Páginas

Ajude a manter esse blog

domingo, novembro 27, 2016

O canto do Pássaro Vermelho

Ele conta uma história para os netos, que estão na cama:

Os fantasmas estão sobre as montanhas de ruínas. Chega o pássaro de penas vermelhas - penas que caíram uma vez na China e até hoje se canta uma canção sobre elas.
- Pássaro Vermelho, que conhece o empíreo e o trono de Deus, diga-nos como está a cidade do outro lado.
- Um milhão sob cerco. Logo, sem comida, combustível e água.

Uma mulher-fantasma chora, repetindo:

- Três mil anos antes do Jesus! Três mil anos antes do Jesus! Já se fazia comércio nessa cidade! Ha-lam! Ha-lam!

O fantasma envenenado a abraça.
O fantasma sem cabeça aponta a torre de onde foi ferido atrás da névoa:
- Eu percebi que iríamos morrer quando notei que não tínhamos remédios, fluidos intravenosos, antibióticos, medicamentos para dor, conjuntos de sutura e médicos.
- Ouvimos as pessoas nos túneis do inferno, só pequenas unidades - diz a mulher que escorre sangue.

- Quatro meses sem comida. Mergulhados no caos, e o regime permanecerá no poder - diz o Pássaro.

O fantasma sem um olho pergunta:
- É verdade que os que mais gastam em bombas também têm pessoas que têm fome?

O Pássaro abre as asas:
- Sim. Há muitos anos, meio milhão de pessoas morreram por causa de armamento químico no oriente. Agora, com essa desculpa, se começou o bombardeio. 

O fantasma sem cabeça pergunta:
- Tudo isso é medo dos fundamentalistas? Eles foram treinados na Pérsia. Eu lembro quando o ouro negro foi nacionalizado há muito tempo na Pérsia e exércitos invasores tomaram o país. Os religiosos conservadores se rebelaram. Hospitais pegando fogo. Crianças mortas pelas ruas. Bombardear a cidade da Rota da Seda é o primeiro passo.

- Silêncio, diz o Pássaro Vermelho.
Uma fila de fantasmas chegam da cidade e o pássaro canta uma canção triste. Nenhum deles consegue conter as lágrimas.

Afonso Lima


sábado, novembro 26, 2016

Os filhos do sol

Lá na terra do povo sami
cinza e azul
azul e cinza
o peixe assiste
o fogo da finlândia

Lá na terra do povo sami
branco e azul
azul e madeira
e o galho branco
no frio da finlândia

O povo sami estranha
o gelo demorado
o rápido voltar
do lago

Lá na terra do povo sami
o branco já se foi
e o peixe pensa: tudo mudado
o vermelho e o azul

Afonso Lima






sexta-feira, novembro 25, 2016

Para viver numa sociedade fascista

Para viver numa sociedade fascista, você precisa ter um carro. Porque o carro cria viadutos e gera lucro. Para viver numa sociedade fascista, você precisa dizer ao seu filho que um homem só é um homem se puder impressionar uma mulher (os jantares, um diploma e a potência de um carro). E você precisa saber o que são bancos de investimento. Porque isso vai lhe ensinar a pensar em tudo como consumo, autocomplacência, economia sem produção, risco calculado, legalidade ambígua e poder individual. O sucesso é reconhecido, vale uma fraude contábil. Simpatia é melhor que informação. Mas informação é poder e, se for poder, é necessária. Para viver assim, é preciso ter um foco e um foco apenas. A riqueza prova o valor. Buscar inspiração em marketing corporativo. Para viver assim, una-se a quem pensa como você: envios de mensagens, disparos de Whatsapp e preparação das saídas às ruas. E você tem de eliminar da sua fala coisas como "sindicatos", "impostos" e "solidariedade". Para isso, forte trabalho de comunicação via grupos de Whatsapp. Se você for duro com os "malvados", algo bom virá para todos, queiram eles ou não. Para viver numa sociedade fascista, nada pode dar errado. Você deve ouvir sempre as mesmas pessoas. Para viver numa sociedade fascista, você precisa ter carisma e esconder a pena e nojo das pessoas que (é a vida) não estudaram, só humilhar os fodidos em particular, saber usar a vaidade para usar as pessoas. É preciso não se identificar com os de fora. É preciso ver e ouvir sempre de novo para ter certeza de que só a causa é legítima, ainda que alguns atos sejam lamentáveis. Para viver numa sociedade fascista, você precisa esquecer que pode estar errado. Para viver numa sociedade fascista, você precisa achar que os pobres dão trabalho. E é preciso alguém para vigiá-los. Para viver numa sociedade fascista, você precisa produzir miséria e produzir balas de borracha. Para viver numa sociedade fascista, não faça nada. 

Afonso Lima

quinta-feira, novembro 24, 2016

A casa

“Quem é o líder”, o oficial desce do carro.

Demoliram as moradias - ele trabalhava na fábrica e levou os filhos embora. 

Uma casa com os pés no chão/ o vento não entra dentro/ um colchão e alimento/ a quietude e a alegria

"Não temos lideranças”, dizem e os advogados do movimento chegam.

Obras do novo prefeito, levados ao bairro afastado - sem luz e sem ônibus. 

uma casa é edifício/ variados formatos e tamanhos/ uma casa é onde se compartilha/ signos de amor

"A invasão aqui está consolidada, vamos esperar, serão retirados após uma autorização judicial”, diz o tenente.

Chegam depois da seca horrível - só podem pagar terra no mato, tijolo e tijolo no domingo. 

destinado à habitação, madeira ou pedra/ verão ou frio/ de um ou dois andares/ crianças olham nuvens no teto/ as estações antes e depois /

Mal tomou posse e já disse: “a Constituição não cabe no PIB”.

Aluguéis triplicam - na primeira semana já acabou o salário, ir para mais longe. 

uma casa com os pés no chão/ nela nascem e morrem/ flores no jardim/
uma casa é onde se compartilha/ a quietude e a alegria

O ministro mandou suspender a contratação de 11 mil casas.

Moradia é mercadoria. A cidade é investimento - disse o prefeito. 

o menino não sorriu/ bambu cruzado/ os esquecidos erguem/ rápido o barraco/ o sol vai nascer e o frio


Afonso Lima


quarta-feira, novembro 23, 2016

Renascimento da cidade

São quatro pilares da cidade
um dragão em cada um deles
na catedral, no rio, um portal no lago e outro no bosque
e a cidade seria toda transformada em aço e escombros

Forças da repressão e mentira
Luz incandescente, tigre
Na floresta e na noite
Água, água viva do renascimento

os sinos tocam de hora em hora
oferecem aos pássaros oração
a cidade brotava entre pedras
será reerguida, os soldados trocam de pele

Forças de explosão e lanças
Quebrando os vasos da memória
Luz incandescente, tigre
Água, água viva do renascimento

as serras elétricas têm licença
pinheiro a maior árvore por não ser nativa cai
construção do empreendimento comercial e residencial.
o sonho de ter uma praça não se consumará

O Labirinto e o canto que guia
Horrores da festa destruída
Luz incandescente, tigre
Água, água viva do renascimento

a vaidade impede qualquer espontâneo fluxo
a produção ordenou os ritmos e o exílio dentro
água, vem mover os entulhos
a fala livre do poder

Forças do pesadelo e correntes
Luz incandescente, tigre
Na floresta e na noite
Água, água viva do renascimento

o canto do medo silenciou nossa voz
o apocalipse é uma espécie de sono e a máquina monstruosa
a música das profundezas vai correr pelos portais
nossos ossos tocarão a terra novamente

Afonso Lima


domingo, novembro 20, 2016

Amor na incerteza

eu não tenho paciência para a humanidade
e é preciso criar laços
eu quero ver o lado pior dos outros
e quero ver o que é bom no outro
eu me irrito com coisas pequenas
e sonho com trazer à memória quando você também sofreu
eu falo por ansiedade e não escuto
meu poema é soco e odeia a mente maquinal
eu fico preso ao visto porque eu também quero mais
e crio espaço com a linha
eu quero que as pessoas mudem rápido
e me interessa a mãe negra, a criança solitária
eu esqueço qualquer coletivo quando estou com medo
e acho que o medo é a origem do controle e o controle é inútil
eu me deixo levar pela preocupação e me torno agressivo
e sei que as pessoas não são ouvidas
eu quero demais e exijo demais
e sei que o poema é entender tão profundo que se chora
eu não entendo porque os outros correm e não têm tempo
e sei que o sorriso é revolução e dou voz ao esquecido
eu quero conseguir as coisas rápido demais
e sei que criar pontes é a função do passado
eu quero dar o outro tapa em quem me deu na face
e sei que o respeito já está onde menos espero.

Afonso Lima

quinta-feira, novembro 17, 2016

você, agora

neste momento, você está vindo ao mundo
o mundo é maravilhoso, posso te dizer
se você olhar bem dentro de todas as pessoas
elas olharão para você e algo de bom surgirá
todas elas têm algo especial e novo
neste momento, você está vindo ao mundo
guarde um silêncio dentro de você
não se deixe arrastar pela excitação
neste momento, você está vindo ao mundo
e você será melhor do que nós
a única riqueza e a única herança que te deixo
é a de é preciso escutar, conhecer, estender a mão
e os outros vão perceber que você também é como eles 
neste momento, você está vindo ao mundo
existem lágrimas e funerais, e o entendimento nos liberta
eu te abençoo com a palavra significado
neste momento, você está vindo ao mundo
nos perdoe pelo que não sabemos
nos perdoe porque não temos muitas respostas
nos perdoe porque sabemos demais
vamos fazer juntos o que é ser humano
agora ou antes já, você está vindo ao mundo
aprenda a andar entre todos 
mesmo o que não é igual, o que assusta
os velhos vão te ensinar, as crianças também, os erros e as quedas
você pode errar e compreender como é amar 
você ganha um mundo e o mundo ganha uma nova chance 

Afonso Lima

terça-feira, novembro 15, 2016

Conflito criador

- Adeus, América - disse Mr. Bigode enquanto acendia o charuto na cadeira de vime no jardim.
- A democracia-show venceu. Pelo menos, por ora.
Maria Lúcia servia a limonada para os dois homens de sua vida. Ela se sentia elétrica, assustada, agressiva e em choque. Mas precisa respirar e tentar entender... A democracia não era o que achava. Sentiu-se em meio à ruínas. A América corporativa-arcaica.
O jovem adolescente parecia desligado. Estaria armando uma revolução pela internet ou jogando vídeo-game?
Mr. Bigode já tinha muitas opiniões:
- Sociedade baseada em slogans. São camadas de conservadorismo, e além do conservadorismo, fascismo. Empresários pensando em como acabar com os salários. Trabalhadores empobrecidos contra trabalhadores mais empobrecidos ou desesperados de outros países.
O filho se joga na piscina.
- Ela foi ferida porque não conseguimos um dos três princípios - além da participação e da, digamos, justiça imparcial - para fazer com que ela andasse: a informação sadia para o julgamento correto.
Maria Lúcia tirou as sandálias. Sentiu a grama. Havia o drama de o filho não se importar com o negócio do pai - uma padaria. Uma ótima padaria, doces, almoço, pães, vendiam muito bem. "Você devia se importar, você depende disso", dizia o pai.
- Penso se a mídia, preocupada com desconectar uma coisa da outra, gerou o sistema de fragmentação do pensamento. A mídia, chego a essa conclusão, não serve para informar, mas para gerar um estado de emergência contínuo.
- Eu sou contra a ocupação das universidades - disse o filho.
Os pais olharam um tanto chocados.
- Quero estudar.
Ela sabia que seu filho era eco-ativista, ciclista e respeitava as minorias.
- Eu sei o que significa essa PEC, mas mesmo assim quero estudar.
Ela pensa que o medo nos leva a tomar as decisões mais rápidas. Ou seja, controlar os pobres e deixar como está o resto.
- Enfraquecer as massas - disse o pai em telepatia.  Se o trabalhador se informar e tomar decisões, será mais forte e vai exigir direitos. Meu pai sofreu muito com o fascismo na Espanha. Eu sou pequeno empresário, mas não sou fascista.
- Eu não quero pagar imposto. Meu professor diz que o conservadorismo é uma doutrina válida - o filho respondeu.
- Os bilionários não querem pagar imposto... Os trabalhadores empobrecidos precisam do Estado, mas também não querem imposto. A base disso tudo é o principio de solidariedade...
 - O imposto alto é o que faz as empresas americanas irem para o México, diz o filho. Um orçamento equilibrado é o que pode nos salvar.
A mãe pensou que aquele menino não tinha poupado trocados para pegar o ônibus para a universidade como ela. Como haviam ficado tanto tempo sem se falar? Bom dia, afinal, não era diálogo.
- Filho, ela disse - O problema é que os avanços dos partidos à esquerda nunca são mostrados na TV. É o bloqueio. Assim ficamos sem julgamento.
O rapaz respondeu:
- Não me interessa apenas julgar que alguém podia ter feito e não fez. Quero mudar o sistema que amarra até quem quer mudar.
O pai, vermelho, disse:
- Eles acham que o Partido Democrata - esse, da Wall Street - é  extrema esquerda, loucos totalitários com dinheiro do George Soros. O movimento pacifista dos anos 70 é o mesmo "comunismo dos antiamericanos" de sempre e o Occupy.
- Eu quero a liberdade de decidir. Eu vou lutar pelo que eu acho certo. Eu não sou um animal ignorante.
O filho saiu.

Afonso Lima

segunda-feira, novembro 07, 2016

ficção

sempre pode ser outro
o viajante que se perde
na luz
a beleza inútil do jarro de metal
batalha de crianças
fantasia necessária
louco em marcha
imaginando um caminho
o céu é transformação
o que a china sabe no sol?
o que o grego sente ao fechar
os olhos?

sempre pode ser outro
a hybris de não voar
punição pelo sofisma
porque o lógos é respiração
exercitar alternativas
ninguém sabe como será
revolução

o poema como ferramenta
política
estudo do tumulto
areté do ouro falso
analítica do sonho
a ficção da folha em detalhe
o infinito é grande demais
a falta que alimenta
o mundo

sempre pode ser outro
outros modos de vida
louvado seja o dragão
que a realidade é inacabada
o erro das coisas ainda não nascidas

Afonso Lima











domingo, novembro 06, 2016

Vergonha

Gente pobre me irrita
Eu sou o novo escravo
Empresário a gente imita
Eu compro, lavo e passo

Você deve ter vergonha
De ser assim esquerdista
Querer igualdade, que preguiça
Bom mesmo é cada um por si

Se eu subi
Foi por suor e graça
Sou o último que ri
Seja liberal-reaça

Afonso Lima


sábado, novembro 05, 2016

o chá

o estranho se move sob o viaduto  
o hálito impuro nas paredes
o impossível descanso da morbidez
o labirinto desfeito em linhas retas
poder delirante em ávidas metas
outra face talvez

apodrece o homem na multidão
o império bárbaro impõe seu guião
mas o poeta armado propõe outro lado
uma conversa e rompe-se o cerco
um chá quente e acolhimento

Afonso Lima


sexta-feira, novembro 04, 2016

Meu companheiro

Uma pátria, a metáfora, obra que gera diálogo
Companheiro que evoca a companhia
Ensaios de vida, a parada transfigura
a cantiga da dor não esquecida
Eu me fortaleço, poderes de cura
Irmão, luz contra o medo feroz do evidente
Em um tempo em que é preciso seguir
e difícil

Meu companheiro
Num tempo em que nos querem condenados
a renunciar ao sonho da mudança
Dançamos tardes tantas
Eu, tão infiel e sempre teu
Tua voz na cama ou não
Tua magia, eu vejo o horizonte distante

Nas noites em claro preso
Contigo, outro mundo, analiso
a maldição do poder do discurso
Companheiro suave, navio seguro
Coro da história que alimenta
Outro texto e um renovar do tempo

Meu companheiro
Tenho de tomar posição em uma época
carregada de oposições, querem velocidade
Tenho de seguir um caminho e colocar tudo em seu lugar
e dizer algo, ainda que no erro

Afonso Lima




Encontro na floresta

- Aqui, no meu elemento
floresta ao lado do rio do inferno
chamo o Anjo primogênito
príncipe dos imortais das sombras
para a vingança contra o Deus inimigo
sou um polvo adolescente e por mais de duas décadas tenho ouvido
seus lamentos fúnebres, o fel de sua bondade e sua filosofia da inércia
podia ir rio adentro, mas não antes de tornar-me
o Conde do Outro Mundo
carne macia, bico afiado
eles prenderam meu corpo entre barras de ferro
animal selvagem com sangue quente
tudo que eu amei foi envolto em mortalhas de medo
minha consciência gótica que vê como
covardia a razão das chaminés e os acordos do patriarca
o filósofo republicano, o pedagogo eloquente ganhando medalhas da burguesia
política de homens gordos, república contra o homem que opera a máquina
eu, nascido na relativa liberdade e humilhação das colônias
tive de aspirar o ar mofado da metrópole
meu corpo infestado de doenças da moral
o outro mundo que eu vejo e canto
não tem objeto, conceito ou método
a natureza é viva e cresce em mistério
e o coração dos homens é um abismo
a física não explica o caos do fogo do espírito
nem o século XVI é sistema para as teias da aranha
que eu seja o demônio a tirar de formação os bons soldados da nova geração
sonhos absurdos e ciências sem utilidade os perturbe
que eles corram de pavor quando a morte soar seu corno
meus cantos sejam o portal para a confusão de novos dias
eu ofereço meu corpo pela teologia da loucura
eu quero destruir rei, confessores e meu eu
minhas garras e asas de morcego
eu quero tua tocha escura e veneno em meus tentáculos
para matar os herdeiros dos sifilíticos nobres gloriosos
vingança pela guerra contra o herói pálido de nossa era assassina
Pai terrível, entrego-te minha vida.

Na floresta, um animal surge.

Afonso Lima


No jardim

fincando as patas em tua perna
você, que não gostava de gatos
e a eles tentava proteger

nunca cheguei a entender-te
por certo nem vice-versa
água era o que nos nutria

luz amarela diagonal
quando inicia novembro
algumas flores em cachos e o cinza

desvestir-se em tropical alarido
um pouco como branco rio tardeiro
você, feito de bronze de ilha
e decadência de mil romas

as patas te submetiam
fincando as patas em tua perna
e nós dormíamos abraçados

Afonso Lima

quinta-feira, novembro 03, 2016

Eu sou Alpha

Quando J. abandonou o escritório para se dedicar a pesquisas ocultistas, sua família preocupou-se. Logo, um sobrinho decidiu entrar com um processo para tomar seus bens, a casa e os imóveis no centro da cidade. Apesar do patrimônio, ele vivia como um monge - a casa estava em ruínas, os cômodos cheios de objetos estranhos, máscaras, desenhos, papéis e livros. Todos os dias a cozinheira preparava a mesma combinação de frango, vegetais e arroz. 
Seu estudo começou no dia em que alguém, lendo o jornal, comentou:
- Uma doida vidente diz estar recebendo mensagens de uma entidade chamada Alpha.
No outro dia ele pediu demissão.
A cozinheira, que chegava todos os dias às 7h, chamou o sobrinho ao perceber que J. desaparecera sem levar nenhuma roupa, e ele notificou a polícia. Suas anotações no caderno azul - encontradas pelo sobrinho, diziam:

Dia 20 de outubro

Finalmente, fui procurar a senhora que dizia estar recebendo mensagens da entidade. Ela mora em Santos num conjunto de casas muito deterioradas. 
Ela me falou que a entidade dizia haver uma mensagem urgente a ser transmitida e pedia que realizasse um ritual para a abertura de uma espécie de portal. Ela não tivera a coragem de fazê-lo, mas deu-me as indicações. A entidade dizia chamar-se Alpha. 

30 de outubro

Eu realizei os ritos indicados. Coloquei no meu altar uma pirâmide, velas, evoquei os nomes indicados e chamei a entidade. Senti um cheiro forte de incenso, mas fora isso, nada ocorreu. 

31 de outubro

Acordei com um sonho estranho. Uma luz muito forte emana de um ser que é dois seres unidos. Ela diz ser Spodet, a mensageira que aos homens "o que é legítimo aos olhos dos deuses", portanto os dias benéficos. Sábios desenham símbolos com a contagem dos dias. A luz entra pela abertura do templo e toca a imagem da deusa. O deus de cabeça de cão aparece. Ela diz que devo preparar-me para descrever o que me for inspirado. 

Dia 2 de novembro

Começo a desenhar imagens que me surgem. Algumas fórmulas. O lápis já não é suficiente. Tenho que comprar diversas cores. é uma espécie de seita, homens de túnicas brancas, estão venerando uma entidade. Mas a entidade não surge imediatamente. Vai ficando mais e mais visível. Por fim, ela tem um corpo. Eu decidi procurar por essa entidade. 

Dia 5 de novembro

Spodet me leva a um professor que tem um livro sobre mitologia. É um medico, que dá aulas na universidade. Mostro-lhe as imagens. O homem está assustado e me convida a ir à sua casa. 

Dia 6 de novembro

Ele pediu para eu dormir na sua casa. Fez rituais de proteção. 
O homem me diz que, segundo tradições antigas, vibrações agressivas podem se tornar regras internalizadas e viram identidades que podem, por um fenômeno chamado co-emergência, trazer uma forma semelhante. "Quando uma entidade é cultuada surge energia associada". Sombras aparecem quando as regras produziram e infestaram o eu. 

Dia 8 de novembro 

Eu decidi realizar os ritos na casa do professor e abrir um portal. Jantamos e ficamos na sala conversando até a lareira extinguir-se. Ele cochilou e viu a imagem da entidade nefasta. 
Eu pensei que sua mesma ambição podia ter feito co-emergir o Ômega.

10 de novembro

O professor estava muito assustado e pediu que não o procurasse mais. 
Também desisti de evocar Spodet ao ler que ela conferia poder, mas podia trazer ambição ardente. 
Mas não pude deixar de pensar no fim daquela mensagem urgente. Lembrei-me de uma fórmula que escrevera sob símbolos do deus-cão. 

10 de novembro - Madrugada

Repeti a fórmula no altar.  Escrevi uma narrativa. 
Uma seita de sábios- brancos, homens reunidos em torno da ambição pelo conhecimento. Essa seita planejava tomar o poder usando a influência do mundo espiritual para aterrorizar e negociar com juízes, políticos e homens poderosos."

J. desaparecera no dia 11. O sobrinho herdou a propriedade e passou a ficar inquieto com uma opressão constante e uma presença que dizia sentir quando andava à noite pela casa. 


Afonso Lima












O outro Pascal

Pascal andava à cavalo perto do castelo. Haviam sido convidados pelo conde para a caça, mas ficava rapidamente entediado com o latido dos cães e os tiros contra as lebres. O sol se pondo perto do rio parecia muito mais promissor.
Mas ele se distraiu e o sol já estava vermelho e baixo demais quando percebeu que tinha de voltar.
Na penumbra, tentava lembrar o caminho. Logo notou que estava perdido e a lua já brilhava no céu.
Viu uma casa com fumaça saindo da chaminé e resolveu bater para perguntar o caminho.
Quando a porta se abriu, ele por pouco não deu um grito. O homem parecia muito consigo mesmo. Apenas tinha o cabelo mais loiro. Seria um parente distante? Perguntou pela estrada, o homem sorriu e disse que era comum os viajantes se perderem ali. .
- O senhor não é o matemático Pascal?
Ele teve de dizer que sim.
- Eu tenho lido sobre seu trabalho. Mas gostaria de lhe dar uma opinião, se não se importar. Sente-se, tome comigo um copo de vinho e depois eu mesmo o levo até a entrada do castelo.
O cientista não teve escolha e sentou-se ao lado da fogueira. Logo estava sentindo-se confortável numa poltrona fofa e com vinho nas veias. O outro trouxe uma caixa de metal de cima de um móvel.
- Eu criei uma máquina para calcular.
- Uma máquina?
- Sim. Ajuda nos cálculos mais avançados. Queria fazer as quatro operações, mas ainda não consegui construir. Quero que o senhor a leve e a mostre na corte. No futuro, os seres mecânicos podem vir a trabalhar pelos homens, e espero que isso prove o quanto somos diferentes deles.
- Uma máquina de calcular... É um autômato? Acho que desenhei algo assim quando era criança. Ouvi falar que os gregos tinham algo parecido.
- Com algumas engrenagens se consegue fazer a adição e subtração.
- Como funciona?
- São dois conjuntos de discos: um com introdução dos dados, outro que armazena os resultados.
Eles ficaram examinando o aparelho. O estranho disse:
- O senhor sabe, acho que nossa ciência caminha para o abismo. Tudo é razão e especulação. Mas o que significa a existência? Um homem que alucina, não vê como real o que ele acredita ser real? O ser é ser percebido.
- O senhor se refere à filosofia do senhor Descartes? - disse o cientista.
- Sim. Ele bem queria um mundo em que tudo fosse máquinas, inclusive o homem. Ele acha que os princípios são claros e distintos, mas na realidade são uma aposta, são confusos e obscuros. Ele criou uma seita de racionalistas. Não considera as limitações, a impossibilidade de percepção total.
Sentiu alguém observá-lo pelas costas.
Ao virar-se, viu a si próprio como cadáver azulado, com um verme caminhando pelo rosto.
Pascal sentiu-se tonto, sua visão escureceu e percebeu que ia desmaiar.
Quando acordou, estava ao lado de seu cavalo e a casa havia desaparecido.
Pouco depois, abandonou tudo e decidiu viver recluso no mosteiro de Port-Royal no qual tentou-se reviver a vida dos monges do deserto.

Afonso Lima