1.
Precisamos de um herdeiro, ele dissera.
A luz já incomoda, sono.
Enquanto prepara o café – da direita claridade invade a cozinha -
quebra um ovo na caixa, a gema fica intacta no formato ovalado do
recipiente. Um segundo cai na frigideira. É branco e dourado,
resolve misturá-los. Começa a pensar no Grande Livro Pé-de-Sofá.
Mas por que
cargas d´água deveria pensar nesse livro? Algo que lera há...
E, de repente, haviam-se
passado vinte anos.
O zelador grita algo com
alguém, sobe ao terraço. Como pode? Gritos às 8h da manhã, sempre
achou.
Estava pesquisando a Trindade.
Mistério para o Ocidente. Três que são um, sem hierarquia, várias
tentativas de representar. A rebeldia contra as redes da tradição,
da família e da religião parecia mais tênue, já que nenhuma delas
sobrevivera.
Lembrava do encantamento com o livro - como se toda luz de um mar
branco invadisse o ambiente. As palavras rolando, as palavras na
renda branca, o límpido fluir dos movimentos do princípio do dia.
Precisamos de um herdeiro, ele
dissera. Agora, o pai reduzia seus sonhos à carne e sangue.
2.
Ele deve gabar-se de tudo que
fez.
Toca o sinal para começar a
aula. Estão falando de D. Pedro I.
Queria andar pela cidade o dia
todo. Mas como, é preciso mais que coragem para vencer cimento,
moradores de rua, lixo, sirene, motos, acúmulo de ausências.
Os alunos debatem sobre o
texto. Ajusta sua meia. Lembra.
Daquele livro todo casa, dia, farol, que me derrubou. Como a pata do
cavalo no outro, saio em disparada. Esses, sempre largo porque me
inspiram. Parte dois dez anos depois.
Precisa
orientar o rapazinho. Ele precisa de um guia. Eu gosto de estender a
mão. E sei que a terra está rachada. Passo creme nas mãos.
3.
Na sala dos professores olho o
jardim, a palmeira brilha, faíscas cor-de-rosa. Um professor conta
que os nazistas inverteram o significado da palavra "fanático"
na Alemanha para algo positivo.
Quero dizer
o que fiz nesse tempo, aventuras, monstros, metamorfoses, ou seja, os
livros que li.
Observo como a luz muda, algo
se destaca, emerge, passa uma borboleta. O que andei fazendo nesses
vinte anos de barquinho na tempestade?
Nós precisamos apenas cumprir
as ordens, dar comida ao mecanismo, precisamos apenas mais do mesmo.
4.
Será que
existe mesmo algo como destino? Coisas externas contra as quais é
inútil lutar.
Algo enredou nos meus pés, não
posso avançar. Caminho pelo parque.
Tenho contas à pagar. Cortaram
a internet por um dia, uma tragédia.
Corto as laranjas, esmago com a
mão, tenho pressa. Deito na minha cama.
Amigo antigo, transformou tudo aquilo em espaços de luz azulada,
janelas que dão para ruas onde heróis caminharam, um adolescente
com seu livro aberto no jardim e um amigo falando de arte.
Eu li isso
tudo em pleno fracasso, deitado, olhando para o chão, enquanto minha
família agonizava e minha mãe contava moedas, sem ter entrado na
faculdade.
Talvez o segredo seja filtrar as experiências, expelindo tudo que
foi tóxico. Vou ao banheiro.
5.
Água.
Do que será feito?
Proteína, claro. Pelo menos foi o que eu disse a um amigo que tinha
asco.
Crescer. Penso nos nós das
árvores, será isso, essas coisas que brotam, mas não são tão
delicadas, uma árvores parece ter um rasgo pelo qual saiu a raiz,
outra como um arco pelo qual se vê um tronco em expansão.
Eu gostaria de beijar a mim
mesmo, reproduzir-me, uróboro bípede, comer sem sal a pura carne e
o sangue tão brancos.
"Você não é uma criança
como as outras", "Você sempre foi adulto","Sente-se
no seu lugar porque os coleguinhas não conseguiram fazer ainda",
"Eu não tenho inveja dele, invejo coisa melhor".
Eu não quero abandonar a
infância.
6.
O email diz que meu avô sofreu
um infarto mas está se recuperando bem.
Penso em Luz, Noite, Zeus,
Maria, Odin ou Krisna, que a Natureza seja boa para ele.
Deitado, olho o teto. O administrador do parque disse, estavam
fazendo compostagem naquele lado escondido. Eu vi um saco preto em
meio a terra e folhas. Pensei que jamais se decomporia. Queria pegar,
resisti ao impulso, sempre tão antisocial.
E nada de
polícia, estão ocupados.
Mais acima no caminho, um fruto
escurece no chão.
Eu sinto um peso no peito,
alguém está em cima de mim, quero gritar. Abro os olhos com prazer.
Eu liguei algumas vezes para
ele.
7.
Ele me observa. Grosso, capa azul. Um frio germânico, um amigo me
diz. É apenas isso? Instinto reprimido na ilha de Calipso, onde
todos estão de fato mortos e a paixão se torna morbidez.
Quero gritar
à plenos pulmões que Thomas Mann precisava de mais sangue. Thomas
Mann eu.
Ligo a TV recolhendo a roupa do
varal. São notícias de ontem.
Sou de fato, um vago jornalista. O que eu faço é olhar coisas que
estão na sombra, não sou original nem inovador. Tanta novidade
criou um caldo branco de sono, vidro e metal.
Abre o livro. "A matéria
viva sem estrutura", "organismos não-organizados",
"protoplasma primevo das profundesas do mar".
Um vento
frio entra pela janela.
8.
O vigia conta. Um rapaz caiu no chão. Pedem ajuda a um policial
militar, disse que não pode fazer nada porque o parque está à
cargo da prefeitura.
Lavo os
pratos pensando nisso.
O policial do meio dia.
Particular. Dois metros, sempre lembro-me de A.
"Você viu? Prenderam o chefe de onze morros no Rio, comandava
sessões de tortura". Lembro do filósofo falando da boa ambição
à TV. "Estou me mudando. Condomínio fechado três quartos.
Onde eu morava estava virando uma zona, pobre, funk e crack."
Tenho que
ler textos para o grupo da tarde. A Prefeitura disse que não pode
ter um guarda no parque porque estão acabando com o crack na região.
Quando paramos?
"Os sem-teto bloquearam
uma avenida, você viu?"
A ideologia está nos detalhes.
9.
Entre a cruz e a espada.
O novo plano diretor. Tenho que
ler o substitutivo. Como fazer o mercado imobiliário mais amigável?
Colocando as pessoas perto do
transporte, mas não seria preciso começar com mais metrô ("mantenha-se à direita"; avisos altos para evitar comunicação) e
melhorias nos bairros?
Os sem-teto.
Tenho que assistir. Como os
ingleses conseguem? Um drama histórico, uma luta.
Penso nos “a serem lidos”.
Busco e busco, pilhas no chão. Aqui, Hammett. Em cima da mesa, com
seu corte seco.
Volto para os anos 1920 na
tela, o Ulysses é de 1920?
10.
Chave em cima, chave em baixo, dezesseis degraus até o outro andar,
porta de ferro. Confiro o cartão, 30 reais. Entro no metrô, escada,
uma velhinha lenta, fecha a porta, chega, saio, espero um pouco o
fluxo que sobe. Cruzo com o fluxo da outra linha, desço mais rápido
pela esquerda, mas sou obrigado a parar, porra, até a porta mais
vazia do metrô, espero entrarem os afobados, está frio, abro um
livro. Facebook, alguém pediu um texto, tenho uma aula desmarcada,
meu irmão, uma amiga convida para uma peça, um amigo conta um caso
bizarro. Ele traz um rapaz para casa, o cara começa a pedir pra
bater, ele se assusta, pede mais e mais, recusa abraço, o cara bate
nele, ele ficou mal. As pessoas querem se destruir? As unhas chegaram
a fazer um corte, o cara dormiu no sofá, ele não pregou o olho, foi
embora sem tomar café. Logo eu, que gosto tanto de dar carinho, ele
disse. Estou estranho desde esse dia.
11.
Tempo fechado,
nebuloso. Cidade limpa, bosques, ordem. Uma massa alegre, discussão.
O professor é estrangeiro, precisamos ensiná-lo. As moças bonitas
da direita falam da dificuldade da tradução do russo, os rapazes
malhados do meio falam da dificuldade de produção, os dois homens
gays mais velhos falam de como o financiamento público está
acabando com a iniciativa no teatro. Imagino alguém semeando
sementes de intelectuais, para o bem da nação, mas algumas cabeças
simplesmente começam a devorar tudo. Saio para um café. A faxineira
perdeu um sobrinho no tráfico, a secretária consola. Começa uma
chuva e o dia está no meio.
12.
Vou ao toalete, paredes brancas, um mundo perfeito, luz, dois
operários entram, Como você vai ver o filho, se você e sai às
seis da manhã e volta às onze da noite, eu penso que no outro ano
cheguei, acordando seis horas, metrô, ônibus, como estrangeiro numa
disciplina, um mês atrasado, pedi ao professor para observar, não
fui aceito, São as regras, ele disse, já somos um grupo fechado, eu
andei pelo verde no sol, tomei café, chamei Dionísio, o
transformador, Como mudar as regras, eu pensei, eu viajei para o dia
em que comprei comida atrás do Mercado, casas decadentes, homens
carregando carrinhos de caixas, estoques da alho, eu vejo uma pobre
Catedral oprimida entre torres cinzentas, o verde de suas torres
petrificado entre carros e pichações em cimento, eu penso na
audiência pública sobre o Plano Diretor da Cidade, somos cenário
aqui, disse meu amigo urbanista, Somos a falsa democracia, ele disse,
e sabemos que antes foi pior, o último prefeito, robótico, nem
falsa democracia, e as pessoas excluídas gritam no microfone que
querem mais casas, praças, saúde, mas não é o momento, e também
nunca é o momento, sento na minha classe.
13.
Ah a arte, uma mandala cheia de manchas, um círculo em movimento,
algo entre feto, folha de outono, raios de sangue, pedras, eu
gostaria de pintar como essa mulher aos cem anos, e tudo se
transforma, eupenso, por algum motivo lembro disso, no ônibus com um
milhão de estudantes enlatados, a escravidão infinita, um jovem
negro cobertor sob os braços e chinelos velhos e calça dobrada com
fundilho marrom e ombros escuros caminhando sem rumo entre lojas,
bancos, carros, novidades eletrônicas, e eu, fazer arte, “na
pintura interessa o que não é pintura, no concretismo interessa o
que não é concretismo”, novamente vejo as mandalas em flor, as
rosas bloom do parque, lilases crespas, de laranja à amarelo, de
rosa intenso, eu daria roupas e flores para esse homem, talvez ele
tocasse jazz ou amasse uma garota, talvez sua voz trouxesse
novidades, eu chego no metrô.
14.
“o
heroísmo é uma baita mentira e não há subtituto para a paixão
individual como motriz de tudo”, eu pensava que o idealismo foi o
grande inimigo do século XIX, ter uma visão mais realista, deixar
emergir, desamarrar-se dos costumes, ter uma visão pessoal foram as
lutas, jogo, jazz, Jung e nós nos dissolvemos, não somos
valorizados, não somos vistos, liberdade formal, sopa de democracia,
nos convida e nos segrega, um rapaz expulso do Congresso pela
Liberdade por fazer uma pergunta imprópria, sabemos tudo sobre
tolerância, aceitação, diversidade, só não no mundo concreto.
Estamos emagrecendo, temos cada vez mais músculos, o pensamento é
lento, o consumo é rápido, quem vencerá, são 4 milhões de
óvulos, 100 milhões de espermatozóides, diria seu parente liberal,
só os melhores ganham. Tirésias vê algo que nós não vemos, nas
faces da Lua?, mas seguimos em frente com lanças de bronze, lanças
em punho.
15.
blues no ar da moça com dreads, eu espero na plataforma, chega o
metrô, nem um milímetro livre, micropânico, percebo que estou no
sentido errado, eu chego na estação Marechal Deodoro, por sorte
contra o fluxo, qual o som dessa gente amontoada como animais? que
sons produzem pessoas sem casa? qual o ritmo dos meninos vivendo na
rua? qual a batida da fome? qual a canção silenciosa do coração
de uma mãe que se vende? qual o som de um bairro abandonado? os sons
dos meus vizinhos fazendo sexo, música sertaneja, sim pegadores,
macho, bêbado bruto, ou 50 Reais a chupeta?, ouço a senhora do
parque, lembro de você, out of the blue here´s you and how you care
about me you cure me you save me much more I can see, no frio da
noite eu te vigio, tuas nádegas redondas, teu abraço, aconchego de
lado, boca vermelha, surpresa na madrugada, eu sobre, o calor leve,
amanhece, quero mais sono, encosto a cabeça, no mundo do sexo
eletrônico, fast-food, sistemas nervosinhos, macromachos
nanopsíquicos, mercados financeiros andantes, investidores de
anabolizantes, sons do reino mágico do dinheiro, demônios de vidro
e aço, um mundo de destroços.
16.
nada
está decidido, entro na sala todos sentados meu texto será o
primeiro, a roda, eu estou pensando sobre Ulysses,
e como a crítica falava sobre uma
androginia do protagonista, e como o livro me pareceu poético na
adolescência, devora-me, a torre, a mente como mar claro, conversas
em pontes preto e branco, sim, sim, arte vera maior mesmo com tudo
sobre ela vence, eu lembro de como minha irmã disse sobre obras de
arte que parecem absurdas, e ficam com você (ninguém entende nada
do que escrevi, não tem ação, não consigo me agarrar em nada,
quem fala) e penso que os homens bêbados e rudes já não sabem o
que fazer com as mulheres ousadas e ativas, e que o crítico parece
falar de uma homossexualidade mental porque a física o repugna, eu
perco o tema, será isso, apenas clichês, mas o que impede de ele
ser um mulherengo e querer as nádegas-melão de Stephen, assim como
a prosa, era vida habituada, e lembro da mulher testemunha relatando
50 anos depois sobre sua vagina fios e levar choques dos policiais,
camponeses nus com mel na pele até as vacas lamberem em carne viva,
a boca dos estudantes no escapamento acelerando o carro, é uma
guerra eles disseram, a empresa ensina demitindo quem protesta, o
fazendeiro ensina a ensinar quem manda, o pobre tem sede de comando,
o muro caiu, cercas e tropas pela rua, a liberdade triste, estou
impaciente, tenho que ficar mudo enquanto a roda roda, o que está
acontecendo, procuro um abrigo, marinheiro na tempestade, minha mente
em velhas histórias, escreveria eu tudo em detalhes como P ou J quem
leria?
17.
“O
que realmente eu represento pra você nesse tempo em que nos
conhecemos?” Eu leio do e-mail, quase duas horas, “você se
esconde”, será que eu me tornei realmente frio e medroso, esqueleto bem científico, proto-humanista matemático? Se algo sabemos
depois do século XX, diz o cientista, é que nada é o que parece,
mas todas as questões parecem decididas, mundo é máquina, só
resta um mais, desde o amor por império de Igreja, ou parte do real
é a teoria, e somente a imanência pode, o quê?, ainda, talvez, o
aqui e agora, salvo, brilhante, a beleza, como?, intrínseca, e se
diz que existe uma quantidade de energia inerente ao próprio espaço,
talvez infinitos mundos. Estamos todos nesse barco, a pressa nos
cega, o mercado levou tudo que eu acreditava, a luta toda foi
apagada, o chão secou, pouca tolerância, de repente os centauros
estão voltados para si mesmos, em formação de gueto, violência
fria. Uma mensagem – estou namorando; eu também fiz uma escolha,
aquele abraço, a casa.
18.
Acorda
a carne na cama por terra e canto. Você chegará. Permanecer.
Polifonia por favor. Intensidade, improviso, flexibilidade para
encaixe. Perguntar. O mundo clichê. Sim.
Afonso Lima, 2014