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segunda-feira, outubro 31, 2016

K. e Y.

A imprensa teve o cuidado da chamá-las apenas de K. e Y. por se tratarem de adolescentes. Uma delas está em estado de paralisia e outra está morta. As duas jovens japonesas compraram o pacote para participar de uma Noite dos Mortos em um castelo em ruínas na Escócia. 
K. e Y. nunca foram alvo de bullying na escola, nunca relataram pressão dos pais no sentido de escolher carreiras ou melhorar o rendimento, não demonstravam excessivo receio em demonstrar emoção, nem zelo desmesurado em mostrar-se competente, nunca apresentaram isolamento ou mesmo sonolência nas aulas. O único fato estranho seria a fixação delas em comerem o lanche da escola dentro do banheiro. 
A viagem era uma espécie de acampamento de Halloween, no qual iriam ouvir histórias macabras, ver vultos fabricados e tomar sustos de aparições bizarras. Um gerente, uma turismóloga e um assistente eram os encarregados da organização do castelo, contando com cozinheiros, um operador, um técnico (invisíveis), dois atores e três músicos (mais próximos dos clientes). 
Segundo foi apurado pela polícia, na sexta-feira chegaram vindas de Londres com mais 30 garotas. Passearam pelos arredores do castelo sendo levadas por um ator vestido com as roupas tradicionais. 
Ao anoitecer, por volta das 16 horas, acendeu-se a grande fogueira e todos ouviram a primeira história. 
Era sobre o terremoto que ocorreu na cidade de Alepo depois da conquista bizantina. Mais da metade da população morreu e dizem que suas almas ficaram vagando entre as ruínas, tendo sido feitos rituais antigos para afastá-los. 
Tiveram o banquete com carne, frango, pernil, saladas e uma sopa forte, que algumas meninas relataram ter um gosto estranho. Ouviram velhas canções que narravam terrores de castelos. Caminharam por corredores escuros nos quais sombras pareciam gelar o ar. Duas ou três vezes gritaram por verem seres sobrenaturais surgirem do nada. 
Depois do jantar foi-lhes contada a história do dono do castelo, um juiz que ganhou título de nobreza depois de uma batalha sangrenta contra os ingleses. Ele sempre foi um homem rude, que debatia ferozmente questões teológicas e chegava a rezar em voz alta no meio de reuniões públicas. Com a idade, passou a ter alucinações e acabou restrito a um quarto do castelo, sendo cuidado pelo filho. Mas o filho casou, sua esposa engravidou, e ele decidiu ir viajar pelo continente para a mulher dar à luz em ambiente mais saudável. Dizem que seu fantasma nunca perdoou o filho por ter morrido sem sua presença. 
Nessa noite, muitas histórias foram contadas em frente a grande lareira do castelo, histórias de todas as partes do mundo. 
Uma delas dizia respeito a uma cidade de fronteira, que havia sido fundada pelos romanos, na qual os habitantes não celebravam a lemúria, festival dos mortos criado pelo fundador de Roma para apaziguar o espírito de seu irmão, que havia assassinado. Séculos depois, mulheres da cidade começaram a apresentar uma espécie de dança, na qual faziam gestos involuntários; as autoridades, assustadas, não sabiam como agir e pensaram que deviam incentivar o fenômeno com música, até que seis dias depois centenas de pessoas haviam morrido de exaustão. 
Foi servido um lanche da madrugada com carne fria e um chá forte. (Os organizadores dizem ter proibido qualquer tipo de bebida alcoólica, mas foram encontradas latinhas de cerveja nos quartos). 
Algumas meninas começavam a dormir pelos tapetes e divãs, mas a noite continuou animada. 
Uma das últimas histórias foi sobre os seres inumanos que, nas lendas orientais, vagueiam pelos campos e vivem em escombros, matando viajantes desavisados cuja carne comem, ou, na sua ausência, visitam cemitérios para alimentar-se da carne dos mortos, que desenterram. 
K. e Y.  pareciam muito contentes com toda a festa. Foram dormir no quarto com mais duas garotas quando o sol nasceu. 
Infelizmente, quando todos se preparavam para o café da manhã, lá pelas 10 horas, as colegas perceberam que não estavam entre elas. Começaram as buscas. K. foi encontrada vagando perto do rio em estado alterado, cantava um música. 
Depois caiu num estado terrível em que mal se podia mover e nenhum som saía de sua boca. 
O corpo da outra jovem foi encontrado no rio gelado. 
Ficou-se sabendo das cartas que K. e Y. trocavam. Nelas, juravam fidelidade uma a outra e Y. conta de um sonho que tem recorrentemente sobre um ser que aparece ao seu lado na cama. E também sobre ter tido quando criança uma série de visões, que fizeram com que seus pais a levassem a psiquiatras. Os pais não confirmaram a informação e não foi encontrado o suposto psiquiatra.  
A polícia ainda não chegou a uma hipótese conclusiva. 


Afonso Lima 



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