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quinta-feira, janeiro 30, 2014

Construção

E AGORA NÃO VOU PODER SAIR COM A MALA na estação porque o metrô tá lotado descaramento falta de vergonha cheguei aqui ERA UMAS CINCO DA MANHÃ e sabe um ferro da mala entrou entre meus dedos olha o TAMANHO olha nem fui no hospital que eu disse imagina a fila a fila eu ainda tenho dois ônibus VOU TER QUE IR NO FINAL DA LINHA E VOLTAR construção civil sabe fico um mês fora você soube dos resgatados do Rio libertados pela Justiça flagrante UMA DAS MAIORES construtoras do Brasil fiscalização tipo escravo pegavam os documentos quero ver entrar e sair cheião agora a terceirizada passa moça recebia quase nada atrasava os colchões no CHÃO sem porta nem janela geladeira quebrada SUJA os caras com alergia sem proteção E AGORA NÃO VOU PODER SAIR COM A MALA cheguei UMAS CINCO DA MANHÃ eu ainda tenho dois ônibus olha o TAMANHO do meu pé. 

Afonso Lima

quarta-feira, janeiro 29, 2014

As coisas em Utah

Por algum motivo o mórmon ao meu lado no ônibus não estava acompanhado de um amigo brasileiro e, na escuridão, parecia pender sua cabeça para meu lado um pouco mais do que o recomendado por Joseph Smith. Ao fechar os olhos, a imagem que saltou em minha mente foi a de uma cobra de duas cabeças que eu vira no Museu Zoobiológico ou algo assim há anos na praia.

Minha memória involuntária voltou ao tempo em que o Tonho, meu irmão pré-adolescente, decidiu converter dois mórmons ao ateísmo na sala de visitas, atrapalhando a novela Terra Nostra da nossa segunda avó, a Dada, que mantinha a elegância com um prato de biscoitos e chá mate, e minha irmã montando castelos de areia no chão. Isso durou uns três meses, e ficou provado que, caso meu irmão tivesse nascido na Grécia clássica, nunca ninguém teria ouvido falar de Demóstenes.

Muitos anos depois, na época da faculdade, eu ia a feiras de literatura ler poesia para o público de estudantes e professores. Muitos gostavam, acenavam de dentro das barracas de livros, alguns até paravam de tentar comprar Harry Potter e trocar seus vales-livro, mas um mórmon olhava fixamente sem quase se mexer. Quando acabou ele chegou perto, tentei falar em inglês, descobri que não podem, descobri que vivia sem rumo nos Estados Unidos, tudo era sem graça, tinha virado alcoólatra, a vida na Igreja era dura, mas tinha um sentido. Sentamos na beira do palco – incomodados por uma mosca albina - e conversamos uns vinte minutos, perguntei se conhecia Whitman? Poe? Baudelaire? nem ousando os brasileiros, não conhecia mas iria procurar. Chegou o carro que iria me levar, ele sorriu e me estendeu a mão, feliz. Um dia, vá conhecer as montanhas de Utah.

O rapaz ao meu lado roncava próximo demais de mim, eu não ia conseguir dormir mesmo, eu pensava que em Utah as coisas deviam ser diferentes. 

terça-feira, janeiro 28, 2014

Minha casa

Essa janela de madeira alta, escura, me lembra a casa da minha infância. Uma casa verde, depois lilás, amarela, aquela cidade calma e tranquila. Eram peças enormes, portas altas de madeira, eu nem conseguia fechar o trinco de cima, quando ia estudar no escritório. O quarto do pai e da mãe era tão grande que dividiram no meio e fizeram meu quarto. No corredor, sua vó tinha plantas. Todo ano tinha alguma reforma, eu nasci em meio a reformas. Minha mãe durante o dia, fazia doces, visitava amigas, andava no jardim plantando, dava ordens sobre a casa. A Dada, ela veio morar com nove anos com tua vó, a Dada ajudava nas encomendas, limpava a casa, depois aprendeu a costurar, tinha orgulho de ter o próprio dinheiro. Quando eu nasci, seu avô ja era aposentado, se aposentou jovem, acho que por causa das guerras. Ele entrou para o exército com 16 anos, o avô dele conseguiu, uma forma dele se sustentar. Ele passava o dia lendo, cuidando dos carros, pescando, cuidando das reformas, pensando nos próximos acampamentos nos quais iríamos na Lagoa Mirim, no Uruguai ou outro lugar. 
A mãe era querida por todos, ajudava Deus e todo mundo, mas em casa, às vezes, era dura. Uma vez perguntei para minha avó porque minha mãe era assim tão severa. Filha de fazendeiro, me disse vovó Edwiges. Eu e meu pai ficávamos na beira do rio, o céu ia ficando escuro. Uma vez eu tropecei numa rua de pedra, quebrei os dentes. Meu pai me abraçou forte. Eu me lembro dos olhos claros do meu pai, quando o sol batia de frente, e como ele era elegante quando os dois saíam pra dançar tango. A vovó Edwiges, que era cozinheira, cuidou das filhas, o menino ela entregou pro avô no sul. Ele vendia pastel para ela quando criança. Eu me lembro da chuva no telhado, eu pequena na cama, choveu assim quando ele morreu. A gente vendeu a casa e veio pra capital. Até hoje sonho com essa casa, a costura da Dada, o vento, estranho como alguns locais se fixam na gente, e nem são às vezes coisas tão relevantes, são pedaços apenas, mas que voltam e voltam. Aqui, essa casa me lembra muito, e desse tempo que era lento, a gente tinha tempo. Eu me sentia tranquila.

Afonso Lima 

domingo, janeiro 26, 2014

Liza

Eu lhe contava sobre Lizaveta Nikolaievna, personagem de Dostoiévski, para mim uma histérica tão perfeitamente retratada que poder-se-ia imaginar que Freud apenas deu nome ao que o russo descrevera.  
- Vou lhe contar uma coisa, ela disse, é pessoal, mas nós somos amigos. Minha mãe me contou isso com 92 anos, um dia que passeávamos pela Paulista a sentamos no Parque Trianon. Meu avô era um rico barão do café, tinham uma casa na cidade onde vinham aproveitar de vez em quando. Minha mãe foi criada entre esse casarão e a "casa dos empregados" na Frei Caneca, na época, zona pobre. Três parentas solteironas criavam ali seus sobrinhos. 

A educação das moças era rígida, falar francês, tocar piano, não falar muito, não demonstrar sentimentos, costurar, rezar, ela foi proibida de rir de histórias que lhe contavam para não parecer leviana, andava na ponta dos pés, devia servir o chá sem ruídos e regar flores com um sorriso. 

Mas um dia, quando o professor de piano bateu em seus dedos, ela teve um ataque de fúria, começou a quebrar toda a casa gritando - Eu quero homem! Eu quero homem! -e foi preciso dois criados para amarrá-la na cama. O padre veio, o médico, e até um amigo juiz. Decidiu-se enviá-la ao hospício, onde ficou um mês; depois, à casa do centro, para que ficasse longe de olhares e fofocas. Ela deveria ficar dentro de casa. Meu pai era um daqueles moços, pobre, mas que a olhava com respeito. Eles casaram em breve, viveram felizes, e é claro que o dinheiro da família nunca chegou até seus mãos. Eu nunca me arrependi, ela me disse.

Afonso Lima 

sábado, janeiro 25, 2014

"Bola"

Ela entra no ônibus. No fundo, universitários falam de Gramsi e Durkheim. Não malha, pensam eles, uma bola, pensa a universitária de olhos verdes. Ela pega às 9h, eles estudam de graça. Ela tem que sentar ao lado, abaixa a cabeça, liga os fones. Abre seu livro. Olhares de desprezo. O ônibus para. Uma arma. Os homens estão loucos, pegam tudo, na cabeça, batem numa mulher, que cai. Minha deusa, pega aqui, ela deixa cair o livro, eu vou embora. Suor, calor, ela treme. Querida, faz isso pela gente, fala a estudante de olhos verdes. Precisamos fazer nossa parte, vamos ficar até quando aqui? - o jovem alto e malhado. Vem minha deusa, eu libero todo mundo. Você sabe que quando demora, chega a polícia, e pode ser pior, o loiro de rasta fala. Se fosse você, teria orgulho de ser a mais gostosa, pra ele – o futuro filósofo fala. Meia hora, chega a polícia, calor, choro, desmaios. Só saio daqui depois de gozar. Um líder comunitário fala do egoísmo que domina a sociedade, do consumismo-individualismo-capitalismo que aburguesa as relações, do pobre como reprodutor dos valores burgueses, do moralismo. Ela pega por dentro da calça, ele responde, as mulheres fecham os olhos, os homens disfarçam a ereção, cueca molhada, o homem geme, força, ritmo, mais, grito, trabalho feito. Olhares de desprezo. Eles vão embora.
Elas estão acostumadas, essas gorduchas - diz a universitária ao descer do ônibus. 

sexta-feira, janeiro 24, 2014

Monstros

Sobe o verde até a nuvem
O azul do mar, o azul do olho
O corpo da pedra, o corpo onde passeio
Pontos de diamante no horizonte, barcos
Na sombra das arvores que respiram,
  lentas, crescimento - uma sanfona, lábios
Um vento amigo, caminho de pedras
a igreja branca à beira do rio
Explorar novas cavernas, beijos artesanais, 
  labirintos descobertos
Monstros inventados, umidade, pele
Sons da natureza, suor
A montanha, e eu deixo tanta coisa
  espírito da água, da lama, pedra de cinco milhões de anos
Aprendendo pelo atrito

Afonso Lima

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Da verdade

Já fazia um ano que, sempre que ia a um sebo - por algum motivo, sempre os maiores e repletos dos mais antigos originais - buscava involuntariamente o tal livro, que por diversão chamei de Livro X. Eu lera uma crítica de um erudito sobre esse texto, que debateria um difícil problema epistemológico. Eu lembrava que anotara um trecho citado pelo ensaísta desse debate, de um contista do século XIX:
"Não apenas esse exterior nos escapa - por suas impenetráveis propriedades - como, de mais a mais, nossos órgãos só nos fornecem, ainda sobre a parcela dele que nos é acessível, informações tão incertas como escassas (...) Logo, enganamo-nos ao avaliar o Conhecido, e estamos cercados pelo desconhecido".
Lembro que o ensaísta comentava algo sobre a relação com a próxima citação, de Hegel:
"Deus, ou espírito, como todo ser consciente tem a pulsão de se externalizar e criar um outro, manifestar-se. O ente humano sendo conforme a Imagem - o que Deus cria é o próprio Deus - é o espírito conhecendo subjetivamente, para quem Deus é objeto".
Por nunca mais ter achado o ensaio, mesmo perguntando à várias pessoas, cheguei a conclusões incríveis. Quando a alma pareceu ficção e levou nossas certezas de ciência? A máxima verdade é a máxima dúvida. Anotara trechos de Descartes:
"O objeto primeiro da ciência deve ser as naturezas simples, que o intelecto vê intuitivamente, como a figura, a extensão e o movimento".
"Conhecer significa alcançarmos uma concepção distinta de como essas naturezas simples se combinam na composição de outras coisas".
Anotei ainda algo sobre o argumento central do dualismo, que tem como pilar a capacidade humana de criar conceitos e expressá-los através de palavras; sendo as máquinas sistemas de estímulo-resposta, seria impossível pensar uma máquina capaz de tamanha capacidade de resposta, flexibilidade e adaptação como o usuário da linguagem humana.
Seria apenas isso, a falta de peças, a força do conceito de substância espiritual? Irônica fonte de séculos de pensamento!
Tento lembrar o que o texto comentava. Criei para mim a fantasia de que o ensaísta fazia a relação entre as descrições precisas do contista, que usava objetos, palavras claras, precisão, armas do empirismo, para nos ligar ao seu mundo artificial, e a descrição cientifica fundada na certeza interior geométrica que convence como ordenação do real. Acho que citava o curioso fato de que, ao retirarmos a dúvida presente na formulação dos conceitos como conceitos (a imaginação científica), acabamos por duvidar da nossa capacidade mesma de ter certezas, já que somos limitados.

Afonso Lima



quarta-feira, janeiro 22, 2014

Recontar

Tropas. Escombros de um exército. Uma divisão esfacelada. A fome aumentava.
De vez em quando, o cadáver de um alemão inchado era tirado da água. Bosques cheios de saqueadores.
Flocos gelados, os prussianos iam entrar na cidade, gelados burgueses. Uma atmosfera estranha. Rua muda.
Uma luminária ao lado da porta escura, uma janela de madeira. Dedos velhos segurando a caneta, tira o excesso.
Pela janela, uma mulher jovem e triste com o lampião.
Luz barroca. Pedem outra luz.
O bule feio de metal, a xícara de barro, um homem perigoso.
Um amigo, músico, alquebrado, uma velha senhora silenciosa.
A mãe abatida por anos de espera.
O casaco molhado de chuva pendurado na parede.
Ele está de volta, mas isso não é bom.
Ele ri como um animal.
A madrugada escura, mãos sinistras sobre a bolsa de couro.
Um homem olha o mar metálico ao lado de um navio alaranjado.
O diretor, de camisa listrada, pede silêncio. Vamos filmar.


Afonso Lima

terça-feira, janeiro 21, 2014

Salpêtrière

Dois homens fumam no pátio.
- Viena. Bela cidade.
- O que achou da demonstração de hoje?
- Uma pena a transferência da paralisia não ter ido de uma perna à outra. Uma vergonha ser na frente de Delboeuf e Taine. O importante é que mostram que há em nós outra coisa além da vontade.
- E você já publicou alguma coisa?
- Não. Meu padrinho me proibiu de publicar os primeiros resultados, além de me exigir que escreva ininterruptamente. Meu tio, morto em 1848, era amigo íntimo de Flaubert.
- Interessante. Gosto muito de literatura.
- Aos poucos os livros heroicos e cheios de duendes nos parecem ridículos! Todo fenômeno têm uma lei natural. Mas nos fica uma tristeza por não haver mais Invisível.
- O estranho está em nós. As forças da natureza vão além do que podemos ver e imaginar. Essa derrota trágica acabou com as ilusões.
- Vamos, doutor, Charcot já deve estar começando. Agora é hipnotismo.
- Vou me manter informado sobre o senhor, sr. Maupassant. Entremos.

Afonso Lima

domingo, janeiro 19, 2014

Sobre livros

Fui convidado para uma leitura do meu conto e uma mesa. Chegamos, deixamos as coisas, café. Deslumbrados com a cidade.

De alguma forma alguma coisa está acontecendo, e é grande. Está submersa. A única forma de sobreviver é cuidar do jardim.

Da rodoviária ao hotel, sento ao lado da revelação baiana, que está apaixonada por Borges, Borges era contra o sistema. "Uma coisa dentro da outra, entende?"

Pousa sua mão na sacada, olha o rio. É um monstro que se mexe, ela quer gritar. Está nascendo e dói. Tudo está bem, que influências são essas, que turvam a água? Elas não vêm de dentro. São neblina. Parar é a ação mais importante. 

Na recepção, a mulata paulistana com vestido florido e Ricardo Piglia na mão é sexy, flertamos, ela tem um namorado de dois metros e sete e bermuda.

Triste. Pousa sua mão na sacada, olha o rio. Ouve vozes. Tem um buraco. 

No quarto, o cubano e o sueco. Dissertação sobre charutos, o sueco quer me ensinar tudo sobre Bergman. Eu estou ansioso, instável, quero dar socos em alguma coisa, quero resolver o mundo hoje.
Temos sempre que correr, sempre uma nova programação, a política e a literatura, a literatura e todo o resto, a literatura e a literatura.

Uma jovem quer uma entrevista. Olhos piscantes, sedutores. Macho alfa.

Manipuladores de símbolos. Borges é realmente um personagem fantástico. Ele deveria aparecer como personagem em um livro onde escreve um ensaio sobre um livro já escrito. 

Por que eu deveria participar de feiras literárias, penso sentado na mesa sobre novos autores. Somos produtos de elite, precisamos seduzir - se tivesse um editor, ele diria com seus olhos azuis brilhantes. Eu podia estar produzindo, penso. Tantas anotações prometendo história. Lembro do meu padrinho literário, as pessoas fazendo círculos ao seu redor e penso que talvez seja algo que não é ele. Continuar.

Caminhamos pela cidade. Um cemitério. O cubano conta histórias de fantasmas. Ele é sexy pisando um mármore com heras.

A literatura me reorganiza. Borges deve ter um pouco de razão sobre a primazia ontológica do intelecto. Quando eu me perco, busco no saco do passado arquétipos. A sensação de que algo aconteceu. 

Eu devaneio. São dois anos. Um abraço gostoso. Muitas descobertas do corpo. E o amor? Será uma questão linguística? Você sempre quer algo diferente do que tem, bem pisciano, a amiga antropóloga falara bebendo chá de jasmim.

Outra flecha já entrou. Uma flecha muda. No fundo são duas raízes que se juntam. Já existe, mas está no futuro, só eu posso ver. Os desejos, as sombras, o medo turvam tudo. É que nosso olhar já se encontrou. Não é para agora.

A "imprecisão ondulante" da literatura, onde ser e não ser coexistem. Pousa sua mão na sacada, olha o rio. Ela decide voltar ao ensaio sobre Borges, o "manipulador de símbolos", o "geômetra criador de universos". Ela é dupla. Como são obscuras as realidades invisíveis.

O cubano oferece um café. O sueco conta sobre as filmagens de "O ovo da serpente". "O homem é um abismo e a vertigem me assalta quando contemplo suas profundezas". Ele lembra da epígrafe do roteiro.

Lucia pousa sua mão na sacada, decide falar de sua aventura em Cuba. Seu seminário com Garcia Márquez. Romancista, diretora, roteirista. Naquela viagem, uma colega foi encontrada morta. 

Estamos exaustos à noite. Vamos a uma festa com música - cubana. O negro é uma máquina, o branco olha triste. Vou ao banheiro. Tem uma festa. O sueco quer falar dos Morangos Silvestres.

Uma amiga que escreve Bildungsroman me acha, diz que tenho que sentar com eles, lá está uma editora de livros infantis, é minha chance, ela ama meu texto. Será que Faulkner é melhor que Guy de Maupassant? Como reagir ao chamado das ruas? O sueco olha o relógio, odeia a literatura.

O cubano sai abraçado com a escritora húngara, a crítica argentina chega com uma bomba: um jornalista maranhense está desaparecido. A última vez que o viram, saiu num Chevy azul-petróleo com um alemão.

Sinto um abismo negro no meu coração longíncuo enquanto sorrio para a gaúcha que faz Letras e conhece meu trabalho. Ela quer o sueco. Sinto que preciso demais de alguma coisa, e a única forma de ficar inteiro é continuar onde estou. Quem sou. Não podemos nos abandonar. O tempo das coisas.

Tudo correu bem, chego em casa e não tenho forças de colocar as malas em lugar algum. Mensagem de texto, maranhense considerada morta. A única coisa que me ocorre é que algo vai mudar.

Afonso Lima

Skinheads


Ele foi a uma festa. Perdeu seus amigos. Saiu sozinho.
Ele não teve de se humilhar para não servir ao exército aos 18 anos.
Aos 19 anos, ele não fez o tratamento para espinhas
Ele não viu seus pais se separarem quando tinha 20 anos.
Ele não passou no vestibular em Arquitetura aos 21 anos.
Aos 22 anos, ele não tentou transar com uma amiga.
Ele não teve seu primeiro grande amor aos 23 anos.
Ele não correu a maratona aos 25 anos, fez seu primeiro grande projeto, resolveu começar uma pós.
Ele não resolveu morar junto com outro rapaz com 27 anos, comprou um sofá vermelho e talheres coloridos.
Aos 30, ele não teve medo de um amigo que dirigia rápido na estrada.
Ele não fez sexo com um desconhecido e sua mulher aos 31 anos.
Ele não conheceu o Rio de Janeiro aos 32 anos e foi premiado e começou a dar aulas.
Aos 34 anos, ele não ficou bêbado no aniversário de Magda e vomitou no carro
Ele não conseguiu a promoção competindo com o Luiz, tão pedante, aos 35.
Com 37, ele não bateu ao carro na volta do Natal e foi consolado pelo seu namorado.
Ele não tirou a foto do passeio em Santos aos 39 anos com seu amor e amigos queridos.
Ele não comprou o disco novo da banda nova que ainda não existe com 40.
Ele não viu seus pais morrerem aos 43 anos.
Ele voltou sozinho pela 9 de Julho.

Afonso Lima

sábado, janeiro 18, 2014

Normal

Abro a cortina. Prédio baixo antigo azul claro com janelas escuras e sacadas. Prédio alto amarelo antigo com sacadas e varais de roupas. Prédio cinza velho com sacadas estilo colonial com uma janela de cada lado. Jardim no terraço e caixa d´água. Torre de igreja ou prédio antigo. Prédio verde com janelas sem vidro em reforma ou ocupado. Raios de sol cortando pesado céu. Neblina no horizonte, retângulos opacos, sugeridos. Apareceu uma bandeira no alto da torre.
Dorme. Tenho que sair.
Levo pouco, volto para pegar as coisas. Pedaços do verde brilham, parece que algo metálico foi derramado em plantas baixas, Rembrandt caminhava pelos bosques. O universo das raízes, folhas grandes, manchadas, frutos vermelhos, protuberâncias caindo dos troncos e abertas no chão como ventres amarelos, prostitutas. Uma chuva fina começa a cair.
Eu corro. Para casa. O céu desaba perto da estação. Entro molhado.
Ando, penso, ando, vento, mais vento, multidão aglomerada, medrosa. Olho o relógio. Tenho que ir direto. Só eu.
Sobe, desce, amarelo, vermelho. E chego na estação.
As palmeiras serão arrancadas. Homens amarelos trabalham na chuva. Telhados vermelhos e prédios sinistros gigantes e feios espreitando. Calpões. Uma criança chora.
Preciso comer.
Bye, bye-bye, baby, bye-bye.
I gotta be seeing you around
When I change my living standard and I move uptown,
Bye-bye, baby, bye-bye.
Lembro 68.
E de um amigo que disse. Largou a faculdade. Pegar metrô lotado de manhã trabalhar oito horas metro lotado para estudar cinco horas estudar em pé.
Falo com a funcionária. Ilhados, né?
O que, o trem parou? Quero voltar pra casa.
Como?
Ah, pensei. É que tem estações abaixo do rio, quando transborda.
Ah, um amigo que diz que o trem anda rápido, mas não pode correr porque os trilos são velhos.
Ainda chove forte, não tem jeito, tenho que ir. Pulo lagos sujos, oprimido entre água e portas de lojas. Meninos gritam, ele pisa na água para me vender. Uma capa de plástico. Feias piscinas, multidão. Um guarda-chuva. Estou avançando, quase normal, o Canal da Mancha, como passar?
And you left me here to face it all alone,
You left me here to face it all alone,
You left me here to face it all alone.
Céu escuro. Sala vazia.. Fico sentado observando a chuva cair. Um amigo toca piano.

Afonso Lima

terça-feira, janeiro 14, 2014

Mitos

A lua horizonte lembra
estrelas olhos derramadas
tic-tac da noite branco novo dia
pensa: sementes e se plantássemos
gente Marsilac impostos universidade Grajaú
universidade trabalho Campo Limpo?
ingênua noite suor alvorada virgem pensam:
Montanha de livros São Rafael, cinema Parelheiros
que não existe filho bastardo
já temos covas demais
estradas de poesia São Mateus São Miguel
Trem ônibus Teatro Tremembé metrô
Conservatório Perus, orquestra Itaim Paulista
Moldura de olhar
marinheiros percebem
o dia reflete a velha pedra chora

Afonso Lima

O poeta e o bispo

Narrador – As religiões da região tinham sacerdotes castrados que praticavam prostituição nos templos. Mas parece que durante a Idade Média, também homens se casavam com homens em cerimônias cristãs e mulheres se casavam com mulheres travestindo-se. Já ouvi a história de um monge poeta e um bispo que virou santo.

Andavam de mãos dadas, escreviam cartas belas, saíam juntos pelo bosque ou rezavam sozinhos, mas lembravam das regras de São Cassiano, do século IV, para anular o corpo e do imperador Justiniano, do século V, que afirmava que pestes, fome e catástrofes vinham de uma população libertina. Um dia, os dois monges falaram na capela:

- O Santo Aquino defende a família natural
A luxúria é sujeitar-se à matéria escura
Sem educação e sem prole, surge o mal
Por desperdiçar sêmen Onan foi pra sepultura

Nas areias da província romana
Entre a concubina e a gramática
Viveu também Agostinho a bela prática
do amor caridade e chama

Por que encarnou o Filho se a carne é maldade?
Se o bispo de Paris condena a alegria
Esquece que o próprio Agostinho teve seu dia
O bispo condena quem acerta:  'destrói a virtude a castidade'.

- Agostinho chorou a morte, com alma aflita
do amado, sua outra metade
Mas chorou ter sujado com desejo a amizade
São as heresias que pregam amor dos sodomitas

A natureza pensou em procriar – pensa Tomás assim
O homem não existe para si
Tudo em Aristóteles tem um fim
Sem ordem o mundo se prostitui
Talvez nossa ciência esteja errada
Em ver em tudo uma razão dada

- Os filhos de camponeses pobres
Vem para Paris atrás de doutrinas nobres
E acabam por cair nas calçadas
Em farras, bebedeiras, orgias descaradas
os astros são movidos por seres celestiais
E buscar o eterno cabe aos mortais

Assim falas monge angelical
Porque não conheces os labirintos da mente
A solidão da noite e a tortura fatal
Quando o homem explode sua semente
Tua língua de fogo hoje acenderei
Nos meus braços saberás o que sei

Afonso Lima

segunda-feira, janeiro 13, 2014

Flores

Antigo amor, eu te deixo partir
Velho amor, eu me despeço
de todos os dias gloriosos
que eram feitos de vidro

Eu não queria me esquecer
dos dias de sol
arrumando os livros
o que plantamos em longas discussões
no jardim, as colinas, que
abraçados, olhamos
O violino que ouvimos ao cair o sol

De todos os fatos imaginários
os vazios preenchidos
Não sabia que era tão importante
E cultivei por tempo demais

Tiro agora as folhas secas do caule
Antigo amor, eu te deixo partir
E, de dentro desse mar vasto de Eros,
podem surgir novos seres.

Afonso Lima

sábado, janeiro 11, 2014

Semelhantes

Caipira me ensina
pé no chão
o ritmo do meu corpo
põe na mesa o coração
Caipira me ensina
o fruto de cada terra
despertar a bondade
a ciência da espera
caboclo eu ando tão tão
emmimmesmado
tão tão habituado
olhos fechados
ensina a rir de mim mesmo
a estar com
as ondas da água
Caipira me ensina
a música em tudo.

Afonso Lima

sexta-feira, janeiro 10, 2014

Não criança


Teu nome era criança
Não podes passar aqui
As boas coisas da vida
Nao são para ti

Mas e se houvesse cavernas
e a verdade estivesse no mapa
se houvesse camadas
nessa tal realidade

o segurança te expulsa
menino com caixa suja
o pensamento de Fausto
em que lhe ajuda?

Teu nome era criança
mas foges do perigo
da lógica enlatada
e um poeta sabe que nada
Acaba com o infinito

Afonso Jr. Lima 

quinta-feira, janeiro 09, 2014

ROSAS PARA TODOS


Quero rosas para todos
feira de livros, gente,
céu de Guaíba
Em meio a alegria, os tambores,
a festa
segue o cortejo pela praça
Alfândega dos sebos, do sol, das cores
O povo canta, levantando rosas
Uma menina da rua
com seu irmão pela mão
Pede uma rosa à moça rica
"Só para livreiros"- ela diz
A menina faz um gesto - "eu falei
Rosas são para gente de verdade"
Porque gastar dinheiro com rosas? - diz o empresário
O Poeta da espada, disse: "Nosso projeto
não te oposição"
E Bonifácio assinou: "Progresso sim; negro não"
O menino olha triste
a marcha das flores
Eu dou a minha rosa
um sorriso ele tem
caminha orgulhoso na feira
cidade que canta letras
o céu negro e azul
Chego, sem rosa
ao patrono, com sua cabeleira branca
Olhar de Cristo amoroso
"O senhor me dá uma rosa?"
"Isso, isso!"
Sigo eu o samba cidade
Caem pétalas na noite
na gente escura, clara, do Sul.

Afonso Lima

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Invasão

Meu bisavô, dizia tio Francisco, chamado Chiquinho por ser um taura de dois metros e vinte, Chiquinho, herança do nordeste remoto, deixado há um século, deputados da Paraíba, meu bisavô, dizia ele, estava na casa de um inimigo político, mas irmão de caçada e churrasquiada, ele disse, vamos derrubar a ponte pros teus amigos não invadirem nossas terras, que era republicano, não, disse o Onorato Furnas, eles hão de vir bem na semana ainda, que se nos pegam amigos nos furam, vou mandar o peão recolher o gado e tu seca as botas no fogo da cozinha do chão, e quando o sol se baixa e volta o peão afogueado, que já cruzaram o rio, vem de passo largo os bandidos, o tempo pouco, joga uma capa campeira por cima do couro, chapéu de aba velha, se esconde na cozinha de terra batida, chega o capitão, Onorato que sua, mas que nervoso é esse homem, se é nosso correligionário, sou mas nem pra avisar essa gente, que carneava uma vaca pra receber, assim ficaram contentes, o velho Joaquim coronel um pingo de gelo na espinha, e vamos de trote nas casas todas, matar Nô, que Joaquim chamava, este e aquele e as mulheres pegamos, e de vermelho o chão dos republicanos, Joaquim dobra a barra da bombacha, como peão abaixa a aba do chapéu, passa pelo meio deles, Onorato mudo, sobe no cavalo e galopa, pegando todos de surpresa na alvorada, sangue do norte cavalgado, fincado na terra por ideal de república, e sorvia o mate Chiquinho, um taura que sempre lembrava.  

sábado, janeiro 04, 2014

Traduzindo Baudelaire - Correspondências

A natureza é um templo de pilares vívidos
Que deixam sair confusas palavras
O homem andava em florestas de símbolos 
Que com olhos familiares o olhavam 

Como ecos que de longe se respondem 
Na tenebrosa e profunda unidade
Vasta como a noite e como a claridade
Os perfumes, as cores e os sons se correspondem
Perfumes frescos como o corpo das crianças
Doces como o oboé, verdes ilhas perdidas
E outros, corrompidos, ricos e cheios de esperanças

Que tenham a expansão das coisas infinitas
Como o sândalo, o almíscar, a rosa e o incenso
Que cantam os transportes do espírito e dos sensos.

(versão Afonso Lima)

O poema

As mulheres saíram às ruas para protestar contra a falta de pão. Os homens as seguiram no fim da tarde para derrubar o czar. Os cavalos avançaram sobre a multidão, muitos foram feridos e presos. A massa não desistia. O poeta tentava ordenar isso tudo em protesto contra a prisão e o desaparecimento dos principais líderes de 1917. “Ao seu redor, um bando de burocratas submissos”. Faixas. “Liberdade ou morte”. Mortos, e a rebelião continuava. Motim dos soldados. O poema lido nos bares fez com que a polícia o buscasse na casa de repouso onde se tratava de uma crise nervosa. Escreve um bilhete à mulher pedindo roupas quentes, que nunca recebeu. Seus amigos tentavam intervir. Milhares de “terroristas” estavam sendo fuzilados. “Uma montanha de cachorros mortos” – disse o ditador. Um escritor, que passou mais de dez anos preso num arquipélago, descreve sua morte de fome e de frio. 

Afonso Lima

sexta-feira, janeiro 03, 2014

Pobre Liza

O conto, de 1792, comoveu gerações. Dostoiévski disse que esse foi o primeiro grande texto russo. As pessoas faziam peregrinação ao mosteiro onde acaba a história. Hoje se sabe os detalhes do fato real que o inspirou. Liza é a filha do camponês trabalhador, que morava do outro lado do rio em Moscou, ao lado do bosque de carvalhos, empobrecida com a morte do pai, e trabalhava dia e noite fiando, tricotando e vendendo lírios na cidade. A pobre mãe só queria um bom casamento para a órfã. Um jovem nobre por ela se apaixona e provavelmente consumam seu amor entre os carvalhos centenários. Ele vai para a guerra e promete voltar para se casarem. O desejo é forte, mas as dívidas por jogo o são mais. Ela o vê na cidade andando de carruagem com outra moça. Ela o surpreende enquanto sai de casa, descobre que essa é sua esposa, ele lhe dá dinheiro e pede que desapareça. O que sabemos dos arquivos policiais é que ela não retornou para casa. Mandou o dinheiro que o jovem lhe deu para a mãe por meio de um judeu conhecido, que vendia produtos nas cabanas. Ela viveu na rua e em albergues durante um mês, até que começou a trabalhar como ajudante em uma cozinha. Fez amizade com a empregada da casa. Quando os nobres saíam, as duas jogavam, e ela ajudava a outra a limpar os quartos. Um dia a esposa ficou grávida. Era domingo e a empregada não achou ruim servir no café da manhã o bolo de ameixa. Todos foram encontrados mortos e uma mulher gritou ao ver uma moça se jogar no lago, mas quando as pessoas da aldeia se reuniram para tirá-la, já estava morta. A cruz de madeira no cemitério do mosteiro, sob um carvalho sombrio, marca seu túmulo, e as jovens vão até hoje lá depositar flores e pedir à pobre Liza um casamento feliz. 

quinta-feira, janeiro 02, 2014

Claudilene

Ela não pode ir no Natal. Tomou dois copos de conhaque escondido. Quando, finalmente, chegou no morro, depois do Ano Novo, um corpo novo sujava o chão. Os parentes mudos. Teu filho, foi o Matias. Pele e osso, o Matias. Ele tinha uns movimentos esquisitos. Com 3 anos deu pra adivinhar o futuro. Sumiu na floresta 3 dias, num passeio. Disse que viu a própria morte. Virou crente por uma semana. Dormia no chão. Matias protegia os gatos. Ensinou a mãe a ler. Mulher solteira, como dizia a tia. Aos quinze anos, um pedreiro simpático, o Welinton, a chamou pra um passeio na obra, enquanto cuidava do filho da Dona, criada com as meninas. Ela sabia mais ou menos, mas não imaginou que era tão rápido e ia ficar roxo. A babá dizia: É as fatalidade. Também perdi os meus. A cozinheira: Se até o Filho de Deus eles mataram! A motorista: A UPP demorou. Ela foi liberada de servir a janta. Depois de servir o chá, saía e caminhava pela praia. Faixas azuladas, um céu desmaiado ia se alaranjando. Pensou que um corpo como o dela com certeza não boia. A patroa não tinha onde colocar o cachorro.

Afonso Lima

quarta-feira, janeiro 01, 2014

Notas de viagem

Nota do autor - Um amigo me ligou perguntando se algum dia havia publicado “observações de uma viagem à Porto Alegre”. Achei que era uma piada. Ele disse ter ouvido no rádio um editor que publicou uma antologia de relatos de viagem “na qual consta um ‘à vida burguesa do final de ano”. Procurei o editor. Ele me disse que recebera por correio o texto impresso e não conseguira me encontrar. Mas estava disposto a pagar os direitos, “achei que deveria ser publicado, mesmo assim”. Disse-lhe que eram observações feitas sem nenhum trabalho de reelaboração, que não fazia ideia onde tinham ido parar nem como chegaram até ele. “Não nos cabe saber tudo, ele falou”. Seja como for, não me sinto no direito de proibir a obra. Afonso Lima, Porto Alegre, 2013

*
Véspera de Ano-novo, os supermercados lotados. As crianças pulam, impacientes com quarenta minutos de fila, as mulheres escolhem flores, reclamam porque acabou a ervilha congelada, decidem se devem levar mais ave ou peixe. Édipo também sofreu.

Um sol forte nas pedras, uma criança ou um monstro gritam um nome incompreensível. Precisamos comprar.

É Natal, as crianças brigam por uma garrafa de 3L de coca ou guaraná, um homem de fones de ouvido tem um ataque epiléptico no caixa, as senhoras choramingam e reclamam na fila enquanto os netos compram mais salgadinho envenenado.

Árvores enormes, vindas de alguma era Pré-histórica, o casario antigo, com sacadas, alguns bens velhos.

Um homem de meia idade loiro, alto, com três crianças cheias de energia que correm, puxam uma a outra, entram e saem de lojas na praça de alimentação. Uma mãe jovem que dá uns gritos elegantemente.

A rua muito escura, a Praça reformada, mas ameaçadora, poucos postes simulando luz na romântica rua Belle Époque.

Pessoas nos bares, alegres, jovens inteligentes falando de cinema, arte, literatura ou televisão. 34°, é noite.

Sol inclemente. Pessoas abandonadas no chão, ao lado da plataforma de ônibus de cristal azul. Um homem sem camisa e seus sacos de lixo preto.

Casas muito antigas, cartazes coloridos, restaurantes fechados.

Flores pink explodindo nas árvores, casinhas com jardim. Um jasmineiro gostoso. Casas cor de laranja, casas com pássaros à janela. Cercas brancas e trepadeiras.

Muitas árvores, a Mata Atlântida, cobertas de grama verde, alameda de pinheiros, ipês, palmeiras, uma copa rosada esplêndida.

Um segurança que te olha de cima abaixo para dizer as horas.

Muitas lojas estéreis, vidros e compras que não quero. Laranja mecânica no palco, hortelã da Argentina, vinhos-salário-mínimo, carne, carne, carne. Um passeio.

Graças a Deus as pessoas compram livros, ou estão pegando o telefone do vendedor?

A calça do segurança está rasgada, vejo a virilha. Ele agradece.

A moça do café tão simpática, Fizeste uma nova comanda, Como senhora?, Erraste o pedido e fizeste outra, com um sorriso, a moça cora e entende, boazinha. Simpatia demais.

Aqui vemos um Chalé do Século XIX, reformada, em frente ao Mercado Público incendiado, mais caro e delicioso. Saíram os camelôs que criavam agitação, parece deserto, só uma mulher carrega os filhos num carrinho de supermercado.


Averiguação. Policiais param um homem na rua. Sem camisa. A mulher se aproxima, nervosa, ela traz – documentos? Safada. Sempre carteira assinada. Seis filhos. Tapa na cara. O cara começa a apanhar. Cabeça pra frente, cabeça pra trás, pontapé. Fio de sangue? Sou pedreiro. Pelo amor de Deus, não leva. Quer prender a mulher por participação no tráfico. Senhor policial, às vezes. Mata e some. Aterro sanitário. Nem pra enterrar. Eu observo e penso se posso fazer algo. 


Afonso Lima