Nota do autor - Um amigo me ligou perguntando se
algum dia havia publicado “observações de uma viagem à Porto Alegre”. Achei que
era uma piada. Ele disse ter ouvido no rádio um editor que publicou uma
antologia de relatos de viagem “na qual consta um ‘à vida burguesa do final de
ano”. Procurei o editor. Ele me disse que recebera por correio o texto impresso
e não conseguira me encontrar. Mas estava disposto a pagar os direitos, “achei
que deveria ser publicado, mesmo assim”. Disse-lhe que eram observações feitas
sem nenhum trabalho de reelaboração, que não fazia ideia onde tinham ido parar
nem como chegaram até ele. “Não nos cabe saber tudo, ele falou”. Seja como for,
não me sinto no direito de proibir a obra. Afonso Lima, Porto Alegre, 2013
*
Véspera de Ano-novo, os supermercados lotados. As
crianças pulam, impacientes com quarenta minutos de fila, as mulheres escolhem
flores, reclamam porque acabou a ervilha congelada, decidem se devem levar mais
ave ou peixe. Édipo também sofreu.
Um sol forte nas pedras, uma criança ou um monstro
gritam um nome incompreensível. Precisamos comprar.
É Natal, as crianças brigam por uma garrafa de 3L
de coca ou guaraná, um homem de fones de ouvido tem um ataque epiléptico no
caixa, as senhoras choramingam e reclamam na fila enquanto os netos compram
mais salgadinho envenenado.
Árvores enormes, vindas de alguma era
Pré-histórica, o casario antigo, com sacadas, alguns bens velhos.
Um homem de meia idade loiro, alto, com três
crianças cheias de energia que correm, puxam uma a outra, entram e saem de
lojas na praça de alimentação. Uma mãe jovem que dá uns gritos elegantemente.
A rua muito escura, a Praça reformada, mas
ameaçadora, poucos postes simulando luz na romântica rua Belle Époque.
Pessoas nos bares, alegres, jovens inteligentes
falando de cinema, arte, literatura ou televisão. 34°, é noite.
Sol inclemente. Pessoas abandonadas no chão, ao
lado da plataforma de ônibus de cristal azul. Um homem sem camisa e seus sacos
de lixo preto.
Casas muito antigas, cartazes coloridos,
restaurantes fechados.
Flores pink explodindo nas árvores, casinhas com
jardim. Um jasmineiro gostoso. Casas cor de laranja, casas com pássaros à
janela. Cercas brancas e trepadeiras.
Muitas árvores, a Mata Atlântida, cobertas de grama
verde, alameda de pinheiros, ipês, palmeiras, uma copa rosada esplêndida.
Um segurança que te olha de cima abaixo para dizer
as horas.
Muitas lojas estéreis, vidros e compras que não
quero. Laranja mecânica no palco, hortelã da Argentina, vinhos-salário-mínimo,
carne, carne, carne. Um passeio.
Graças a Deus as pessoas compram livros, ou estão
pegando o telefone do vendedor?
A calça do segurança está rasgada, vejo a virilha.
Ele agradece.
A moça do café tão simpática, Fizeste uma nova
comanda, Como senhora?, Erraste o pedido e fizeste outra, com um sorriso, a
moça cora e entende, boazinha. Simpatia demais.
Aqui vemos um Chalé do Século XIX, reformada, em
frente ao Mercado Público incendiado, mais caro e delicioso. Saíram os camelôs
que criavam agitação, parece deserto, só uma mulher carrega os filhos num
carrinho de supermercado.
Averiguação. Policiais param um homem na rua. Sem
camisa. A mulher se aproxima, nervosa, ela traz – documentos? Safada. Sempre
carteira assinada. Seis filhos. Tapa na cara. O cara começa a apanhar. Cabeça
pra frente, cabeça pra trás, pontapé. Fio de sangue? Sou pedreiro. Pelo amor de
Deus, não leva. Quer prender a mulher por participação no tráfico.
Senhor policial, às vezes. Mata e some. Aterro sanitário. Nem pra enterrar. Eu
observo e penso se posso fazer algo.
Afonso Lima