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domingo, julho 27, 2014

O que (não) acontece com o cinema brasileiro?


Tudo bem, "cinema brasileiro" é amplo e talvez exagerado. Sim, estamos muito bem, numa nova explosão de títulos. Pode ser apenas o impacto a um filme (nosso), depois de outros filmes (de fora). Por um lado é um pouco a nossa ansiedade de que, já que nossa produção não é tão grande, querer sempre um filme inovador. O que quero propor aqui é, não sem uma certa megalomania crítica, unir essa questão à de uma sociedade onde há pouco debate: um aluno de faculdade de cinema me diz que "tapinha nas costas" é tudo que os alunos trocam uns com os outros; por outro lado, uma rebeldia histérica, antitudo, uma alienação pela revolta algo psicótica, é o que sinto em muitos indivíduos de classe média, que tampouco fazem uma crítica produtiva aos sistemas de dominação.

No 9º Festival Latino-Americano temos tido a oportunidade de ver uma série de filmes argentinos. Dia, 26/7,depois de assistir "Os insólitos peixes-gatos", de Claudia Sainte-Luce, era a vez de "Corte Seco", de Renato Tapajós. (Fila quilométrica; clima de estréia em Cannes; deve ser o último grito). 

O homem vai ser torturado. Vê seu amigo sendo torturado. Close no rosto de medo. Cenas de tortura. Chega na cela: "E aí, foi forte o pau?" Ele não mexe as pernas. "Eu não posso mexer as pernas". Ele se arrasta até a parede. Chega outro preso. "Eu não posso mexer as pernas". Chegam mais presos. O homem vai ser torturado e assim por diante. 

Em "Os insólitos"... temos uma moça esquisita, que trabalha como promotora de salsichas no supermercado. Uma relação interessante se estabelece entre ela e uma mulher com HIV, mãe de 4 filhos, depois que ela tem uma apendicite e tem de ir ao hospital. Os primeiros 15 minutos de filme são silenciosos. Muita gente chorando no final. 

Esse, e outros, são filmes argentinos que focam em personagens, sem grandes inovações formais, mas com interesse, roteiros incríveis, mostrando a complexidade das relações humanas, sua ambiguidade. "Até o último momento você não sabe o que vai acontecer", disse uma amiga sobre um filme que tinha tudo para ser a velha história de "homem faz justiça com as próprias mãos", "Matar um Homem", de Alejandro Almendras. 

Até mesmo filmes sem pretensões experimentais, como "O chaveiro", de Natália Smirnoff, e "O crítico", de Hernán Guerschuny, delimitam bem uma vida, mostram aspectos vários de um personagem, fazem referência à outros filmes e usam o humor de forma inteligente. No primeiro, uma névoa misteriosa cai sobre Buenos Aires, fazendo com que um chaveiro tenha sintomas extra-sensoriais (diálogo com o surreal da tradição). No segundo, um crítico de cinema cético, que odeia comédias românticas, se apaixona. Hilária a cena em que ele corre na chuva e é parado pelo pessoal da produção de um filme, que fez uma chuva artificial. 

O filme "Reimon", de Rodrigo Moreno, mostra a vida de uma empregada doméstica. (Lembra o ótimo "Domésticas"). Apesar das longas (e talvez "demais") leituras de Marx, por um grupo de universitários, um dos quais é o dono da casa onde ela trabalha, o filme chega a parecer um documentário e foi aplaudido no fim. 

Uma primeira reflexão, bem básica: muitos de nossos filmes falam demais. Não confiam na imagem. Além disso, mesmo quando o tema é bom, como "Os ventos que virão", de Hermanno Pena, de repente surgem falas que sintetizam um mundo, mas nunca ocorreriam na vida real, como "os nordestinos são irracionais". (Um dos truques da filmagem de "Hoje eu quero voltar sozinho", é o ensaio das falas com os atores, diz o diretor Daniel Ribeiro, de forma que fiquem muito naturais).

Algumas vezes, o problema é a filmagem. Não há ruído, não há distanciamento para que a cena seja "preenchida". Um ataque de skinheads pode virar uma cena cômica se não temos o realismo necessário ("Do lado de fora", de Alexandre Carvalho). Nas cenas de tortura de "Corte Seco", por exemplo, experimentei fechar os olhos. Tudo foi muito mais interessante. Alguém me diz que as cenas são fortes: justamente porque já viraram lugar comum, acabam sendo insossas. É a velha questão da revolução pela forma.

Outro caso interessante é "Super Nada", do meu amigo Rubens Rewald. O protagonista é um ator que vive os dramas de ser artista no Brasil; ele é carismático e te conquista (assim como Marat Descartes, o Quiquito de melhor ator em Gramado). Ele conhece um ator de comédia da TV (Jair Rodrigues); ele deixa o comediante com sua namorada e vai comprar cerveja; volta, ela está sambando para o outro, ele lhe dá uns socos. Talvez o comediante tenha morrido, eles o colocam na rua, chamam uma ambulância.

A partir daí o protagonista afunda em culpa e desespero e... Alguma coisa na forma como se dá a sedução do comediante me afasta. Da mesma forma a queda do protagonista não me afeta tanto. (Lembremos que na série "Breaking Bad", nos primeiros episódios, os personagens principais derretem um homem em ácido e o protagonista enforca outro). No meio do filme, você imagina mil e uma coisas que vão acontecer quando o ator entrar na TV, mas fico com a impressão de que pouca coisa acontece.

Temos também o caso de "Flores Raras", de Bruno Barreto, mais ligado a uma ideia de filme para grande público, mas no qual o personagem de Lota Soares torna-se logo um estereótipo de "latifundiário brasileiro", impulsivo, mandão e insensível. A passagem rápida pelo motivo da depressão (uma frase, "a ditadura me tirou a obra") mostra o quanto a abordagem novelesca do drama familiar impede a compreensão das emoções envolvidas.

No Festival, outro exemplo é o impacto, dia 28, de "Romance Policial", de Jorge Durán, depois de "Refugiado", de Diego Lerman (o mesmo de "Olhar Invisível"). O primeiro tem situações artificiais de sobra: um diálogo explicativo ("Atacama!"), o mesmo problema de mostrar toda a vida do sujeito para explicar o que ele está fazendo no Chile (por que não começar na cena em que o protagonista descobre um corpo?), e pior, uma cena de "tortura" quase cômica. (Um simples recurso de idas e vindas no tempo já teria um resultado muito melhor).

O segundo, com imensa delicadeza, mostra o tema da violência contra a mulher pelo olhar de uma criança: é assim, nenhuma sinopse pode contá-lo. E não adianta saber que Jorge Durán escreveu os roteiros de "Lúcio Flávio", "Pixote" e "Mulher Aranha", todos filmes incríveis. 

Será o "novelismo" de nossa cultura? Será que filmamos pouco, temos poucas críticas? Será que na cultura dos guetos que criamos (classes, universidades, especialidades...), pega mal criticar amigos? Será que a sociedade argentina se posiciona mais? Será que seus universitários tem mais ligação com sua cidade? O cinema argentino tem o INCAA, que financia muito (ninguém fica mais de 2 anos com um roteiro na gaveta, me diz uma diretora argentina; aqui, a média é 4 ou 5 anos), tem salas públicas pelo país e exterior (salve SP Cine, recém criada), tem uma ligação forte com os novos autores que são publicados por pequenas editoras, tudo isso deve ter influência. Sei lá. Só sei que depois de 5 filmes argentinos bons, você cai de 10 andares com uma primeira cena explicativa. 

Claro que muitos filmes passaram por cima disso. Exemplos recentes são "O som ao redor", cheio de buracos, "Hoje eu quero voltar sozinho", com seu roteiro sem pretensões, por isso comovente, "Avanti populo", escuro, lento, com muito Super 8, que aborda a ditadura sob um ponto de vista novo e tem até humor - um pai (Carlos Reichenbach, premiado) que viu o filho sumir; não morrer, sumir. (No filme argentino "O olhar invisível", uma jovem responsável pela disciplina de um colégio, em 1982 vive a repressão sexual apresentando quase sintomas histéricos).

Por sorte, outros brasileiros, como "Tatuagem", "Praia do Futuro", também nos convidam à ambiguidade, contradições, surpresas...

Como eu digo, um filme começa pelo cartaz. O último cartaz que não me deu a ideia de "menino e menina se amam em São Paulo" foi Dzi Croquetes, com seu homem de cílios postiços.

Vivemos um catolicismo provinciano até muito recentemente, depois uma censura real, e acabamos com uma redemocratização que vetou a crítica e entregou um modelo de mundo novo, com Estado ausente e pouca democracia real nas cidades. A elite se fechou em si mesma, o isolamento nas cidades aumentou, o marketing da vida-malhação nos transformou todos em atletas frustrados.

Até hoje é comum falarmos de "politização" e "polêmica" como algo ruim; mesmo onde há debate (por exemplo, em meios universitários), o papel da opinião pública parece afetar pouco os 55 vereadores da cidade, dependentes de doações de campanha; recentemente vemos uma onda conservadora criticando o "politicamente correto" ou mesmo os "direitos humanos" (numa sociedade que viveu da escravidão durante 400 anos). 

Mas houve melhora no nível de educação (investimento da classe C em ensino), a internet criou mais circulação de ideias, a era do monopólio já era.

O público brasileiro não quer mais ser ensinado, levado pela mão, doutrinado, mesmo que em nome de uma boa causa. Será que isso reflete uma sociedade autoritária, onde não existem dúvidas? Claro, vocês dirão, isso é uma generalização em cima de dois ou três casos - mas o que conta aqui é a concepção de arte: um simples meio transparente para a luz da doutrina? Temos dificuldade em achar o âmago da contradição, numa sociedade (como a paulistana) onde a inércia do capital apaga o desejo por e as esperanças de mudança? Onde "reintegração de posse" virou uma forma de esconder a humilhação da falta de casas?

Ou talvez nos falte ainda a ideia de que a arte é criação de densidades, perguntas, uma forma de revelar o difícil que é o simples, e vivamos numa cultura que jamais saiu da certeza.  





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