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sexta-feira, novembro 26, 2021

Live: A tragédia grega


 

Godzi presidente

Godzi nasceu da radiação. 
A campanha falava no raio capaz de eliminar o mal. Godzi receberia um chip capaz de controlar seus instintos. Deus estaria do lado do monstro, afirmavam os teólogos. 

Ele foi colocado para falar na tribuna, ele recitou frases em latim. Eu sempre disse que ele não poderia ser presidente.

Havia muita gente nostálgica - ele representava um tempo onde tudo parecia ser mais fácil. 
Era uma velha história. Nos anos 1970, um Partido resgatou a ideia de Ordem e Pureza do início do século XX. Grupos extremistas entraram nas universidades e destruíram bibliotecas. 

Existiria um hálito radioativo capaz de purificar, limpar a sociedade. Godzi era capaz de se regenerar com facilidade. Mas na presidência, o hálito apenas serviu para incendiar florestas inteiras. Morreram muitos animais com ventos tóxicos - revoltando ativistas na Noruega. Veneno nas águas. 

Os supremacistas brancos mestiços eram seus maiores apoiadores. Performances de queima de bruxas com roupas da Cruzada. Godzi em viagens internacionais falando que precisamos fazer nosso país ser os Estados Unidos de novo. 

Em Godzi, o chip falhou. Tentaram colocar uma Mulher Medieval na vice-presidência. Alguns militares, experimentos do Império em época recente, viam uma grande conspiração global, tinham medo do comunismo, mas também de tudo que não havia na ditadura - da ecologia, das mulheres no poder, do Supremo Tribunal. O Exército ficou preocupado com a economia. O fim da escola pública civil ficou prejudicado. O caos na natureza desencadeou mortes aos milhares. 

O monstro tinha dor de cabeça. Tomava remédios. Godzi estava fazendo campanha para mais quatro anos. A resistência estava em cada esquina. 

*
Afonso Lima 


quarta-feira, novembro 24, 2021

Como fazer um Tchekhov

Como todo grande escritor Tchekhov é sempre atual. Portanto, depende do presente o "Tchekhov correto", pois o que causa máximo efeito no mundo de Stanislavski não será o mesmo no nosso mundo. Ao mesmo tempo, como médico, o escritor é o gênio da objetividade, deixa as respostas ao processo longo do leitor. 

Então, dialogando com o filme A Gaivota, dirigido por Michael Mayer, de 2018, gostaria de falar do Tchekhov "correto" - ou que me parece interessante. As primeiras frases da peça são já tão profundas que não poderiam ser de modo algum psicologizadas, porque não há como dizer "Estou de luto pela minha vida" de forma natural. (Professora Elena Vássina nos conta que é uma citação de Guy de Maupassant - de suas anotações em "Sobre a Água").

Então, parece-me que o caminho da expressão é o pior possível. É preciso aceitar a incomunicabilidade essencial desses personagens, personagens tão opacos e mutantes, pois é isso que dará margem à interpretação infinita. É preciso esquecer a vontade e os sentimentos. 

Essa é a peça de um contista; ela poderia ser apenas "monólogos da lua", descrições de paisagens do imaginário. Não precisa dessa ficção que se convencionou chamar "eu" (o hábito que Beckett vê desmontado por Proust). 

O filme traz um pouco de lágrimas. A lágrima é o drama, é conflito. É uma tentativa de prender Tchekhov no realismo inglês. Você chora quando sabe quem é, quando pensa que sofreu uma injustiça, ou quer alguém que se foi. Eles não sabem quem são. (Nina: "Mereço que me matem... Sou uma gaivota... Não, não é isto.") Ele não irá pintar uma rosa, mas perguntar-se o que é uma rosa - nesse sentido é modernista. Tal é o desafio de não entender, tão necessário. 

Para nós, é muito difícil imaginar o que significa a falta completa de esperança (talvez porque nosso sistema venda a esperança em cada frasco de desodorante). A sociedade de Tchekhov está parada, nada acontece, nada pode acontecer, volta sempre ao mesmo ponto (os servos estão livres e segue esse terror). A intelligentsia como um fruto (aparentemente) inútil na árvore do totalitarismo. Seus personagens não vão a lugar nenhum, a estrutura muda para não mudar. Nenhuma ação é possível. (É que o tempo da arte é muito longo). São peças sobre a frustração e o egoísmo.

Mas também sobre arte. Sobre o que deve ser o teatro. Até mesmo na Sibéria esses personagens assistem teatro (um teatro provavelmente feito de gestos herdados e poses exteriores). As projeções do autor - como dois escritores, como duas atrizes, como médico, etc. - são universos aos quais se deve descobrir, são objetos colocados para nossa análise científica. Nesse ponto lembra Rumo à Damasco. É o puro abstrato (como viu Meyerhold) e a máscara. 

Há, portanto, duas formas que parecem simplificar esses universos: uma é a exposição de sua superfície, outra é o aprofundamento dramático. 

Já vi atrizes gritando como se pudessem entregar uma mulher vaidosa expondo sua vaidade. Parece-me que é justamento o oposto. A face oculta da lua fará com que se veja o todo. É preciso ver Treplev não apenas como um garoto mimado e romântico, mas como (a máscara de) um jovem maduro e seco, em quem o público deve se ver. Da mesma forma, Trigorin é menos interessante como um apaixonado tolo, do que como um vaidoso incapaz de ver os outros. Arkadina é pior como mãe e atriz atormentada do que como A Arte, brilhante e fria, capaz de viver de e para si mesma.

A superfície do mar é agitada, mas o fundo se move devagar. Porque esses personagens não são apenas indivíduos que têm sentimentos - a máscara - mas são sentimentos. E como se interpreta um sentimento? A única forma de interpretar um sentimento é "executando-o", como a única forma de interpretar uma melodia o é; é preciso assumir que são filhos do darwinismo, perderam todas as referências que a tradição lhes dera, interpretá-los como se fossem mesmo maquinas.

A outra forma é dar um sentido à tudo. É claro que, dadas as expectativas que o cinema cria, de que haja "pessoas reais", de que haja conflitos como os nossos..., qualquer filme vai sofrer muito para poder nos deixar no estado de suspensão que o texto propõe. Não são textos que nos dizem que a vida não vale a pena - já que o autor parecia ter uma vida cheia de entretenimentos e amizades - mas que perguntam sempre pelo sentido, pelo sentido depois de tantas descobertas, e criam um espaço no tempo para que nós tenhamos esse vácuo. 

O mundo é como esse lago, inconstante e fugaz (a palavra "lago" aparece vinte vezes no texto). Dostoiévski vai mudar nossa vida, mas também nos deixar num estado de tensão talvez incompatível com a dura banalidade do cotidiano. Dostoiévski percebeu Auschwitz, mas Tchekhov percebeu a fila de banco. Essa é a comédia. Tchekhov está mais próximo de Beckett - sua resposta é a ironia. 

*

Afonso Junior 



domingo, novembro 21, 2021

Adam and Eve

(This is a rush translation. Copy may not be in its final form.)

The planet has always had this specificity: its humans changed their bodies every day. The penis became a receptive organ, the clitoris grew and became a penis. That's why the adopted gender was fluid, which avoided convulsions.

In the Senate, the conservative group - led by W. Fox, had gotten a bill passed to authorize "chemical castration," a pill that was supposed to define biological sex for an entire year. After a period of rest, the individual could decide which body to adopt.

The senator had enlisted the support of large companies with the idea that this would increase productivity; moreover, "women" could earn less.

Lucas K. was a 17-year-old cybertheorist who had accumulated all the information about the neo-reformers and started a pacifist movement to "conserve the mutation."

sHe was arrested after members of the group - the so-called Anonymous circle - were held responsible for terrorist attacks on reforming temples.

W. Fox went on TV accusing Luc K. of being part of "the totalitarian left that wants to prevent progress".

The project was finally approved. An advertising campaign was created to achieve 70% approval.

The newspapers denounced the "double sex hysterics".

In the elections, W. Fox was proclaimed president.

The project has become an essential part of the public health agenda. Each day, more obligatory gender characteristics were established: weakness, strength, interiority, exteriority.

Many poor "women" now have to take a test in order to study.

Others were considered subversive and admitted to work hospitals.

"Men" were also being militarized.

But the terrorists have not stopped. In fact, they were financed by liberals concerned about growing inequality. Surveys indicate that there has been a radicalization of certain sectors, we imagine that things have gotten out of hand. A biological bomb exploded on the moon, contaminating the Earth so as to kill virtually the entire population.

When it all started again, there was only what was called Adam and Eve.

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Afonso Jr. Ferriera de Lima 

Other materials - English version

https://afonsojunior.blogspot.com/search/label/English%20version

Adão e Eva

O planeta sempre teve essa especificidade de que seus humanos trocassem de corpo a cada dia. O pênis se tornava um órgão receptivo, o clitóris crescia e se tornava um pênis. Por isso o gênero adotado era fluido, o que evitava convulsões. 

No Senado, o grupo conservador - liderado por W. Fox, conseguira a votação de uma lei para autorizar a "castração química", uma pílula que deveria definir o sexo biológico por um ano inteiro. Depois de um período de descanso, o sujeito poderia decidir que corpo adotaria. 

Oa senadaor havia conseguido o apoio de grandes empresas com a ideia de que isso aumentaria a produtividade; além disso, as "mulheres" poderiam ganhar menos. 

Luc K. era um cyber-teóricao de 17 anos que acumulara toda a informação sobe os neoreformadores e iniciara um movimento pacifista para "conservar a mutação". 

ElaE foi preso depois que membros do grupo - o chamado círculo Anônimo - foi responsabilizadao por ataques terroristas a templos reformadores. 

W. Fox foi à TV acusando Luc K. de ser parte "da esquerda totalitária que quer evitar o progresso".

O projeto foi, por fim, aprovado. Uma campanha de publicidade foi criada para atingir 70% de aprovação. 

Os jornais denunciaram as "histéricas do duplo sexo". 

Nas eleições, W. Fox foi proclamado presidente. 

O projeto se tornou parte essencial da agenda de saúde pública. Cada dia se estabeleciam mais características obrigatórias de gênero: fraqueza, força, interioridade exterioridade. 

Muitas "mulheres" pobres passaram a ter de realizar uma prova para poder estudar. 

Outras, foram consideradas subversivas e internadas em hospitais de trabalho. 

Os "homens" também foram sendo militarizados. 

Mas os terroristas não pararam. Na realidade, foram financiados por liberais preocupados com a crescente desigualdade. As pesquisas indicam que houve radicalização de certos setores, imaginamos que as coisas tenham saído de controle. Uma bomba biológica explodiu na lua, contaminando a Terra, de modo a matar praticamente toda a população. 

Quando tudo começou de novo, havia só o que se chamou Adão e Eva. 

*

Afonso Lima 

quarta-feira, novembro 17, 2021

A guerra da casa

Quando eles criaram a casa, quiseram colocar azulejos da cor do sol e do outono nas paredes e nos muros, de modo que o jardim se enchesse de cores quando refletido neles. 

O Dono e a Dona (e Crianças) eram muito orgulhosos de sua conquista e convidaram uns Amigos para comer carne.

O Amigo e a Amiga e a Amiga dos Amigos decidiram não sair. O Dono ficou com sua família na parte Norte da Casa e todo dia atirava de sua janela na parte Sul onde viviam os Amigos. Ali, havia dois revólveres e munição do tempo da Colônia, se camuflavam no jardim cada dia mais cinzento. Quando suas balas acabaram, tiveram de esconder-se, os donos ganhavam território. 

No começo, Dono passava horas no carro na porta da casa, fazendo mira, esperando. A Dona quebrou toda a louça branca que tinha para dificultar a movimentação dos Amigos. A louça foi aderindo aos azulejos que foram ficando invernais. 

Por fim os Amigos foram absorvidos pelas paredes pelas quais se esgueiravam, e Dono e a Dona (e Crianças) já não dormiam para tentar ouvir passos. 

Essas Crianças cresceram com o hábito de circular pela casa armados como seu pai, e o frio da louça que pisaram toda a sua vida lhes mudou a biologia. Procriaram. Depois de uma vida sem glórias, desfizeram-se em pó.

Os netos, as Novas Crianças, decidiram reformar a casa. Pintaram os azulejos, mas tudo que conseguiam foi um clima de pastel estúdio. Decidiram fazer um programa de televisão. 

A cidade toda passou a assistir a transmissão de sua vida. Nada acontecia de verdade, de modo que o coração de toda a cidade foi parando, num efeito similar à hipnose. Mas iam regularmente abastecer suas necessidades de supermercado. 

Assim que a cidade foi rapidamente emudecendo. Apenas um ruído contínuo gelava o espírito de algum pássaro perdido. O que mais chamava a atenção de quem, por engano, cruzava por ali era o estranho silêncio de seus habitantes, e a forma como tudo parecia na verdade ter absorvido o branco gélido da louça nas paredes. 

Afonso Junior F. Lima 



terça-feira, novembro 16, 2021

Vivir a la intemperie - crítica

Vivir a la intemperie -
Montevidéu - 14 de novembro de 2021


"O que vamos assistir?", me perguntam.

Livre-associação, respondo.

Vivemos o cruzamento das artes visuais, dramáticas e da performance.

Já não é apenas um "acontecer", ou um corpo em risco como foi nos anos 1970.

Nos assusta a ideia de que todas as vivências podem ser clonadas e recompostas em produtos cult.


Podermos associar livremente é muito no mundo onde tudo tem de ser transformado em produtividade (lucro), portanto, no qual o desejo é planejado, no país onde a aristocracia rural quer converter à todos em escravos de novo - como toda a direita, abandonando o sentido (Jorge Alemán) em nome de um delírio persecutório que mobiliza a pobreza intelectual plantada pelo neoliberalismo.

Esse trabalho foi realizado no Espacio de Arte Contemporáneo - "antigua cárcel de Miguelete (1889-1986)". O "control omnipresente" do sistema arquitetônico panóptico pode parecer muito com a jaula invisível que sufoca a cada dia o não planejável e o novo.

A "primeira cena" que vemos nos remete mais a uma instalação - dois atuantes no solo, um em pé projetando uma grande sombra na parede, outro muito atrás projetando uma sombra pequena. É como um umbral no qual entramos.

Aqui domina a música e o medo. O tempo se deforma. 

A pessoa que me recebeu falara em mover-se em busca de uma melhor perspectiva. O público deveria circular pela instalação, mas de modo geral, fica em pé nas paredes.

A imobilidade me remete a repressão que criava um lugar absoluto a cada sujeito, mas também a nossa própria situação quando um vírus mortal nos isolou.

Começam movimentos que me remetem à poética do fracasso de Samuel Beckett - que tanto inspirou os artistas plásticos e performers.

Um esforço sempre cômico. A repetição quando a própria paisagem parece desértica. 

Lembremos de Bruce Nauman (1941) lendo Samuel Beckett (1906-1989). 

Repetindo tarefas banais, o artista queria dilatar o tempo: "um corpo que se lança em atividades insólitas e que nelas e com elas perde tempo" (Liliane Benetti - Bruce Nauman, Samuel Beckett, O despovoador - USP - Literatura e Sociedade, n. 55)

A outra estruturação ocorre quando os atuantes entram para baixo da lona que cobria o chão e criam "montanhas" dançantes.

São uma versão sombria dos parangolés, do artista brasileiro Hélio Oiticica. Os corpos vão buscar algo, descobrem o desejo.

Uma atuante dança na sombra - seus estranhos movimentos são quase invisíveis. Um fantasma. Está "desaparecida"? Está surgindo lentamente?

Uma dança de espelhos cobre de azul os edifícios. A luz fere, mas também transfigura.

Porém o modernismo, com sua poética de ruína, é passado: já emergem linguagens que desnorteiam 
as nervuras da mentalidade hetero-patriarcolonial.

Agora tudo é ruínas e sacos de lixo pretos.

As plantas aparecem, plantas em contrastes com esses corpos que já nos parecem cansados e cheios de história. É como se os jovens quisessem libertar-se desse passado sem negá-lo.

Eu sabia o tempo que ia durar a obra. Saí cedo: o público ficou ainda, penso que querem habitar esse novo espaço insurgente.

Já passou o tempo do novo. Resta um tempo no qual estejamos presentes.

Uma das integrantes, depois, me conta que a ideia de ausência de centro estava presente na elaboração, por exemplo, ausência de uma temática clara ou de um centro narrativo. Mas é impossível não pensar na ausência de corpos e desejos na ditadura.

Nesse sentido, é um pouco necessário mostrar que nem tudo está achado.

O grupo cita Gertrude Stein: "tudo que não é uma história pode ser uma peça".


Afonso Junior Ferreira de Lima

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sábado, novembro 13, 2021

sábado, novembro 06, 2021

terça-feira, novembro 02, 2021