igual entre reis e plebeus, só cada qual
tinha uma diversa etiqueta
tristes destinos em movimento, medo de tentar e partir
meticulosos cálculos, e, ao olhar pensativo de uma rua
pareceria talvez que somente a vibração elétrica
do novo já antigo podia parar por um instante
o fluxo do homogêneo; intocados cafés da manhã
repetidos por hábito - vidros transpararentes, os mortos
talvez tenham morrido, secado, num longo processo
em que - quanto menos eram vistos,
quanto mais esqueciam, e já não sabiam o norte
mais brinquedos ganhavam e jardins
Mas como sempre a esperança ou o que seja rastejava
Brotando entre fios de verde no negro úmido
Quem sabe novas casas, novos tipos de porta?
O sol que ainda cai sobre ramagens
Cada folha, que insiste em ser diferente
As sementes que insistem em apodrecer
Afonso Lima
terça-feira, junho 16, 2015
O sermão
Vendo as multidões, subiu ao monte e, tendo se assentado, se pôs a ensiná-los, dizendo:
Bem-aventurados os que arrecadam porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados os que espancam, porque eles serão consolados.
Bem-aventurados os que acham que a Bíblia é o único livro, porque eles herdarão a terra.
Bem-aventurados os que perseguem outras religiões, porque eles serão fartos.
Bem-aventurados os que só fazem sexo para procriar, porque eles alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os excluem a realidade, porque eles não verão.
Vós sois a escuridão do mundo. Eu vim para destruir. Sede vós, pois, cheios de ódio, como é o vosso Senhor.
Afonso Lima
Bem-aventurados os que arrecadam porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados os que espancam, porque eles serão consolados.
Bem-aventurados os que acham que a Bíblia é o único livro, porque eles herdarão a terra.
Bem-aventurados os que perseguem outras religiões, porque eles serão fartos.
Bem-aventurados os que só fazem sexo para procriar, porque eles alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os excluem a realidade, porque eles não verão.
Vós sois a escuridão do mundo. Eu vim para destruir. Sede vós, pois, cheios de ódio, como é o vosso Senhor.
Afonso Lima
Nuvens
Os olhos fecham por um instante
sobre o papel
nuvens sonhadas no céu aberto
abre-se da noite o livro
a máquina do crepúsculo corre sirenes
o corpo duro ao lado do sepulcro
frio de outro corpo, e a
multidão que grita
cachorros calculam notas perdidas
o forasteiro toca a pele desconhecida
a seção silenciosa perdeu o chão
papéis voam, lei e
sentença como o mais cruel
inimigo, tudo em ruínas, desaba
escuro tempo longo
até quando?
som e sentido de um bebê que chora
fingir não ver o design da
liberdade
demoníaca
a chuva fria da nova
aurora
na rua
sentado na rua comendo lixo
pela avenida cruzando alucinado
a raça de Caim caída sem fábrica
rosto sujo de carvão e na roupa mercúrio
nem ganhar o pão de cada dia
O edifício extenso
muitas construções baixas se estreitam
invadido pelo mar e destruído
São nuvens vermelhas que o arrastam
O rio regenera comendo cadáveres
Os olhos despertam para outro
sonho o livro da noite
sonhando ontem e amanhã
Afonso Lima
sobre o papel
nuvens sonhadas no céu aberto
abre-se da noite o livro
a máquina do crepúsculo corre sirenes
o corpo duro ao lado do sepulcro
frio de outro corpo, e a
multidão que grita
cachorros calculam notas perdidas
o forasteiro toca a pele desconhecida
a seção silenciosa perdeu o chão
papéis voam, lei e
sentença como o mais cruel
inimigo, tudo em ruínas, desaba
escuro tempo longo
até quando?
som e sentido de um bebê que chora
fingir não ver o design da
liberdade
demoníaca
a chuva fria da nova
aurora
na rua
sentado na rua comendo lixo
pela avenida cruzando alucinado
a raça de Caim caída sem fábrica
rosto sujo de carvão e na roupa mercúrio
nem ganhar o pão de cada dia
O edifício extenso
muitas construções baixas se estreitam
invadido pelo mar e destruído
São nuvens vermelhas que o arrastam
O rio regenera comendo cadáveres
Os olhos despertam para outro
sonho o livro da noite
sonhando ontem e amanhã
Afonso Lima
segunda-feira, junho 15, 2015
Funk da História da Arte
O bonde do Picasso vai até o chão
Baudelaire só quer ouro
O Monet é pura ostentação
Mondrian bombando na liquidação
O conceito então se revela
Camarote das celebridades
Arte - maquiagem
Rebeldia é vaidade
O bonde do Miró vai até o chão
Traz o uísque, o platô e o carrão
Holandês é pura ostentação
Galeria bombando na liquidação
As mina dão carro pra mãe
política se consome
cada um no seu clã
nas esquina a porrada come
O bonde do Picasso vai até o chão
Baudelaire disse que só quer mulher
O Monet é pura ostentação
Mondrian bombando na liquidação
Afonso Lima
Baudelaire só quer ouro
O Monet é pura ostentação
Mondrian bombando na liquidação
O conceito então se revela
Camarote das celebridades
Arte - maquiagem
Rebeldia é vaidade
O bonde do Miró vai até o chão
Traz o uísque, o platô e o carrão
Holandês é pura ostentação
Galeria bombando na liquidação
As mina dão carro pra mãe
política se consome
cada um no seu clã
nas esquina a porrada come
O bonde do Picasso vai até o chão
Baudelaire disse que só quer mulher
O Monet é pura ostentação
Mondrian bombando na liquidação
Afonso Lima
Lei da Verdade
Ele foi o grande Reformador, que fez o Congresso aprovar a Lei da Verdade em 2025.
Sua infância foi difícil, seu pai fora preso e sua mãe se tornara dependente química e caíra na prostituição, sendo resgatada por um pastor negro, que veio a se tornar seu padrasto. Foi preso pela polícia e passou duas noites numa cela, aos dezessete anos, por estar "vagando à esmo" e ter um cigarro de maconha. Um colega branco lhe emprestou livros de empreendedorismo ensinou que "a lei tem a função de preservar o dado natural da propriedade". Certa fez, já na faculdade, foi a um restaurante com amigos e a garçonete lhe disse: "Não servimos negros aqui".
Essa a outras humilhações lhe levaram a um ódio profundo e passou a ler intensamente a Bíblia, única fonte de orgulho de si mesmo, ao mesmo tempo que de ansiedade, na certeza de que uma pessoa ferida devia denunciar as inustiças desse mundo corrupto. Tornou-se pastor, vereador e deputado.
Na lei da Educação Santa, aprovada em 2022, constava um novo currículo:- Economia, Física, Química e Matemática.
- Antigo Testamento I e II
- Castidade e repressão
- Anticomunismo e Direito Divino
- Salmos aplicados ao Trabalho
- Antissodomia e repressão ao culto negro
- Teologia do Amor e da Mulher
As mulheres foram desencorajadas de fazer faculdade ou deveriam cursar faculdades "sagradas". As crianças eram levadas desde a primeira infância à "creches evangelizadoras". Nelas se aprendia que "deve ser banido o pensamento contraditório, que gera confusão e ansiedade e torna a mente permissiva a abalos da moral".
A Lei da Verdade passou a condenar "informações não santas", "magia negra", "obras criativas imorais" e mais de mil homossexuais foram executados, aceitando-se confissões sob tortura, por "degenerar a imagem do povo brasileiro". Com a censura à imprensa e a autocensura, pouco se sabia sobre as prisões arbitrárias e as intrigas políticas.
Finalmente o Reformador foi assassinado, depois que um colega de universidade divulgou que ele escapava muitas vezes de seu quarto para visitar o quarto de uma travesti negra chamada Molly Mae.
domingo, junho 14, 2015
Repetição
Rosa é uma mulher é uma mulher é uma mulher. Ela se apaixonara por outra detenta.
Quando Raquel fez um ano, Rosa pediu que a avó não mais a trouxesse na visita. A criança tinha que tirar a roupa e a avó também. Podia ficar com ela até 7 anos pela lei, mas nenhuma criança ficava mais que seis meses. Jogou o leite fora. Rosa estava presa esperando julgamento; quando foi absolvida, tinha permanecido mais tempo do que se tivesse sido condenada.
A avó morreu depois de dois anos. A mãe conseguiu emprego de passadeira. Sem creche, a criança fica sozinha em casa.
- O que vocês fizeram nas férias, pergunta a professora.
- Assisti TV, fiquei na internet, respondem.
Um zelador da escola pensa no que oferecer para tirar fotos de Raquel sem roupa.
Rosa não tinha permissão para visita íntima, "Pouca vergonha", dizia a gestora prisional.
Raquel é uma criança uma criança.
Afonso Lima
Quando Raquel fez um ano, Rosa pediu que a avó não mais a trouxesse na visita. A criança tinha que tirar a roupa e a avó também. Podia ficar com ela até 7 anos pela lei, mas nenhuma criança ficava mais que seis meses. Jogou o leite fora. Rosa estava presa esperando julgamento; quando foi absolvida, tinha permanecido mais tempo do que se tivesse sido condenada.
A avó morreu depois de dois anos. A mãe conseguiu emprego de passadeira. Sem creche, a criança fica sozinha em casa.
- O que vocês fizeram nas férias, pergunta a professora.
- Assisti TV, fiquei na internet, respondem.
Um zelador da escola pensa no que oferecer para tirar fotos de Raquel sem roupa.
Rosa não tinha permissão para visita íntima, "Pouca vergonha", dizia a gestora prisional.
Raquel é uma criança uma criança.
Afonso Lima
quarta-feira, junho 10, 2015
Meninas
A menina chega empolgada para sua primeira aula de piano. A mãe está com ela. A professora oferece o sofá.
- Minha filha é doida por Bach, né Nina?
- Quando a senhora veio perguntar... Achei que era pra patroa.
- Qual o problema?
- Não vou iludir a garota. Nunca vai poder ser pianista.
- Como?
- Ninguém vai encomendar uma sonata. Não vai entrar nos hotéis. Não vai ser contratada.
- A senhora tem certeza?
- Tenho. Mas posso ensinar música popular.
- Minha filha...
- Você pode ser uma cantora famosa. Pisar num palco de bar lotado. As pessoas jogarão flores em você. Quem sabe você não coloca Bach no meio do jazz?
*
- Explica a teoria da vaquinha, amor.
- É o seguinte: antes para o homem ter sexo com a mulher precisava casar, assumir casa, família. Agora, que a mulher se entrega tão fácil, porque ele vai querer casar? Se ele pode ter o leite do sexo sem comprar a vaca?
A casa tinha dois cômodos, estava cansada de televisão. Saiu pela comunidade. A amiga perguntou se já tinha ido no cinema.
- Tá doida?
- Olha, ouviu falar que tão contratando funkeira? Dizem que um show pode dar cachê de 4 mil Reais. Quem sabe você tira seus pais daqui?
- Se eu fizesse sucesso, saía da escola. Não aguento mais comer arroz com farinha e óleo. Meu irmão virou ajudante de pedreiro, mas podia ser Mc. Vou falar com ele.
Afonso Lima
- Minha filha é doida por Bach, né Nina?
- Quando a senhora veio perguntar... Achei que era pra patroa.
- Qual o problema?
- Não vou iludir a garota. Nunca vai poder ser pianista.
- Como?
- Ninguém vai encomendar uma sonata. Não vai entrar nos hotéis. Não vai ser contratada.
- A senhora tem certeza?
- Tenho. Mas posso ensinar música popular.
- Minha filha...
- Você pode ser uma cantora famosa. Pisar num palco de bar lotado. As pessoas jogarão flores em você. Quem sabe você não coloca Bach no meio do jazz?
- Explica a teoria da vaquinha, amor.
- É o seguinte: antes para o homem ter sexo com a mulher precisava casar, assumir casa, família. Agora, que a mulher se entrega tão fácil, porque ele vai querer casar? Se ele pode ter o leite do sexo sem comprar a vaca?
- Tá doida?
- Olha, ouviu falar que tão contratando funkeira? Dizem que um show pode dar cachê de 4 mil Reais. Quem sabe você tira seus pais daqui?
- Se eu fizesse sucesso, saía da escola. Não aguento mais comer arroz com farinha e óleo. Meu irmão virou ajudante de pedreiro, mas podia ser Mc. Vou falar com ele.
Afonso Lima
Neo-reaça
Meu amigo, não fique brabo por eu ser um neo-reaça, um niilista anarquista. Eu nunca tive História na escola. Meu pai apoiava a ditadura. Meu avô vendeu loteamento-empilhado na periferia e dizia que transporte coletivo era coisa de pobre. Meu bisavó foi traficante de escravo como todos os homens bem sucedidos. Eu leio e assisto realidades-editadas, dispersar e desviar a revolta - sou classe média reinformada, usada historicamente pelas forças mais reacionárias para resistir às mudanças. Eu sou gostoso e você também, vamos pra esteira, foi o que nos restou. O sol está bonito. Tem um show amanhã. Sim, agora é cidade-investimento de fundos internacionais e políticas urbanas para obras-de-carro, como o túnel de 3 bilhões e a louca obra do novo engarrafamento da marginal, 1 bilhão. F@d@-C. Meu amigo, eu não me importo se o novo século é o de rentistas e escravos, se a divisão do trabalho fez a academia discutir rizoma e significante no fim do mundo sem atrito com o redemoinho centrípeto que expulsa continuamente, se vivo no gueto artístico-intelectual enquanto uma cúpula empresarial domina as cidades. Vamos andar com nosso cachorro. Vamos beber um café. Vamos comprar um sapato. Nesse contexto de fragmentação da cidade e do pensamento, participação cenográfica pós-ditadura, população ausente, política morde-assopra de quem reclama, sociedade de desinformação e bloqueio comunicativo, o inconsciente coletivo de classe é a exclusão, o orgulho da nação é senso-comum. Falo do ponto de vista da propriedade, quero ser gerente no totalitarismo capitalista. Já chorei quando vi gente despejada na TV, mas não dá pra chorar todo dia né? Metade da cidade vive na favela, e daí? A cidade é inerte, nós também, tenho capital-intelectual, odeio ver pobre e quero ler um livro, plantar uma árvore e casar com você.
Afonso Lima
Elogio da Sombra
Da sombra emerge uma figura. Amassar o barro. E se: jovens no centro histórico com cartazes - Não queremos dez torres! E se: Homens sinistros recebem suborno no Conselho. E se: Juiz afasta promotora que impede as torres ilegais. E se: Urbanista foi demitido da Secretaria. E se: Empregado da Construtora toma posse. E se: Eles construíram casas na beira do córrego. E se: Chegam mais homens para reforçar o policiamento. E se: Diz o professor - A lei específica pró-túnel desmente lei maior pró-cidade. E se: Móveis são retirados de dentro das casas. E se: Os petrodólares precisam de lugar para pousar. E se: O advogado diz - É terra sem lei, vamos rasgar os livros! E se: O secretário na reunião de planejamento - Sabe, moradores de rua, pequeno comércio, não dá, trata-se de valorizar a área, a quadra inteira é mais viável para os investidores. E se: O repórter - Os criminosos liberam a comunidade. E se: Homens sinistros votam no Conselho. E se: Jovens subindo em árvores. Da sombra emerge uma cidade. O barro.
Afonso Lima
terça-feira, junho 09, 2015
O terreno
Juan viu seu filho entre um sofá na grama e um brinquedo. Quando ele deixara de existir? Lembrou que seu pai ganhara uma casa do governo. Juan comprara aquele imóvel de três quartos - 25 m² - quando o novo bebê nasceu. Irmão, mãe, três filhos, ele ganhava um bom salário como porteiro, Mister Dodson lhe incentivou a "parar de depender dos outros". Acordou do sonho. Era impossível entender. O valor da casa aumentara, a hipoteca também. O cara do banco disse que sua casa era um produto financeiro. Quando ele foi ao bando, desesperado, que o fato de ele deixar de pagar iria acabar com o país. Seu filho chora: "quero meu quarto". Ele lembrou do amigo que morava num antigo conjunto de habitação popular. O lugar tinha se deteriorado, parara de receber atenção do governo. Os filhos tinham vergonha de falar que moravam ali. Outro conhecido tinha comprado uma casa e, com a crise, os donos da construtora sumiram, suas economias tinham evaporado, greve de fome dos clientes. Outro conhecido viu seu bairro ser demolido, depois que os todos começaram a bater nos seus filhos. Juan viu sua televisão na grama e pegou o menino no colo. "Vamos para casa do vovô. Vou deixar você com ele", e uma lágrima caiu.
Afonso Lima
segunda-feira, junho 08, 2015
Sonho
Juan viu seu filho entre um sofá na grama e um brinquedo. Quando ele deixara de existir? Lembrou que seu pai ganhara uma casa do governo. Juan comprara aquele imóvel de três quartos - 25 m² - quando o novo bebê nasceu. Irmão, mãe, três filhos, ele ganhava um bom salário como porteiro, Mister Dodson lhe incentivou a "parar de depender dos outros". Acordou do sonho. Era impossível entender. O valor da casa aumentara, a hipoteca também. O cara do banco disse que sua casa era um produto financeiro. Quando ele foi ao bando, desesperado, que o fato de ele deixar de pagar iria acabar com o país. Seu filho chora: "quero meu quarto". Ele lembrou do amigo que morava num antigo conjunto de habitação popular. O lugar tinha se deteriorado, parara de receber atenção do governo. Os filhos tinham vergonha de falar que moravam ali. Outro conhecido tinha comprado uma casa e, com a crise, os donos da construtora sumiram, suas economias tinham evaporado, greve de fome dos clientes. Outro conhecido viu seu bairro ser demolido, depois que os todos começaram a bater nos seus filhos. Juan viu sua televisão na grama e pegou o menino no colo. "Vamos para casa do vovô. Vou deixar você com ele", e uma lágrima caiu.
Afonso Lima
sábado, junho 06, 2015
Batalha
O tiro acertou na cabeça.
José morreu na hora. Tinha vinte anos.
E antes?
O locutor da rádio incentiva a invasão. A faculdade é incendiada. O teto desaba.
E antes?
Pedágio para a sopa dos estudantes em Seminário Permanente. Estudantes armados. Recuo. Eles avançaram.
E antes?
Marcha de estudantes: que todos os que passaram no vestibular tenham vagas na universidade.
E antes?
O padre rezou a missa do primeiro estudante morto: passou a receber constantes ameaças de morte. Encontrado seu corpo.
E antes?
Ele aumentou os salários em 100%. O rádio denunciava corrupção. O Congresso votara impeachment.
E antes?
Lideranças empresarias criaram o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, UDN distribui botons made in USA.
E antes?
Escola Superior de Guerra treina Comando de Caça aos Comunistas.
E depois?
José, de vinte anos, foi o primeiro.
Quem comandou o ataque hoje é desembargador.
Afonso Lima
José morreu na hora. Tinha vinte anos.
E antes?
O locutor da rádio incentiva a invasão. A faculdade é incendiada. O teto desaba.
E antes?
Pedágio para a sopa dos estudantes em Seminário Permanente. Estudantes armados. Recuo. Eles avançaram.
E antes?
Marcha de estudantes: que todos os que passaram no vestibular tenham vagas na universidade.
E antes?
O padre rezou a missa do primeiro estudante morto: passou a receber constantes ameaças de morte. Encontrado seu corpo.
E antes?
Ele aumentou os salários em 100%. O rádio denunciava corrupção. O Congresso votara impeachment.
E antes?
Lideranças empresarias criaram o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, UDN distribui botons made in USA.
E antes?
Escola Superior de Guerra treina Comando de Caça aos Comunistas.
E depois?
José, de vinte anos, foi o primeiro.
Quem comandou o ataque hoje é desembargador.
Afonso Lima
quinta-feira, junho 04, 2015
Exílio
(to Jo)
Lorde, o bispo foi condenado
não há tempo para a verdade
quem eu quero ser -
o céu está cinzento
o reino cai, o inverno
esconda-se!
(Ele disse na cruz:
salve, Mãe-Pai, a razão
bichas pretos e bastardos
flores nos cabelos e abraços nas árvores
sorrisos no picnic e vibração de: quem sou eu?
Pai-Mãe: o direito de não saber
o que se procura, maldição
às certezas em marcha, anúncios de faça!
o mundo não se descobriu - assinado
o assassinado)
O lorde na lama
foi jogado
O lorde com seu coração
de leão
(esperança, a bela dor
de sermos o que somos)
para o jovem
ele fez a rima
o marinheiro que amou
enfrentando a ira da cidade
levado da idade na flor
a faca
nós todos somos esse lorde
um pouco sujos, um pouco
loucos, porque depois a cidade
viverá de nossos sonhos
(Então mentiram pra mim, então
tudo muda em outro lugar
salve, Mãe-Pai, celebrar
bichas pretos e bastardos)
Afonso Lima
Lorde, o bispo foi condenado
não há tempo para a verdade
quem eu quero ser -
o céu está cinzento
o reino cai, o inverno
esconda-se!
(Ele disse na cruz:
salve, Mãe-Pai, a razão
bichas pretos e bastardos
flores nos cabelos e abraços nas árvores
sorrisos no picnic e vibração de: quem sou eu?
Pai-Mãe: o direito de não saber
o que se procura, maldição
às certezas em marcha, anúncios de faça!
o mundo não se descobriu - assinado
o assassinado)
O lorde na lama
foi jogado
O lorde com seu coração
de leão
(esperança, a bela dor
de sermos o que somos)
para o jovem
ele fez a rima
o marinheiro que amou
enfrentando a ira da cidade
levado da idade na flor
a faca
nós todos somos esse lorde
um pouco sujos, um pouco
loucos, porque depois a cidade
viverá de nossos sonhos
(Então mentiram pra mim, então
tudo muda em outro lugar
salve, Mãe-Pai, celebrar
bichas pretos e bastardos)
Afonso Lima
a glória
Homens comedores de pão.
Um anjo sentado na alta torre cinzenta.
Em frente ao sinal, lixo aberto esparramado no chão.
O fim do mundo no horizonte.
Tenta olhar com juízo, para que não se soltem as partes.
Os carros engarrafados e as pessoas cruzando entre eles (sem sinal) - um caminhão com fumaça negra.
Caminha com o diabo, vão às compras.
Caminhões enormes parados na faixa de segurança, fazendo as pessoas passarem apertadas no meio dos carros.
Uma cascata de esgoto escorrendo no arroio; lixo na ponte.
O anjo não canta, mas sabe que nem tudo é economia.
O diabo diz que é a natureza. Ele diz um poema.
Calçadas estreitas, sujas, esburacadas, pessoas se amotoando.
Tenta lembrar do que veio antes, um outro amanhã.
Um turista alemão tirando foto de linguiça.
Camisas amarelas chamando por revolta.
Uma fachada belle époque pichada, com mato crescendo dentro e uma placa: vende-se.
É preciso fazer o comércio algo épico. "Os empreendedores são os que levam o país", diz um rapaz.
Muitos óculos lilases, azuis e amarelos.
O anjo olha outro modo de ser que não seja vender.
Um homem sem camisa, magro, tatuado, rasgando papelão em frente a uma montanha de lixo.
Um jovem ambulante dizendo: eu não sinto tesão por mulheres chinesas.
O diabo imagina uma fogueira de livros, chama por Jesus.
Uma moça oriental de minisaia canta ópera com fones de ouvido.
Olhos fechados - em algum lugar uma árvore é do tamanho do céu.
Os risos e a música.
O anjo e o diabo sentam para tomar um café.
Afonso Lima
Um anjo sentado na alta torre cinzenta.
Em frente ao sinal, lixo aberto esparramado no chão.
O fim do mundo no horizonte.
Tenta olhar com juízo, para que não se soltem as partes.
Os carros engarrafados e as pessoas cruzando entre eles (sem sinal) - um caminhão com fumaça negra.
Caminha com o diabo, vão às compras.
Caminhões enormes parados na faixa de segurança, fazendo as pessoas passarem apertadas no meio dos carros.
Uma cascata de esgoto escorrendo no arroio; lixo na ponte.
O anjo não canta, mas sabe que nem tudo é economia.
O diabo diz que é a natureza. Ele diz um poema.
Calçadas estreitas, sujas, esburacadas, pessoas se amotoando.
Tenta lembrar do que veio antes, um outro amanhã.
Um turista alemão tirando foto de linguiça.
Camisas amarelas chamando por revolta.
Uma fachada belle époque pichada, com mato crescendo dentro e uma placa: vende-se.
É preciso fazer o comércio algo épico. "Os empreendedores são os que levam o país", diz um rapaz.
Muitos óculos lilases, azuis e amarelos.
O anjo olha outro modo de ser que não seja vender.
Um homem sem camisa, magro, tatuado, rasgando papelão em frente a uma montanha de lixo.
Um jovem ambulante dizendo: eu não sinto tesão por mulheres chinesas.
O diabo imagina uma fogueira de livros, chama por Jesus.
Uma moça oriental de minisaia canta ópera com fones de ouvido.
Olhos fechados - em algum lugar uma árvore é do tamanho do céu.
Os risos e a música.
O anjo e o diabo sentam para tomar um café.
Afonso Lima
terça-feira, junho 02, 2015
Alguém
Desde tempos passados
nós gatos, de pé-pluma
exilados das nuvens comuns
vivemos nosso sonho
de espuma
Apanhamos para entrar no jogo
palavra, pedra e paulada
não adianta nada
Lá em cima foste barrado
aqui em baixo não podes entrar
eles sabem que um gato
só vive de livre-pensar
Fulano fala mal de nós
sicrano tem tubo e papel
e a gente pensa - infiel!
só vale a nobreza inata
Filhos do Sol, irmãos da lua
nosso caminho de espuma
passamos alados, sem medo
desde tempos passados.
nós gatos, de pé-pluma
exilados das nuvens comuns
vivemos nosso sonho
de espuma
Apanhamos para entrar no jogo
palavra, pedra e paulada
não adianta nada
Lá em cima foste barrado
aqui em baixo não podes entrar
eles sabem que um gato
só vive de livre-pensar
Fulano fala mal de nós
sicrano tem tubo e papel
e a gente pensa - infiel!
só vale a nobreza inata
Filhos do Sol, irmãos da lua
nosso caminho de espuma
passamos alados, sem medo
desde tempos passados.
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