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sábado, novembro 30, 2013

Meu abacateiro


Começo na surpresa do duro e feio que resiste e explode
Eu venero o deus sol - minhas asas ganhei
doces aladas formas femininas no
cristal do ar :Blake
Meu navio é hoje e já
quebrar os vasos, cavar pela argila- nem
ausência de perturbação
no jardim de costas pra cidade - nem
poética da sombra na caverna de Dionísio fumo
método :transfigurar raciocínios, memória cascata
dança das ruas já derrubou exércitos
misturar sem fundir as ondas do Mar e do vasto universo
que a palavra acerte, o essencial do osso
contar a mesma história e os passantes param
na minha mala a história e a alegria eu te vejo
Meu logos :poema-ciência, dedução apaixonada
Eu conecto cabeça-tronco-e-membros com maracatu rima
você respira e ao seu redor ar vibra
A putaria e a castidade
espelham uma à outra
eu conheço os fantasmas da beira das águas
os segredos das cidades nunca vistas
o romance escrito no fogo
era do império, sistema, tirania
Mas uma criança em mim não quer entender
uma criança que destrói o comum
Quero por tudo em dúvida de novo
voltar aos clássicos, nada pouco
aparelhos de pensar secos
simplificadas tramas do real
divisão entre a seiva da terra e a veia
Eu já não sou um poeta para ler a mão
Não quero trazer a verdade aos corações
Simulando suspensão de abismo
No mundo do meio dia, feito de neve e um eu úmido
Não falo sempre de novos territórios
sempre buscando a vida
não odeio a ciência, nem sou dançarino em marcha
nem nômade, sem pecado original
de dentro do mundo sem esperança
nem dia, nem noite, sol implacável
pelo pensamento da existência
modos de viver, ouvindo a voz do mundo
linguagem primordial, natureza-oracular
a dupla face do real e mais
sem fugir para as montanhas
nem simular metafísica
além de matar a tradição
(e o preço e a promoção são tudo)
aqui estou eu para falar
do mais puro vazio e deus
de novo do novo e incessante
da força cósmica do caroço na terra
da erotização do sol nascente
do sonho ilimitado do eu equilibrista
(canto palhaço para rever brotando
só resta ao poema a religião dos nervos)
comento as viagens e renego os rebeldes
para não morrer neles
ver os mínimos, não esquecer o mal
contato com objetos, rigor e magia matemática
(contra a arrogância, alquimias num espaço infinito
olhando o monte de escombros e a queda
o brilho militante da hipocrisia)
de um mar de transformações no horizonte
nem só delírio, só barricada, um germe nascente
as asas de metal de céu e magma
com quase nada verdes rugosas folhas do nada inspirando
e patas de fome latejante
querendo tudo
A palavra, a coisa e o vazio
São meus.

sexta-feira, novembro 29, 2013

unruhig, ungeheuer, Ungeziefer

Quando, certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos não tranquilos, percebeu que se transformara, durante o sono, em um animal não normal, não sacrificável e não domesticável. Certa manhã, Gregor Samsa acordou depois de uma noite nada reconfortante e percebeu que se transformara em um desforme inseto inútil. Certa manhã, Gregor Samsa, ao acordar de sonhos que pareciam castigos de sofrimento, percebeu que se transformara, como um ser que de ovo vira casulo, em algo pouco admirável e menos desejável. Quando Gregor Samsa quis levantar da cama depois de uma madrugada intolerável, percebeu que era um bicho articulado, sem sangue e infeliz. Quando, certa manhã, Gregor Samsa despertou depois de ter sonhado com coisas incomuns, percebeu que jazia em sua cama como um desprezível piolho nada belo. Quando, certa manhã, Gregor Samsa acordou de uma noite de desagradáveis visões, percebeu que se transformara em uma intolerável barata sem carnes. Certa manhã, Gregor Samsa acordou de maus sonhos e viu que se transformara em um inseto desemparado e desengonçado. Certa manhã, Gregor Samsa acordou, depois de sonhar muito e terrivelmente, e percebeu que seu corpo sofrera uma metamorfose e era agora um animal pouco agradável, nada digno e semelhante a um artrópode. Quando, certa manhã, Gregor Samsa acordou, depois de sonhar de modo incomum, percebeu que se tornara um percevejo sem rosto e sem passado. Gregor Samsa desperta, pela manhã; ele agora era algo como uma vida não-humana, uma pulga imprópria. Gregor Samsa abriu os olhos e se desfizeram sonhos perturbadores, mas ele via apenas não-braços e não-pernas em sua cama. Certa manhã, Gregor Samsa acordou desgraçadamente de seus sonhos, para perceber que se transformara em um monstro incompreensível. Quando, certa manhã, Gregor Samsa, bem cedo, despertou, viu que agora seria um parasita desconhecido. Certa manhã, Gregor Samsa acordou de seus sonhos nas trevas e percebeu que se transformara em um um obscuro inseto asqueroso. Gregor Samsa acorda: olha ao redor e sente-se estranho, e percebe que respira por uma traqueia, tem antenas e uma casca.
(Afonso Lima)

domingo, novembro 24, 2013

Anju Mami

Anju Mami deveria acompanhar seu tio, lenhador, para cortar os pinheiros. Ele ficava tirando a neve do redor das árvores e seu tio derrubava, enfiava um pedaço de ferro em cada extremidade de cada pedaço já cortado de tronco, criando uma fenda, e separava as duas metades com as mãos. Sempre tiramos somente o necessário, o tio dizia. Eles estão vivos e pertencem ao deus dos pinheiros. Antes pedia sempre a Anju Mami que acendesse um pequeno fogo para o deus, dentro de um buraco num tronco ou fazendo um pequeno templo de gelo, ao lado do qual eram depositados doces. Anju Mami estava com preguiça. Não fez nada. Depois de uma manhã inteira de trabalho, foi buscar água no riacho, eram águas aquecidas que nunca congelavam. Mas ele se perdeu. chegou numa casa de madeira onde foi recebido por uma linda moça em um quimono vermelho. Ela lhe serviu chá e dançou para ele. Ele comeu e dormiu. Quando acordou, sentiu-se enjoado. Havia se tornado uma mulher. O quimono vermelho repousava a seu lado e ele o vestiu perturbado, colocou outro manto de e saiu para fora. Caminhou muito chorando pela neve até que avistou um palácio. Empurrou a porta de madeira e entrou. Não havia ninguém no palácio, que era decorado com lindas gravuras e caligrafias, ramos de flores em belos arranjos. Cada janela tinha uma paisagem. Em uma delas, caiam folhas vermelhas. Em outra, via-se o verde e peixes coloridos no lago. Em uma terceira, flores de cerejeira. Na quarta, a brancura infinita. No cômodo central, próximo a lareira, havia chá e doces. Ele comeu e depois voltou a caminhar pela neve. Finalmente encontrou o riacho de águas aquecidas onde ia buscar água. Seguiu a trilha costumeira e chegou até o local onde seu tio devia estar. Não havia ninguém e as árvores pareciam diferentes. Quando retornou à sua aldeia, Anju Mami foi considerado uma visão, pois, além de ter corpo de mulher, todos os seus amigos estavam velhos, seus pais haviam falecido. Soube que seu tio havia procurado por ele sem cessar durante um ano inteiro. Anju Mami passou a morar no cemitério, onde as pessoas levavam pequenas oferendas para ele. 
Copyright © Afonso Lima, 2013

quarta-feira, novembro 20, 2013

Zelo


Zelo é o deus que instiga os homens a buscar algo sem cessar. Ele é filho de um Titã, Palas, e do rio dos mortos, Estige. Quando a força indomável deitou nas águas da invulnerabilidade, nasceram Zelo, Vitória, Poder, Violência. Quando os Olímpicos derrotaram os Titãs, Zeus deitou-se com Memória para que surgissem divindades capazes de cantar esse feito. Zeus as nomeou usando a palavra mémona, "eu desejo". E para que também os Titãs fossem reverenciados, cuidou para que Zelo sempre estivesse ao lado das nove deusas. Foi Zelo quem soprou a alguém que ouvia Homero cantar que escrevesse aquilo, criando o alfabeto. A investigação, a descoberta, são dons de Zelo. 
O primeiro homem a receber uma visita das musas foi o belo pastor Poemandro. Zelo se apaixonou por ele. A deusa Tétis aconselhou-o a testar o amado, oferecendo-lhe um pouco de ouro para que criticasse os deuses. Assim Zelo o fez e Poemandro ofendeu Tétis, tornou-se cantor-poeta e rei. Durante a Guerra de Tróia traiu o acordo entre os reis, recusou-se a enviar navios. Aquiles, filho da deusa, invadiu seu castelo, raptou sua mãe e este, numa discussão, acabou por matar seu próprio filho Leucipo, sendo exilado. Depois desses tristes fatos, quando surge o desejo de ser mais, Zelo é o primeiro que chega e avalia o coração com seus olhos capazes de penetrar a substância leve da alma. Para alguns, ele irá chamar as musas. Para outros, o deus chama apenas sua irmã Bia. A maioria das pessoas pode sentir o cheiro de sangue que Bia deixa na testa daqueles que inspira.