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sábado, dezembro 31, 2016

esperança

a esperança não é delirantemente otimista
ela só sabe que nada é para sempre
a esperança não é baseada nos supostos irrrevogáveis fatos
mas naquilo que existe entre os fatos e que pode surgir
a esperança não é aventura
simplesmente sabe que recuar e permanecer também são vitória
a esperança não abaixa a cabeça nem chora, não se abate porque
já foram tantas as guerras movidas pela vaidade
a esperança sabe que a escuridão é maior antes de sua queda
a esperança não tem medo de deixar tudo a não ser o que ainda não veio
a esperança não pode ser destruída
porque sabe esperar

Afonso Lima

sexta-feira, dezembro 30, 2016

O Mapa

Riscos da cidade
Examino a ponte em obras
A anatomia de uma lembrança
Meu corpo na escuridão

Das ruas talvez bucólicas
Das ondas de cor de Porto Alegre
Casas coloridas e cafés

Palmeiras amarelas
Esquinas à venda
Nuvens espetadas no aço do morro
Moço bonito, antigos amores
Ruas bordadas de verde
Encantada cidade a cada dia perdida

Eu vivo o tempo do silêncio
Não há dúvidas no sistema
No aquário, mão-de-obra gratuita
E mesmo assim nós na loja indiana
Comendo yakissoba sabor chile

Amplas avenidas o vento da madrugada
Tantos fantasmas do crime político
A poesia do teatro com goteiras

Cidade de meu andar
A saudade é heroica 
Cidade imaginada a criar
A memória é progresso
Cidade à espera de esperança


Afonso Lima

quarta-feira, dezembro 28, 2016

chão

vida sagrada
que brilha muda e é finita
tudo que tem a ver com o chão é sagrado
sagrado o cuidado
o corpo braços no alto pelado
o fantasma de água nos pés sol sonolento
nem a vaidade das pequenas coisas
o conceito impermeável socado
as medidas impostas por tradição
mas o universo que samba o que é e será
mas o comer e dormir nosso de cada dia
sagrado o sonho e a esperança
que precisa cada homem
pequena fome grito de nascer
sagrada a lembrança do território verde
shiva dançando fez as árvores
e elas dançam
tudo que fizemos foi puro
e puro é o movimento e o tempo que amplia

Afonso Lima

domingo, dezembro 25, 2016

mundo paralelo

Eu era uma pessoa feliz quando tinha 12 anos. Eu assistia TV a tarde toda e, à noite, sentava com meu pai para o jornal e minha mãe para o programa de maquiagem, cozinha ou decoração. Quando via algum funcionário de meu pai ir submisso até a cadeira de choque para ser punido, pensava que era mais um malandro. Mas, um dia meu pai encontrou um velho amigo de colégio - o colégio privado para jovens herdeiros. Sim, o homem parecia dez anos mais velho que papai. 
Meu pai contou a mamãe que esse amigo salvara sua vida com primeiros-socorros na escola. Os dois ficaram conversando até tarde da noite no quarto. 
- Ele nasceu para liderar e se perdeu - mamão sussurrou
- As coisas são o que são, quem é violento, sofre - meu pai disse com a voz embargada.  
- Pessoas tão inteligentes e inúteis, pobre coitado - ela disse. 
O homem foi morar conosco. 
Ele era desconfiado e atormentado, silencioso, triste. Eu gostava de observá-lo. Nós ouvíamos música, eu jogava, via-o desenhando. Havia passado pelo tribunal. Começou a reclamar e foi acusado de distúrbio à ordem.
Um dia recebemos uma tia, que vivia no estrangeiro há muito tempo. Minha mãe parecia transtornada, a visita era imprevisível. Ela decidira limpar o chão da sala. 
- Parece uma criada - mamãe resmungava.
Meu pai estava muito brabo. Os dois passavam horas no jardim, mudos. 
Uma noite, em pleno jantar, nossa tia disse:
- Eu tiraria os meninos da escola. As pessoas estão sendo mortas por aí e ele só aprende sobre um mundo paralelo. 
Meu pai ficou vermelho, mas se calou. Os dois se casaram no fim do mês. 
- Pai, existe alguma coisa errada com o mundo - eu disse no dia do meu aniversário.
- Não, não pense nisso, ele me abraçou.

Afonso Lima  

o tempo

Na Pérsia, o rapaz viu os soldados do Imperador o assassinarem.
O Império era o puro caos. Somente as ideias o podiam organizar, libertar e regenerar. No sul da Itália, diziam que em todas as coisas existe um número.
Quando Plotino morreu, seu discípulo organizou suas anotações. Sua seita pitagórica afirmava que alguns homens precisavam apenas observar, sem comprar e vender e sem competição; outras crenças diziam que comer carne e fazer sexo eram um nocivo misturar-se com a matéria, com o mundo mau criado pelo deus inferior Javé.
Os godos invadiram Roma e o santo do deserto sírio escreveu cartas sobre a virtude da resignação.
Atormentado pelos erros, sua mãe cristã, um jovem se batiza em 387.
- O tempo só existe na mente, num ser criado, dizia o jovem. Deus criou o tempo. Deus não é o mundo, está fora dele. No princípio Deus criou o céu do céu, onde a inteligência conhece simultaneamente, sem a sequência temporal, e a terra que é invisível e informe, atemporal. Um bem inferior é ainda um bem. Os que pensam que Deus se difunde pelos espaços infinitos como matéria não entendem que Tu contém as coisas como verdade. A perversão da vontade é o mal.
Mil anos no pórtico da catedral: "Compreender para crer e crer para compreender".

Afonso Lima

sábado, dezembro 24, 2016

Instrumentos

Universo, fazei-me instrumento de vossa renovação.
Onde houver perigo, que eu leve o alarme;
Onde houver desumanização, que eu leve o respeito;
Onde houver crueldade, que eu leve a indignação;
Onde houver agressividade, que eu leve a reflexão;
Onde houver complacência, que eu leve a mudança;
Onde houver combate, que eu leve a festa;
Onde houver sofrimento, que eu leve o cuidado;
Onde houver lágrimas, que eu leve a força;
Onde houver medo, que eu leve a verdade;
Onde houver insensibilidade, que eu leve a lágrima;
Onde houver arrogância, que eu leve a simplicidade;
Onde houver isolamento, que eu leve o todo;
Onde houver regras, que eu leve o riso;
Onde houver confusão, que eu leve a análise;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.

Afonso Lima



sexta-feira, dezembro 23, 2016

Rolando

Abraçados na nuvem
ovos de porcelana
o rio transparente
o terno branco duplo
as macromoléculas colidiram
há 4 bilhões de anos
e nós na velocidade de dobra

Dois ursos brancos rolando na neve
nós passeando pela ponte sob a chuva
japonaiserie no tempo do complô
a flor de leite e o fino dedo no rosto
é hora de rejuvenescer

No universo ao lado o peso nos atinge
expressando esperança por uma estrela
rolando como insetos na areia clara
caindo do alto de uma árvore rolamos
dentro a dança, gravidade leve
o branco sol nasce em frente ao mar

O manto branco que nos cobre
O velho nos olha coroado somos belos
Contra a corrente, metamorfose
E não - jogador se torna o jogo
Transformados corremos na manhã

Afonso Lima




Entretenimento

"Tenha uma sensação única!"
"O que parecia impossível!"
"Além do bem e do mal!"
"Liberte-se dos últimos preconceitos!"
O contrato deixava claro que a família seria sustentada enquanto vivesse. A vida do bairro piorara muito quando o crime chegara. Os empregos deixaram muita gente doente. Os pais trabalhavam até a noite e as crianças viviam pelas ruas.
- Varias formas de matar você pode usar agora - dizia a propaganda. Ver um homem morrer é algo que você nunca vai esquecer.
Ele já havia decidido. A mulher chorava sem parar. prometia se prostituir. Podiam ir morar mais longe, no interior. Olhou para os filhos para os quais não pudera pagar o médico no inverno. O homem sentia a água no pé, sapato furado.
O empresário mostrava os cemitérios cheios de flores.
- Eles são muito éticos. A grama está sempre verde.
A mulher acabou desmaiando.
Ela o jogou no rio.

Afonso Lima

No bosque

O teólogo andava na margem do rio.
O filósofo fala sobre o dogma da razão.
O pensador pedia que se sentassem um pouco.
- Os representantes ignorando a vontade popular, disse o teólogo. A dignidade humana.
- O que as pessoas precisam é de um mito pelo qual construam uma noção de identidade - diz o filósofo.
Uma chuva fina cai recebendo o sol oblíquo. O verde parece acentuar-se em contraste com nuvens escuras dispersas.
O pensador, tocando a relva, pensa em voz alta.
- Você fala como se a filosofia fosse, toda ela, um gesto de apagamento. Parece que existe algo mais rigoroso que o conceitual, não?
O teólogo, escondido sob a árvore, diz:
- Eu temo pelos irmãos. Os meios de comunicação funcionando como propaganda...
Penso no vínculo comunicativo entre os seres humanos.
- Saia de baixo da árvore, pode ser perigoso, diz o filósofo.
O pensador faz um gesto para que eles o acompanhem. A chuva está mais forte, ele terá de voltar à cabana.

Afonso Lima



terça-feira, dezembro 13, 2016

Nova geração

Ele usa gravata colorida, camisa para fora da calça e uma barba moderna.
Ele segura o microfone como um cantor.
Ele caminha pelo palco.
Ele passa na frente do vereador que fala e aparece na tela.
Ele manda o prefeito sair rapidinho porque perdeu a eleição.
Ele faz a plateia torcer contra si mesma.
Ele é censurado por outro vereador que diz que ele quer impedir a aprovação.
Ele é vaiado pela plateia.
Ele sobe para falar com o povo.
Ele é bonito e tem pós-graduação.
Alguém grita: - Populista!

Afonso Lima

Mesh8 em V - 0.2

Estou sozinho no espaço, escrevo para guardar a memória do meu povo.
Recebe um visitante, que diz chamar-se M11.
B01 caminha pela cidade, o sol está brilhante, muita gente fazendo esporte e passeando pelas ruas. Um homem discursa em um palco de cimento. Ao final, encontra o pastor que diz que "o mundo pagão não venceu".
Eu conto a M11 que a dissidência foi derrotada na guerra. Diziam que o "mundo pagão venceu".
M11 disse: - Meu amigo C73, é um robô cientista, um dos três comandantes da expedição.
O grupo Mesh8 penetrou na galáxia V de 0.2.
M11 disse: -  C73 percebeu a cidade vazia, seus espiões mandaram imagens, vida apenas em uma espécie de templo no alto da cidade.
Uma nave sem vida e registros deformados por algum tipo de radiação.
- Isso está desestabilizando o cosmos, podemos chamar de 0.1 - C73 diz a M11. É uma cápsula em um lugar que podemos chamar de 0.2. B01 diz que terão de encontrar 0.2.
C73 diz: - Precisamos descobrir a origem do sistema autônomo. B01, o capitão, pede que M11 use o retorno no espaço-tempo.
B01 resolveu caminhar pela cidade e foi infectado por um dos biorobôs.
O pastou disse: - Quando chegar o dia, vamos acabar com o mundo pagão e viveremos no espírito, dentro da terra.
Eu digo: - A dissidência foi derrotada na guerra. Não conseguiam acordo com o Poder central e teriam de imigrar. Mas um dos seus cientistas mais geniais conseguiu criar um dispositivo que entrava no sistema nervoso criando alucinações - a massa foi aprisionada numa cápsula de realidade alternativa.
O visitante retorna, C73 consegue retirar o biorobô de B01 com uma espécie de radiação. M11 percebe que deve destruir o templo.
Uma nave perdida solitária.

Afonso Lima

segunda-feira, dezembro 12, 2016

A cidade

O universo se refaz
é o que o menino vê
nos cantos da casa
é aquele homem morto e se levanta

o menino ouve o tocador de alaúde
coloridos ursos leões e fadas
e na rua os homens morrendo de fome
alguma coisa está errada

- Não subestimem o sonho da cidade justa
As torres desabam um dia
Uma punição que apavora o mundo
Minha canção é contra a tirania

O homem sonha com o vento nas flores
Ao lado do rio onde seus filhos crescem
Não sufoque a beleza da primavera prometida
A doce mão da amada no leito no amanhecer

As onças e os cornos pela cidade
O monstro nascente, o povo injustiçado
Ele vem, vence a morte
Não subestimem o sonho da cidade justa

Até quando um ser humano pode ser humilhado?
Até quando um ser humano pode fingir não saber?
Até quando um ser humano pode negar a beleza?
As montanhas também podem ser destruídas pelo vento.


Afonso Lima














sábado, dezembro 10, 2016

42.8 J

My3-II desceu primeiro no planeta desconhecido. Ela podia perceber M.V.2.M.D-I suando. 
A Missão Liberdade estava preocupada com as formas de vida que poderiam existir ali. 
Cristais de rocha brilhantes, uma névoa no chão de rochas prateadas, insetos com um zumbido desagradável. 
My3-II e sua equipe avançaram por dentro de um bosque que parecia mais uma rede de seres interligados. 
- Que nojo dessa gosma, dizia HCE 4. 
Eles entraram numa caverna. A última mensagem falava que uma forma de vida inteligente devia habitar o local, pois uma IA podia ser vista. 
Dez anos depois, HUK-7 descia no mesmo planeta. Um exército foi preparado. Nesse meio tempo, uma guerra começara na Terra e uma missão tripulada explodira no espaço. Nunca se pode voltar ao planeta, e, no Congresso, houve um debate sério sobre a necessidade de evitar novas missões. 
HUK-7 trazia um especialista em vida alienígena, um especialista em inteligência artificial, diplomatas e telepatas. 
A comoção durara muitos anos. Um trauma no expandir da democracia. Desde criança ouvira histórias sobre a missão desaparecida. Muitos pensavam que bactérias poderiam ter dizimado a tripulação, outros que poderiam ter sido aprisionados como animais. Ele desenhava no treinamento forças de ocupação que prenderiam os criminosos alienígenas e derrotariam forças imperiais. 
Ao entrarem na caverna, ouviram o Concerto para Piano nº 14 de Mozart. HUK-7 reconheceu sua música favorita. 
- Sejam bem-vindos seres do planeta Terra. Recebemos vocês há 1/3 de ano solar. Faremos a mesma pergunta que fizemos anos antes. Querem ver? 
HUK-7 disse que não. 
- Poderão ouvir então o que seus amigos deixaram como última mensagem. Essa é My3-II, capitã da nave 42.8 J. 
- My3-II falando. Encontramos uma forma de vida artificial que pode mostrar a verdade. 
Não restou nada de meus colegas. Eu os sufoquei com gás venenoso. Eu mesma cometerei suicídio em seguida. Quando eu descobri o que era a Missão Liberdade, resolvi acabar com ela. 
My3-II estava ao lado dos seus colegas. 

Afonso Lima

sexta-feira, dezembro 09, 2016

sonha

dormia puro sonho
a sombra se aproxima
riso lágrimas

galerias escuras
pesadelo de um povo
caosmos

corre Lívia agora mar
volta a cantar sobre o bosque
vira mulher e canta o dia

funeral divertimento
o grito
fim de novo

A luz da vela no castelo
retirar o lodo
perigoso engano

corre Lívia agora mar
volta a cair sobre o morro
vira mulher e canta o dia

Afonso Lima


quarta-feira, dezembro 07, 2016

capitalismo colonial

o empresário escravocrata

é a forma mais pura

a nata da exata faca

cabeça de velho na rua


o empresário escravocrata

conhece jazz e drummond

a nata da bala de prata

corpo negro no papelão


o empresário escravocrata

fala em orçamento e ajuste

offshores e trusts a escravidão

continua no vagão do trem


o empresário escravocrata

vota a lei na calada

da noite e bota gente na rua

democracia de sala fechada


Afonso Lima

domingo, novembro 27, 2016

O canto do Pássaro Vermelho

Ele conta uma história para os netos, que estão na cama:

Os fantasmas estão sobre as montanhas de ruínas. Chega o pássaro de penas vermelhas - penas que caíram uma vez na China e até hoje se canta uma canção sobre elas.
- Pássaro Vermelho, que conhece o empíreo e o trono de Deus, diga-nos como está a cidade do outro lado.
- Um milhão sob cerco. Logo, sem comida, combustível e água.

Uma mulher-fantasma chora, repetindo:

- Três mil anos antes do Jesus! Três mil anos antes do Jesus! Já se fazia comércio nessa cidade! Ha-lam! Ha-lam!

O fantasma envenenado a abraça.
O fantasma sem cabeça aponta a torre de onde foi ferido atrás da névoa:
- Eu percebi que iríamos morrer quando notei que não tínhamos remédios, fluidos intravenosos, antibióticos, medicamentos para dor, conjuntos de sutura e médicos.
- Ouvimos as pessoas nos túneis do inferno, só pequenas unidades - diz a mulher que escorre sangue.

- Quatro meses sem comida. Mergulhados no caos, e o regime permanecerá no poder - diz o Pássaro.

O fantasma sem um olho pergunta:
- É verdade que os que mais gastam em bombas também têm pessoas que têm fome?

O Pássaro abre as asas:
- Sim. Há muitos anos, meio milhão de pessoas morreram por causa de armamento químico no oriente. Agora, com essa desculpa, se começou o bombardeio. 

O fantasma sem cabeça pergunta:
- Tudo isso é medo dos fundamentalistas? Eles foram treinados na Pérsia. Eu lembro quando o ouro negro foi nacionalizado há muito tempo na Pérsia e exércitos invasores tomaram o país. Os religiosos conservadores se rebelaram. Hospitais pegando fogo. Crianças mortas pelas ruas. Bombardear a cidade da Rota da Seda é o primeiro passo.

- Silêncio, diz o Pássaro Vermelho.
Uma fila de fantasmas chegam da cidade e o pássaro canta uma canção triste. Nenhum deles consegue conter as lágrimas.

Afonso Lima


sábado, novembro 26, 2016

Os filhos do sol

Lá na terra do povo sami
cinza e azul
azul e cinza
o peixe assiste
o fogo da finlândia

Lá na terra do povo sami
branco e azul
azul e madeira
e o galho branco
no frio da finlândia

O povo sami estranha
o gelo demorado
o rápido voltar
do lago

Lá na terra do povo sami
o branco já se foi
e o peixe pensa: tudo mudado
o vermelho e o azul

Afonso Lima






sexta-feira, novembro 25, 2016

Para viver numa sociedade fascista

Para viver numa sociedade fascista, você precisa ter um carro. Porque o carro cria viadutos e gera lucro. Para viver numa sociedade fascista, você precisa dizer ao seu filho que um homem só é um homem se puder impressionar uma mulher (os jantares, um diploma e a potência de um carro). E você precisa saber o que são bancos de investimento. Porque isso vai lhe ensinar a pensar em tudo como consumo, autocomplacência, economia sem produção, risco calculado, legalidade ambígua e poder individual. O sucesso é reconhecido, vale uma fraude contábil. Simpatia é melhor que informação. Mas informação é poder e, se for poder, é necessária. Para viver assim, é preciso ter um foco e um foco apenas. A riqueza prova o valor. Buscar inspiração em marketing corporativo. Para viver assim, una-se a quem pensa como você: envios de mensagens, disparos de Whatsapp e preparação das saídas às ruas. E você tem de eliminar da sua fala coisas como "sindicatos", "impostos" e "solidariedade". Para isso, forte trabalho de comunicação via grupos de Whatsapp. Se você for duro com os "malvados", algo bom virá para todos, queiram eles ou não. Para viver numa sociedade fascista, nada pode dar errado. Você deve ouvir sempre as mesmas pessoas. Para viver numa sociedade fascista, você precisa ter carisma e esconder a pena e nojo das pessoas que (é a vida) não estudaram, só humilhar os fodidos em particular, saber usar a vaidade para usar as pessoas. É preciso não se identificar com os de fora. É preciso ver e ouvir sempre de novo para ter certeza de que só a causa é legítima, ainda que alguns atos sejam lamentáveis. Para viver numa sociedade fascista, você precisa esquecer que pode estar errado. Para viver numa sociedade fascista, você precisa achar que os pobres dão trabalho. E é preciso alguém para vigiá-los. Para viver numa sociedade fascista, você precisa produzir miséria e produzir balas de borracha. Para viver numa sociedade fascista, não faça nada. 

Afonso Lima

quinta-feira, novembro 24, 2016

A casa

“Quem é o líder”, o oficial desce do carro.

Demoliram as moradias - ele trabalhava na fábrica e levou os filhos embora. 

Uma casa com os pés no chão/ o vento não entra dentro/ um colchão e alimento/ a quietude e a alegria

"Não temos lideranças”, dizem e os advogados do movimento chegam.

Obras do novo prefeito, levados ao bairro afastado - sem luz e sem ônibus. 

uma casa é edifício/ variados formatos e tamanhos/ uma casa é onde se compartilha/ signos de amor

"A invasão aqui está consolidada, vamos esperar, serão retirados após uma autorização judicial”, diz o tenente.

Chegam depois da seca horrível - só podem pagar terra no mato, tijolo e tijolo no domingo. 

destinado à habitação, madeira ou pedra/ verão ou frio/ de um ou dois andares/ crianças olham nuvens no teto/ as estações antes e depois /

Mal tomou posse e já disse: “a Constituição não cabe no PIB”.

Aluguéis triplicam - na primeira semana já acabou o salário, ir para mais longe. 

uma casa com os pés no chão/ nela nascem e morrem/ flores no jardim/
uma casa é onde se compartilha/ a quietude e a alegria

O ministro mandou suspender a contratação de 11 mil casas.

Moradia é mercadoria. A cidade é investimento - disse o prefeito. 

o menino não sorriu/ bambu cruzado/ os esquecidos erguem/ rápido o barraco/ o sol vai nascer e o frio


Afonso Lima


quarta-feira, novembro 23, 2016

Renascimento da cidade

São quatro pilares da cidade
um dragão em cada um deles
na catedral, no rio, um portal no lago e outro no bosque
e a cidade seria toda transformada em aço e escombros

Forças da repressão e mentira
Luz incandescente, tigre
Na floresta e na noite
Água, água viva do renascimento

os sinos tocam de hora em hora
oferecem aos pássaros oração
a cidade brotava entre pedras
será reerguida, os soldados trocam de pele

Forças de explosão e lanças
Quebrando os vasos da memória
Luz incandescente, tigre
Água, água viva do renascimento

as serras elétricas têm licença
pinheiro a maior árvore por não ser nativa cai
construção do empreendimento comercial e residencial.
o sonho de ter uma praça não se consumará

O Labirinto e o canto que guia
Horrores da festa destruída
Luz incandescente, tigre
Água, água viva do renascimento

a vaidade impede qualquer espontâneo fluxo
a produção ordenou os ritmos e o exílio dentro
água, vem mover os entulhos
a fala livre do poder

Forças do pesadelo e correntes
Luz incandescente, tigre
Na floresta e na noite
Água, água viva do renascimento

o canto do medo silenciou nossa voz
o apocalipse é uma espécie de sono e a máquina monstruosa
a música das profundezas vai correr pelos portais
nossos ossos tocarão a terra novamente

Afonso Lima


domingo, novembro 20, 2016

Amor na incerteza

eu não tenho paciência para a humanidade
e é preciso criar laços
eu quero ver o lado pior dos outros
e quero ver o que é bom no outro
eu me irrito com coisas pequenas
e sonho com trazer à memória quando você também sofreu
eu falo por ansiedade e não escuto
meu poema é soco e odeia a mente maquinal
eu fico preso ao visto porque eu também quero mais
e crio espaço com a linha
eu quero que as pessoas mudem rápido
e me interessa a mãe negra, a criança solitária
eu esqueço qualquer coletivo quando estou com medo
e acho que o medo é a origem do controle e o controle é inútil
eu me deixo levar pela preocupação e me torno agressivo
e sei que as pessoas não são ouvidas
eu quero demais e exijo demais
e sei que o poema é entender tão profundo que se chora
eu não entendo porque os outros correm e não têm tempo
e sei que o sorriso é revolução e dou voz ao esquecido
eu quero conseguir as coisas rápido demais
e sei que criar pontes é a função do passado
eu quero dar o outro tapa em quem me deu na face
e sei que o respeito já está onde menos espero.

Afonso Lima

quinta-feira, novembro 17, 2016

você, agora

neste momento, você está vindo ao mundo
o mundo é maravilhoso, posso te dizer
se você olhar bem dentro de todas as pessoas
elas olharão para você e algo de bom surgirá
todas elas têm algo especial e novo
neste momento, você está vindo ao mundo
guarde um silêncio dentro de você
não se deixe arrastar pela excitação
neste momento, você está vindo ao mundo
e você será melhor do que nós
a única riqueza e a única herança que te deixo
é a de é preciso escutar, conhecer, estender a mão
e os outros vão perceber que você também é como eles 
neste momento, você está vindo ao mundo
existem lágrimas e funerais, e o entendimento nos liberta
eu te abençoo com a palavra significado
neste momento, você está vindo ao mundo
nos perdoe pelo que não sabemos
nos perdoe porque não temos muitas respostas
nos perdoe porque sabemos demais
vamos fazer juntos o que é ser humano
agora ou antes já, você está vindo ao mundo
aprenda a andar entre todos 
mesmo o que não é igual, o que assusta
os velhos vão te ensinar, as crianças também, os erros e as quedas
você pode errar e compreender como é amar 
você ganha um mundo e o mundo ganha uma nova chance 

Afonso Lima

terça-feira, novembro 15, 2016

Conflito criador

- Adeus, América - disse Mr. Bigode enquanto acendia o charuto na cadeira de vime no jardim.
- A democracia-show venceu. Pelo menos, por ora.
Maria Lúcia servia a limonada para os dois homens de sua vida. Ela se sentia elétrica, assustada, agressiva e em choque. Mas precisa respirar e tentar entender... A democracia não era o que achava. Sentiu-se em meio à ruínas. A América corporativa-arcaica.
O jovem adolescente parecia desligado. Estaria armando uma revolução pela internet ou jogando vídeo-game?
Mr. Bigode já tinha muitas opiniões:
- Sociedade baseada em slogans. São camadas de conservadorismo, e além do conservadorismo, fascismo. Empresários pensando em como acabar com os salários. Trabalhadores empobrecidos contra trabalhadores mais empobrecidos ou desesperados de outros países.
O filho se joga na piscina.
- Ela foi ferida porque não conseguimos um dos três princípios - além da participação e da, digamos, justiça imparcial - para fazer com que ela andasse: a informação sadia para o julgamento correto.
Maria Lúcia tirou as sandálias. Sentiu a grama. Havia o drama de o filho não se importar com o negócio do pai - uma padaria. Uma ótima padaria, doces, almoço, pães, vendiam muito bem. "Você devia se importar, você depende disso", dizia o pai.
- Penso se a mídia, preocupada com desconectar uma coisa da outra, gerou o sistema de fragmentação do pensamento. A mídia, chego a essa conclusão, não serve para informar, mas para gerar um estado de emergência contínuo.
- Eu sou contra a ocupação das universidades - disse o filho.
Os pais olharam um tanto chocados.
- Quero estudar.
Ela sabia que seu filho era eco-ativista, ciclista e respeitava as minorias.
- Eu sei o que significa essa PEC, mas mesmo assim quero estudar.
Ela pensa que o medo nos leva a tomar as decisões mais rápidas. Ou seja, controlar os pobres e deixar como está o resto.
- Enfraquecer as massas - disse o pai em telepatia.  Se o trabalhador se informar e tomar decisões, será mais forte e vai exigir direitos. Meu pai sofreu muito com o fascismo na Espanha. Eu sou pequeno empresário, mas não sou fascista.
- Eu não quero pagar imposto. Meu professor diz que o conservadorismo é uma doutrina válida - o filho respondeu.
- Os bilionários não querem pagar imposto... Os trabalhadores empobrecidos precisam do Estado, mas também não querem imposto. A base disso tudo é o principio de solidariedade...
 - O imposto alto é o que faz as empresas americanas irem para o México, diz o filho. Um orçamento equilibrado é o que pode nos salvar.
A mãe pensou que aquele menino não tinha poupado trocados para pegar o ônibus para a universidade como ela. Como haviam ficado tanto tempo sem se falar? Bom dia, afinal, não era diálogo.
- Filho, ela disse - O problema é que os avanços dos partidos à esquerda nunca são mostrados na TV. É o bloqueio. Assim ficamos sem julgamento.
O rapaz respondeu:
- Não me interessa apenas julgar que alguém podia ter feito e não fez. Quero mudar o sistema que amarra até quem quer mudar.
O pai, vermelho, disse:
- Eles acham que o Partido Democrata - esse, da Wall Street - é  extrema esquerda, loucos totalitários com dinheiro do George Soros. O movimento pacifista dos anos 70 é o mesmo "comunismo dos antiamericanos" de sempre e o Occupy.
- Eu quero a liberdade de decidir. Eu vou lutar pelo que eu acho certo. Eu não sou um animal ignorante.
O filho saiu.

Afonso Lima

segunda-feira, novembro 07, 2016

ficção

sempre pode ser outro
o viajante que se perde
na luz
a beleza inútil do jarro de metal
batalha de crianças
fantasia necessária
louco em marcha
imaginando um caminho
o céu é transformação
o que a china sabe no sol?
o que o grego sente ao fechar
os olhos?

sempre pode ser outro
a hybris de não voar
punição pelo sofisma
porque o lógos é respiração
exercitar alternativas
ninguém sabe como será
revolução

o poema como ferramenta
política
estudo do tumulto
areté do ouro falso
analítica do sonho
a ficção da folha em detalhe
o infinito é grande demais
a falta que alimenta
o mundo

sempre pode ser outro
outros modos de vida
louvado seja o dragão
que a realidade é inacabada
o erro das coisas ainda não nascidas

Afonso Lima











domingo, novembro 06, 2016

Vergonha

Gente pobre me irrita
Eu sou o novo escravo
Empresário a gente imita
Eu compro, lavo e passo

Você deve ter vergonha
De ser assim esquerdista
Querer igualdade, que preguiça
Bom mesmo é cada um por si

Se eu subi
Foi por suor e graça
Sou o último que ri
Seja liberal-reaça

Afonso Lima


sábado, novembro 05, 2016

o chá

o estranho se move sob o viaduto  
o hálito impuro nas paredes
o impossível descanso da morbidez
o labirinto desfeito em linhas retas
poder delirante em ávidas metas
outra face talvez

apodrece o homem na multidão
o império bárbaro impõe seu guião
mas o poeta armado propõe outro lado
uma conversa e rompe-se o cerco
um chá quente e acolhimento

Afonso Lima


sexta-feira, novembro 04, 2016

Meu companheiro

Uma pátria, a metáfora, obra que gera diálogo
Companheiro que evoca a companhia
Ensaios de vida, a parada transfigura
a cantiga da dor não esquecida
Eu me fortaleço, poderes de cura
Irmão, luz contra o medo feroz do evidente
Em um tempo em que é preciso seguir
e difícil

Meu companheiro
Num tempo em que nos querem condenados
a renunciar ao sonho da mudança
Dançamos tardes tantas
Eu, tão infiel e sempre teu
Tua voz na cama ou não
Tua magia, eu vejo o horizonte distante

Nas noites em claro preso
Contigo, outro mundo, analiso
a maldição do poder do discurso
Companheiro suave, navio seguro
Coro da história que alimenta
Outro texto e um renovar do tempo

Meu companheiro
Tenho de tomar posição em uma época
carregada de oposições, querem velocidade
Tenho de seguir um caminho e colocar tudo em seu lugar
e dizer algo, ainda que no erro

Afonso Lima




Encontro na floresta

- Aqui, no meu elemento
floresta ao lado do rio do inferno
chamo o Anjo primogênito
príncipe dos imortais das sombras
para a vingança contra o Deus inimigo
sou um polvo adolescente e por mais de duas décadas tenho ouvido
seus lamentos fúnebres, o fel de sua bondade e sua filosofia da inércia
podia ir rio adentro, mas não antes de tornar-me
o Conde do Outro Mundo
carne macia, bico afiado
eles prenderam meu corpo entre barras de ferro
animal selvagem com sangue quente
tudo que eu amei foi envolto em mortalhas de medo
minha consciência gótica que vê como
covardia a razão das chaminés e os acordos do patriarca
o filósofo republicano, o pedagogo eloquente ganhando medalhas da burguesia
política de homens gordos, república contra o homem que opera a máquina
eu, nascido na relativa liberdade e humilhação das colônias
tive de aspirar o ar mofado da metrópole
meu corpo infestado de doenças da moral
o outro mundo que eu vejo e canto
não tem objeto, conceito ou método
a natureza é viva e cresce em mistério
e o coração dos homens é um abismo
a física não explica o caos do fogo do espírito
nem o século XVI é sistema para as teias da aranha
que eu seja o demônio a tirar de formação os bons soldados da nova geração
sonhos absurdos e ciências sem utilidade os perturbe
que eles corram de pavor quando a morte soar seu corno
meus cantos sejam o portal para a confusão de novos dias
eu ofereço meu corpo pela teologia da loucura
eu quero destruir rei, confessores e meu eu
minhas garras e asas de morcego
eu quero tua tocha escura e veneno em meus tentáculos
para matar os herdeiros dos sifilíticos nobres gloriosos
vingança pela guerra contra o herói pálido de nossa era assassina
Pai terrível, entrego-te minha vida.

Na floresta, um animal surge.

Afonso Lima


No jardim

fincando as patas em tua perna
você, que não gostava de gatos
e a eles tentava proteger

nunca cheguei a entender-te
por certo nem vice-versa
água era o que nos nutria

luz amarela diagonal
quando inicia novembro
algumas flores em cachos e o cinza

desvestir-se em tropical alarido
um pouco como branco rio tardeiro
você, feito de bronze de ilha
e decadência de mil romas

as patas te submetiam
fincando as patas em tua perna
e nós dormíamos abraçados

Afonso Lima

quinta-feira, novembro 03, 2016

Eu sou Alpha

Quando J. abandonou o escritório para se dedicar a pesquisas ocultistas, sua família preocupou-se. Logo, um sobrinho decidiu entrar com um processo para tomar seus bens, a casa e os imóveis no centro da cidade. Apesar do patrimônio, ele vivia como um monge - a casa estava em ruínas, os cômodos cheios de objetos estranhos, máscaras, desenhos, papéis e livros. Todos os dias a cozinheira preparava a mesma combinação de frango, vegetais e arroz. 
Seu estudo começou no dia em que alguém, lendo o jornal, comentou:
- Uma doida vidente diz estar recebendo mensagens de uma entidade chamada Alpha.
No outro dia ele pediu demissão.
A cozinheira, que chegava todos os dias às 7h, chamou o sobrinho ao perceber que J. desaparecera sem levar nenhuma roupa, e ele notificou a polícia. Suas anotações no caderno azul - encontradas pelo sobrinho, diziam:

Dia 20 de outubro

Finalmente, fui procurar a senhora que dizia estar recebendo mensagens da entidade. Ela mora em Santos num conjunto de casas muito deterioradas. 
Ela me falou que a entidade dizia haver uma mensagem urgente a ser transmitida e pedia que realizasse um ritual para a abertura de uma espécie de portal. Ela não tivera a coragem de fazê-lo, mas deu-me as indicações. A entidade dizia chamar-se Alpha. 

30 de outubro

Eu realizei os ritos indicados. Coloquei no meu altar uma pirâmide, velas, evoquei os nomes indicados e chamei a entidade. Senti um cheiro forte de incenso, mas fora isso, nada ocorreu. 

31 de outubro

Acordei com um sonho estranho. Uma luz muito forte emana de um ser que é dois seres unidos. Ela diz ser Spodet, a mensageira que aos homens "o que é legítimo aos olhos dos deuses", portanto os dias benéficos. Sábios desenham símbolos com a contagem dos dias. A luz entra pela abertura do templo e toca a imagem da deusa. O deus de cabeça de cão aparece. Ela diz que devo preparar-me para descrever o que me for inspirado. 

Dia 2 de novembro

Começo a desenhar imagens que me surgem. Algumas fórmulas. O lápis já não é suficiente. Tenho que comprar diversas cores. é uma espécie de seita, homens de túnicas brancas, estão venerando uma entidade. Mas a entidade não surge imediatamente. Vai ficando mais e mais visível. Por fim, ela tem um corpo. Eu decidi procurar por essa entidade. 

Dia 5 de novembro

Spodet me leva a um professor que tem um livro sobre mitologia. É um medico, que dá aulas na universidade. Mostro-lhe as imagens. O homem está assustado e me convida a ir à sua casa. 

Dia 6 de novembro

Ele pediu para eu dormir na sua casa. Fez rituais de proteção. 
O homem me diz que, segundo tradições antigas, vibrações agressivas podem se tornar regras internalizadas e viram identidades que podem, por um fenômeno chamado co-emergência, trazer uma forma semelhante. "Quando uma entidade é cultuada surge energia associada". Sombras aparecem quando as regras produziram e infestaram o eu. 

Dia 8 de novembro 

Eu decidi realizar os ritos na casa do professor e abrir um portal. Jantamos e ficamos na sala conversando até a lareira extinguir-se. Ele cochilou e viu a imagem da entidade nefasta. 
Eu pensei que sua mesma ambição podia ter feito co-emergir o Ômega.

10 de novembro

O professor estava muito assustado e pediu que não o procurasse mais. 
Também desisti de evocar Spodet ao ler que ela conferia poder, mas podia trazer ambição ardente. 
Mas não pude deixar de pensar no fim daquela mensagem urgente. Lembrei-me de uma fórmula que escrevera sob símbolos do deus-cão. 

10 de novembro - Madrugada

Repeti a fórmula no altar.  Escrevi uma narrativa. 
Uma seita de sábios- brancos, homens reunidos em torno da ambição pelo conhecimento. Essa seita planejava tomar o poder usando a influência do mundo espiritual para aterrorizar e negociar com juízes, políticos e homens poderosos."

J. desaparecera no dia 11. O sobrinho herdou a propriedade e passou a ficar inquieto com uma opressão constante e uma presença que dizia sentir quando andava à noite pela casa. 


Afonso Lima












O outro Pascal

Pascal andava à cavalo perto do castelo. Haviam sido convidados pelo conde para a caça, mas ficava rapidamente entediado com o latido dos cães e os tiros contra as lebres. O sol se pondo perto do rio parecia muito mais promissor.
Mas ele se distraiu e o sol já estava vermelho e baixo demais quando percebeu que tinha de voltar.
Na penumbra, tentava lembrar o caminho. Logo notou que estava perdido e a lua já brilhava no céu.
Viu uma casa com fumaça saindo da chaminé e resolveu bater para perguntar o caminho.
Quando a porta se abriu, ele por pouco não deu um grito. O homem parecia muito consigo mesmo. Apenas tinha o cabelo mais loiro. Seria um parente distante? Perguntou pela estrada, o homem sorriu e disse que era comum os viajantes se perderem ali. .
- O senhor não é o matemático Pascal?
Ele teve de dizer que sim.
- Eu tenho lido sobre seu trabalho. Mas gostaria de lhe dar uma opinião, se não se importar. Sente-se, tome comigo um copo de vinho e depois eu mesmo o levo até a entrada do castelo.
O cientista não teve escolha e sentou-se ao lado da fogueira. Logo estava sentindo-se confortável numa poltrona fofa e com vinho nas veias. O outro trouxe uma caixa de metal de cima de um móvel.
- Eu criei uma máquina para calcular.
- Uma máquina?
- Sim. Ajuda nos cálculos mais avançados. Queria fazer as quatro operações, mas ainda não consegui construir. Quero que o senhor a leve e a mostre na corte. No futuro, os seres mecânicos podem vir a trabalhar pelos homens, e espero que isso prove o quanto somos diferentes deles.
- Uma máquina de calcular... É um autômato? Acho que desenhei algo assim quando era criança. Ouvi falar que os gregos tinham algo parecido.
- Com algumas engrenagens se consegue fazer a adição e subtração.
- Como funciona?
- São dois conjuntos de discos: um com introdução dos dados, outro que armazena os resultados.
Eles ficaram examinando o aparelho. O estranho disse:
- O senhor sabe, acho que nossa ciência caminha para o abismo. Tudo é razão e especulação. Mas o que significa a existência? Um homem que alucina, não vê como real o que ele acredita ser real? O ser é ser percebido.
- O senhor se refere à filosofia do senhor Descartes? - disse o cientista.
- Sim. Ele bem queria um mundo em que tudo fosse máquinas, inclusive o homem. Ele acha que os princípios são claros e distintos, mas na realidade são uma aposta, são confusos e obscuros. Ele criou uma seita de racionalistas. Não considera as limitações, a impossibilidade de percepção total.
Sentiu alguém observá-lo pelas costas.
Ao virar-se, viu a si próprio como cadáver azulado, com um verme caminhando pelo rosto.
Pascal sentiu-se tonto, sua visão escureceu e percebeu que ia desmaiar.
Quando acordou, estava ao lado de seu cavalo e a casa havia desaparecido.
Pouco depois, abandonou tudo e decidiu viver recluso no mosteiro de Port-Royal no qual tentou-se reviver a vida dos monges do deserto.

Afonso Lima


segunda-feira, outubro 31, 2016

K. e Y.

A imprensa teve o cuidado da chamá-las apenas de K. e Y. por se tratarem de adolescentes. Uma delas está em estado de paralisia e outra está morta. As duas jovens japonesas compraram o pacote para participar de uma Noite dos Mortos em um castelo em ruínas na Escócia. 
K. e Y. nunca foram alvo de bullying na escola, nunca relataram pressão dos pais no sentido de escolher carreiras ou melhorar o rendimento, não demonstravam excessivo receio em demonstrar emoção, nem zelo desmesurado em mostrar-se competente, nunca apresentaram isolamento ou mesmo sonolência nas aulas. O único fato estranho seria a fixação delas em comerem o lanche da escola dentro do banheiro. 
A viagem era uma espécie de acampamento de Halloween, no qual iriam ouvir histórias macabras, ver vultos fabricados e tomar sustos de aparições bizarras. Um gerente, uma turismóloga e um assistente eram os encarregados da organização do castelo, contando com cozinheiros, um operador, um técnico (invisíveis), dois atores e três músicos (mais próximos dos clientes). 
Segundo foi apurado pela polícia, na sexta-feira chegaram vindas de Londres com mais 30 garotas. Passearam pelos arredores do castelo sendo levadas por um ator vestido com as roupas tradicionais. 
Ao anoitecer, por volta das 16 horas, acendeu-se a grande fogueira e todos ouviram a primeira história. 
Era sobre o terremoto que ocorreu na cidade de Alepo depois da conquista bizantina. Mais da metade da população morreu e dizem que suas almas ficaram vagando entre as ruínas, tendo sido feitos rituais antigos para afastá-los. 
Tiveram o banquete com carne, frango, pernil, saladas e uma sopa forte, que algumas meninas relataram ter um gosto estranho. Ouviram velhas canções que narravam terrores de castelos. Caminharam por corredores escuros nos quais sombras pareciam gelar o ar. Duas ou três vezes gritaram por verem seres sobrenaturais surgirem do nada. 
Depois do jantar foi-lhes contada a história do dono do castelo, um juiz que ganhou título de nobreza depois de uma batalha sangrenta contra os ingleses. Ele sempre foi um homem rude, que debatia ferozmente questões teológicas e chegava a rezar em voz alta no meio de reuniões públicas. Com a idade, passou a ter alucinações e acabou restrito a um quarto do castelo, sendo cuidado pelo filho. Mas o filho casou, sua esposa engravidou, e ele decidiu ir viajar pelo continente para a mulher dar à luz em ambiente mais saudável. Dizem que seu fantasma nunca perdoou o filho por ter morrido sem sua presença. 
Nessa noite, muitas histórias foram contadas em frente a grande lareira do castelo, histórias de todas as partes do mundo. 
Uma delas dizia respeito a uma cidade de fronteira, que havia sido fundada pelos romanos, na qual os habitantes não celebravam a lemúria, festival dos mortos criado pelo fundador de Roma para apaziguar o espírito de seu irmão, que havia assassinado. Séculos depois, mulheres da cidade começaram a apresentar uma espécie de dança, na qual faziam gestos involuntários; as autoridades, assustadas, não sabiam como agir e pensaram que deviam incentivar o fenômeno com música, até que seis dias depois centenas de pessoas haviam morrido de exaustão. 
Foi servido um lanche da madrugada com carne fria e um chá forte. (Os organizadores dizem ter proibido qualquer tipo de bebida alcoólica, mas foram encontradas latinhas de cerveja nos quartos). 
Algumas meninas começavam a dormir pelos tapetes e divãs, mas a noite continuou animada. 
Uma das últimas histórias foi sobre os seres inumanos que, nas lendas orientais, vagueiam pelos campos e vivem em escombros, matando viajantes desavisados cuja carne comem, ou, na sua ausência, visitam cemitérios para alimentar-se da carne dos mortos, que desenterram. 
K. e Y.  pareciam muito contentes com toda a festa. Foram dormir no quarto com mais duas garotas quando o sol nasceu. 
Infelizmente, quando todos se preparavam para o café da manhã, lá pelas 10 horas, as colegas perceberam que não estavam entre elas. Começaram as buscas. K. foi encontrada vagando perto do rio em estado alterado, cantava um música. 
Depois caiu num estado terrível em que mal se podia mover e nenhum som saía de sua boca. 
O corpo da outra jovem foi encontrado no rio gelado. 
Ficou-se sabendo das cartas que K. e Y. trocavam. Nelas, juravam fidelidade uma a outra e Y. conta de um sonho que tem recorrentemente sobre um ser que aparece ao seu lado na cama. E também sobre ter tido quando criança uma série de visões, que fizeram com que seus pais a levassem a psiquiatras. Os pais não confirmaram a informação e não foi encontrado o suposto psiquiatra.  
A polícia ainda não chegou a uma hipótese conclusiva. 


Afonso Lima 



Viagem à Abyssínia

Ele foi levado à presença da rainha para receber sua bênção. Seu pai, livreiro de Campo dos Mortos, acreditava que o toque da mulher poderia curá-lo da tuberculose.
- Esse menino tem dons especiais, minha Senhora. Dizem que ele consegue saber o que vai nas mentes.
Ela riu. Pediu que aproximassem a criança de seu ouvido. A corte ria e sussurrava palavras como "deformado", "feio" e "grotesco".
A rainha levantou-se.
- Torne-se um verdadeiro inglês - ela lhe disse, colocou uma moeda em sua mão e saiu.
O pai lhe deixava folhear os livros. Em muitos deles, apareciam palavras inglesas entre linhas latinas. "É quando não se sabe a palavra", disse o pai.
Ele adorava um livro sobre a África, com desenhos de caravanas no deserto e bruxas maometanas.
Ele passou a cobrir-se com panos coloridos e afiar ramos de árvores como espadas.
Mas tiveram de se mudar porque a notícia dos dons do menino se espalhava. Muitos podiam temer ser um dom dos demônios, até mesmo ser ele filho de um deles. Chegaram anônimos a Londres, onde o pai morreu subitamente. A mãe tentou sustentá-los por dois anos, até que também adoeceu. Nesse tempo um nobre lhe concedeu uma bolsa para a Universidade, mas o rapaz desistiu quando viu que riam dele.
O padre o aconselhou enquanto trabalhava num jornal para ajudar a mãe. Ficou sabendo da sua fama enquanto menino.
- Está bem um menino ler mentes. Agora, prepare-se para estar na mente dos outros homens, o que só um livro pode fazer.
O padre defendia as virtudes das igrejas anteriores a 1066, de origem saxã, "pedra quadrada e escura ao lado do bosque".
- Precisamos nos defender contra as palavras francesas - ele dizia - No teatro, por exemplo, eles pensam seguir Aristóteles, querem que a ação ocorra toda num mesmo dia e num mesmo local, mas a poesia é abstração, universalidade.
Apesar do anonimato, homens célebres vêm a ele para lhe pedir conselho. Um deles, um jesuíta português, deixa consigo seu livro de viagens. Traduz o livro e imagina uma fábula que se chamaria "Viagem à Abyssínia".
Começou assim: "O fantasma de uma rosa fica em nossa mente como imagem, assim como uma pirâmide fica enterrada no deserto como monumento à vaidade de um Império". Assim que sua mãe faleceu, ele escreveu - em uma semana - a pequena novela para pagar o enterro.

Afonso Lima


domingo, outubro 30, 2016

A casa da praia

Chegamos com nosso Dodge vermelho na cabana de madeira bem próxima do mar. Os colegas de banco de mamãe tinham virado padrinhos do meu irmão - e queriam ver minha mãe grávida da minha irmãzinha.
Seu Juarez era um grande contador de histórias. Sua esposa, Isadora, fizera uma lasanha. Eu dormi antes de todos. 
Levantei da minha cama e vi a lua cheia. Parecia que a água estava mais próxima da casa. Caminhei até a varanda da casa e a água a envolvia. O que estava acontecendo?
Sacudi meu pai, que não acordou. Minha mãe também não. 
Fiquei na porta observando o mar subir. 
Acho que adormeci. Sonhei com prédios que pareciam estar em outra dimensão, coloridos. Eu voava entre eles. Alguém me acordou. Era um vulto que parecia ter saído da água. Dei um grito. 
O vulto me mostrou um barco, no qual estava o cadáver do Seu Juarez. Eu fiquei perplexo. 
- O que aconteceu? 
Não obtive resposta. Fomos navegando em direção a uma sombra que se revelou uma ilha. 
Na praia, diversos esqueletos e um som fazia zumbir a noite - só depois percebi que o som vinha desses ossos. Pareciam cantar músicas tristes. 
Meu amigo silencioso foi me guiando pela mão para dentro de uma casa de pedra no alto. A lua iluminava as rosas que cresciam no muro. 
- Você está vendo que isso não é um sonho. É o lugar para onde vão os que desaparecem - disse por fim meu amigo. 
A casa era coberta de quadros, espelhos e estátuas de mármore. Eu entrei na biblioteca. Livros escritos em diversas línguas. Pintados em folhas escuras, um animal semelhante ao leopardo, um peixe monstruoso e uma ave de fogo. Um soneto chamado "A Casa"- "Nessa casa ninguém te responde / e todos dormem para sempre". Depois, percebi um desenho no qual aparecia um menino como eu mesmo - e tentei observar seus caminhos complexos. 
De repente, um grito - é minha mãe chamando por mim. Observo no espelho ela tentando me acordar. Tento ir em sua direção e meu amigo estranho me segura. 
Consigo me soltar. 
Minha mãe me abraça. Faz meu pai partir antes do sol nascer totalmente.
Nunca mais voltamos à casa dos nossos amigos, e Seu Juarez faleceu dias depois. 

Afonso Lima





O caso dos corpos sem nome

Os corpos apareciam boiando no rio, mas desfigurados. Como não se tinha notícias de desaparecidos, Oto, jovem universitário, decidiu investigar o caso. Havia lido inúmeros livros em que um detetive amador conseguia intuir os passos de criminosos.
Oto foi falar com o padre da sua paróquia. Ele era um estudioso de ocultismo. 
Agora o padre dizia que tinha certeza de que os mortos eram da parte invisível da cidade. 
"Você já reparou que não existem favelas nessa cidade? Quando as pessoas ocupam um terreno e começam a erguer casas miseráveis, logo o governo cria um parque e expulsa as pessoas para outra cidade. Tenho certeza de que alguma pesquisa científica está usando essas pessoas sem rosto como cobaias". 
Procurou o médico legista da cidade. O homem não era nada simpático, mas ele insistiu e pediu que contasse qualquer coisa estranha. Finalmente ele revelou duas coisas: os corpos pareciam ter marcas de violência e um deles pareceu ter um movimento vibratório na língua e na mão. 
Lembrou o que o padre dizia, que as execuções públicas tinham criado um gosto pelo grotesco entre os moradores da cidade. "A insensibilidade virou uma regra; vi um menino brincando com um corpo putrefato que foi deixado em exposição na praça" - contara certa vez. 
Oto resolveu ficar à noite próximo à cabeceira do rio. Era o lugar mais acessível para qualquer ato desses. Escondido entre as árvores, observava a lua e os sons estranhos dos animais. Não tinha sono. Mas também não tinha medo. 
De fato, viu na terceira noite um homem vestido com um sobretudo negro se aproximar de carro e puxar do porta malas um vulto dentro de um saco. Tentou ver com mais precisão, por sorte a noite tinha uma lua cheia. 
Teve a impressão de que o saco se mexia. Ele sentiu um frio na espinha. 
No outro dia, um tanto cansado, foi procurar o padre. O homem serviu-lhe um vinho e disse sussurrando: 
- Eu não tinha imaginado isso. Você sabe que estudo essas coisas há muito tempo. Os chineses já falavam sobre isso. Os egípcios aprenderam dos indianos as mesmas técnicas. Mas foi no século XVIII, na Alemanha, que um sábio começou a criar a teoria. Ele estudou em Newton o conceito de gravidade universal e postulou a presença de uma energia universal. Ele ficou famoso por curar dores com um ímã. Segundo o cientista, seria possível transformar a energia invisível do éter em força magnética e esta em força orgânica. Já há tempos alguns homens se perguntam qual o limite da morte se um corpo puder ser mantido vivo através do frio ou uma energia qualquer. Alguém voltou a estudar  do magnetismo animal. 
Oto partiu com uma sensação estranha que não sabia definir. Por que afinal ele queria saber sobre coisas tão sombrias? Acabou adormecendo em sua cama sobre um livro. Sonhou que os condenados mutilados eram levados a um laboratório macabro e mantidos animados por algumas horas, para depois serem devolvidos ao silêncio no rio. 

Afonso Lima





quinta-feira, outubro 27, 2016

Uma zona morta

A Associação em Defesa da Cidade foi informada por uma enfermeira anônima. 
Milhares de pessoas em diversos hospitais do estado. "Nós suspeitamos que é algo na alimentação. Todas têm níveis altos de elementos pesados".
"O que pode ter causado isso?"
Desligou. 
Beatriz, a advogada diretora da ADC, pensou em primeiro lugar na sua filha. A menina sempre dizia não gostar do gosto da água da torneira. 
Ela foi procurar um amigo jornalista. "Existe alguma coisa na água, mas não podemos divulgar. Envolve o governo". 
"Foi um erro?"
"Não exatamente. A regulação é feita por um agência que pertence ao maior acionista: o governo. 
Ninguém regula essa porra." 
"Você quer dizer que..."
"O excesso de terceirizações. R$ 4,2 bilhões em dividendos depois da privatização. Nada investido na qualidade". 
"Você está me dizendo que temos um escândalo de saúde pública? E a imprensa esconde". 
"A água é um produto. Tem de dar lucro".
Beatriz achou que estava sendo seguida. 
Foi procurar um engenheiro, professor universitário, especialista no tema.
"É um monopólio certo? O estado pagou para melhorar o desperdício. Não melhorou. Onde foi esse dinheiro? "
Ele a levou até um laboratório. Mostrou uma amostra. 
"Tão tóxico que não posso dar para um rato". 
"Então a água é tóxica e milhares já morreram?"
"Me pergunte quem são os afetados. Todos são de zonas periféricas. O presidente da agência disse, numa reunião em presença de jornalistas, que seria uma boa maneira de acabar com consumidores que consomem pouco - claro que isso nunca vazou. Os técnicos sabiam há mais de dez anos que se o nível de água chegasse nessa zona morta o envenenamento era muito possível". 
"O senhor está falando que isso nunca vai vir a público?"
"Para essa lógica, esse público é um gasto. São os perdedores. Os acionistas querem dividendos. Quem tem gasto superior a 500 mil metros cúbicos paga tarifa reduzida e tem abastecimento priorizado". 

Beatriz se sentia tonta ao sair da universidade. Entrou no carro e recebeu uma mensagem no celular: "Sua filha está conosco. Saia da cidade".

Afonso Lima


quarta-feira, outubro 26, 2016

O desconhecido

Ele havia publicado alguns contos numa revista popular.
O padre, um leitor, havia chamado o jovem rapaz para ir na casa que os moradores diziam estar dominada por estranhos fenômenos. O clima frio e o céu cinzento não ajudavam.
O rapaz parecia ter vivido toda sua adolescência dentro de uma biblioteca e do laboratório de seu avô, um industrial curioso e erudito.
Logo depois da morte do avô, sua mãe tendo ido parar num manicômio, casou e viveu dois anos com a esposa até que ela decidiu morar com a família. Ele praticamente não saiu de casa durante muitos anos.
Quando chegou na casa, a jovem esposa contou sobre lustres que balançavam sem vento, sobre sombras que passavam pelos corredores e como ela vomitou sangue logo na primeira noite. O padre estava preocupado com as crianças - cada dia mais doentias e chorosas - e pedia que deixassem a casa. Ficou um pouco com eles e saiu antes de anoitecer.
O marido parecia cético.
- Precisávamos de mais espaço e nunca vamos achar uma casa dessas por melhor preço. tem até jardim para as crianças brincarem. Mas minha mulher está perturbada.
A mulher pediu que ele dormisse uma noite na casa.
- Estou a ponto de desistir da compra. Sabíamos do que aconteceu aqui, mas sinto-me oprimida e a ponto de perder a razão.
O marido mostrou uma revista na qual havia um conto seu sobre um monstro de outro planeta.
- Sonhei com um desenho japonês de um polvo sobre uma mulher. Viraram criaturas nunca vistas, seres que se adaptam ao meio.

Jantaram. Na frente da lareira, o marido estendeu o chá.
- Minha mulher parece mais calma só de ver o senhor aqui. É como se o universo tivesse um centro, afinal.
- Não creio.
- Como?
- Acho que o universo é absurdo, perigoso e cruel.
- O senhor não acredita em Deus?
- Eu sou um forasteiro.
- Apesar de ter sangue aristocrático... Ouvi dizer que o senhor tem sangue inglês.
- Sim. Acho que a América começou sua decadência quando deixamos o Trono Inglês. Eu costumo pesquisar a genealogia. Sou um conservador. Eu tenho tido muitos problemas.
- Problemas?
- Desde que vim para Nova Iorque. Tanta promiscuidade e ignorância.
- Entendo. São muitos imigrantes - ele ofereceu um conhaque.
- O barulho. Blasfêmias. Sujeira, cheiros terríveis. A cidade contaminada. Superstição.
- São invasores. Sombras. Ratos - disse o homem olhando o fogo.
- A lei e a ordem perturbadas. A tendência pior da humanidade. A sub-raça russa. A sub-raça asiática. São mutações. Nenhuma sociedade poderá ser estável sem homogeneidade.
Ouve-se um grito da cozinha.

Afonso Lima




sexta-feira, outubro 21, 2016

Voz

Minha voz será ouvida
Queira o juiz ou não

Você fala em liberdade
E é a voz da opressão

Eu canto a liberdade verdadeira
As vozes todas unidas

Irmão caído no chão
Vivendo de migalhas

Da floresta antiga união primeira
Nossa voz será ouvida

Irmão sem escola para abrir o coração
Irmão no morro por um teto

O bem do todo, renovar os valores
Nem só de lucro vive a terra

Abra espaço
A voz precisa de tempo

"Ele não está respirando"
O policial no viaduto toca com luva o homem caído

Eu canto a liberdade verdadeira
Pelo muro, o sistema do egoísmo
Eu canto a liberdade de fazer parte
Num sistema de amor coletivo

Um dia, seremos quem define a vida
Nossa voz será ouvida


Afonso Lima



quinta-feira, outubro 20, 2016

Brasil aos pedaços

"Afinal, há uma vasta sequência de fatos – todos comprovados --- que mostram que o citado agente público praticou violações claras às garantias fundamentais de Lula, como, por exemplo, ao privá-lo de sua liberdade por meio de uma condução coercitiva sem previsão legal, ao divulgar suas conversas interceptadas para alcançar fins estranhos ao processo, ao grampear 25 advogados do nosso escritório para monitorar a defesa do ex-Presidente, ao fazer 12 acusações contra nosso cliente em documento dirigido ao STF, ao participar de eventos com políticos e pré-candidatos do PSDB e de outros partidos que antagonizam Lula e, ainda, ao participar de eventos da própria Globo, que sabidamente não aprecia Lula."
"Eles precisavam de um fato de 2015 para abrir um processo de impeachment contra a presidenta Dilma. Eles não tinham nem fatos nem maioria para isso. No entanto, as investigações da Operação Lava Jato acabaram atingindo lideranças do PMDB, entre elas Eduardo Cunha, que controlava cerca de 100 deputados. Ele era um verdadeiro partido na Câmara.

Quando ocorreu uma operação de busca e apreensão contra Cunha, ele veio a público dizer que estava rompendo com o governo. Quando foram descobertas as contas dele no exterior, Cunha disse que havia uma conspiração coordenada pelo governo e ameaçou abrir um processo de impeachment, caso o PT votasse a favor de sua cassação". (Ex-Ministro Cardoso)

Ministro Barroso (STF) concedeu indulto ao ex-ministro José Dirceu (70 anos) na A.P. 470 - Na Lava Jato, condenado a 23 anos e três meses de prisão. O ex-goleiro Bruno cumpre 22 anos pela morte da ex-namorada Eliza Samudio.

- Para ele, a aplicação desta teoria pelo STF cria uma “insegurança jurídica monumental”. "A televisão põe o Supremo na berlinda”, defendeu.
Por fim, questionado sobre a atuação do ministro Ricardo Lewandowski, Gandra afirmou que o ele foi “sacrificado” porque se ateve as normas jurídicas durante o julgamento.

Direito do Inimigo. Um país que só tem um bloco de mídia.

2 de fev de 2015 - PSDB-BA

"Eleição de Cunha em primeiro turno é dura derrota para Palácio do Planalto, avaliam tucanos - Deputados do PSDB destacaram, na noite deste domingo (1º), a derrota acachapante do PT, do governo federal e da presidente Dilma Rousseff na disputa para a Presidência da Câmara, vencida em primeiro turno pelo peemedebista Eduardo Cunha (RJ), que arrebatou 267 votos. O candidato do Palácio do Planalto, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), obteve somente 136 votos."

Brazilian politician who led Rousseff impeachment is expelled from office

Brazil’s political bloodletting claimed another high-profile victim on Monday when the lower house voted to expel its former speaker Eduardo Cunha for perjury, corruption and obstruction of justice.

Temer tira a grande imprensa do vermelho

Contudo, o governo de Michel Temer retoma uma velha prática comum às administrações de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando a regra era dar muito a poucos, reproduzindo uma antiga característica que marca a desigualdade em nossa sociedade. Ao deixar a presidência da república, Fernando Henrique chefiava um governo que pagava cerca de R$ 2,3 bilhões ao ano a 499 veículos de mídia (redes de TV e rádio, jornais, revistas e outros). Com esse número de empresas, as verbas publicitárias se concentravam bastante nos cofres da Globo e da Abril.
A partir de 2003, quando Lula assumiu o comando do governo federal, houve uma maior partilha das verbas usadas para as propagandas, sem que houvesse aumento significativo do total investido.
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Escândalo da Telerj na Folha dos anos 90
- O que cresceu foram as bancadas sem compromissos partidários, que votam e formam blocos de acordo com os interesses próprios de cada um, ou do setor econômico que representam. A governabilidade passa a ser executada no varejo, com articulações para montar maiorias temporárias no Congresso a cada votação importante. Eduardo Cunha é especialista na articulação política de varejo, daí tantos deputados se sentirem confortáveis com sua liderança
- Cunha teve apoio publicamente declarado de seu partido, o PMDB, e de outras 13 legendas, sendo duas de oposição, o DEM e o SD. A soma dessas bancadas daria 218 votos. Cunha teve mais, atingindo 267 votos. Quando o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou a primeira denúncia contra Cunha, em fins de julho, o presidente da Câmara declarou-se oficialmente na oposição à presidenta Dilma e foi recebido de braços abertos pelos oposicionistas, mesmo diante da gravidade da denúncia. (Helena Sthephanowitz)

O descaso do governador Beto Richa (PSDB)  com a Educação instalou um cenário caótico no Paraná. A greve dos professores, deflagrada nesta segunda-feira (17), junto ao movimento de ocupação dos estudantes mantêm em torno de 700 escolas públicas fechadas.