Páginas

Ajude a manter esse blog

domingo, julho 31, 2016

Os miseráveis

A Literatura deu uma passadinha na Paulista para ver a festa.
- Dizem que os presos não eram terroristas e têm que ter advogado. Bandido não tem direito!
- Tem que prender o Lula amanhã!
- Nós não tamo aqui pro ouvir sonzinho, mas pra ir pra porrada!
- O professor não pode dizer na aula o que os pais não ensinam!
- Um adesivo - diz a moça muito loira vestida com uma bandeira verde-amarela.
- Não obrigad@ - diz a Literatura.
Os atores pornôs podem ser grandes pensadores, mas esse líder em cima do carro assusta.
Ela desce a colina em direção ao povo.
Ouve dois policiais conversando:
- Bastante gente. Que mais eles querem?
- Muita gente vem só passear com a família.
Feira gourmet, água de coco R$ 6,00 (um Burger King na promoção). Homens comem deitados em frente a uma loja fechada. Um palacete de janelas fechadas, uma loja de carros importados, dois rapazes pobres, negros, olham pela vitrine. Malabaristas em frente ao Doblo 7 Lugares. Ciprestes ao lado de altas torres gregas.
Acha pouca gente no Largo da Batata. Era cedo. Pessoas marcadas pela exclusão, movimentos sociais, feministas com seus tambores e bandeiras, senhores de barba grisalha, moças com bebês, senhoras de cabelos brancos e jovens de cabelo azul.
Uma senhora lhe cola um adesivo "Fora Temer".
Os helicópteros voam em círculo sobre a multidão, o povo faz sinal para irem embora, o policial abana. O barulho mistura-se ao carro de som, no qual um ativista fala:
"Eles acabaram com moradia popular, nós lutamos, eles voltaram atrás. Mas não teve nenhum contrato ainda. Se não sair contrato, esse país tem que parar".
Uma senhora vende uísque e suco num carrinho.
"São 12 milhões de famílias em moradias precárias - o senhor ministro ilegítimo diz que quem se revoltar na Olimpíada será visto como terrorista. Não vamos nos calar".
- Por que eles ficam voando sobre a população - pergunta a um policial.
Ele faz cara feia e pega na arma.
- Você não é a Literatura? - pergunta.
- Sim.
- A senhora não tinha que estar na Paulista?
- Eu vim homenagear meu amigo Victor Hugo - ela disse.
Quatro carros da polícia puxam o protesto. Doze motocicletas atrás deles.
Marcha ao lado da faixa roxa. Mulheres de mãos dadas pedem "casa para todos". Um cordão de homens fortes de braços dados. Um homem negro de camisa vermelha se aproxima.
- O senhor é do movimento dos sem teto?
- Vinte anos nessa luta.
- Eu me lembro de 1829 na Grécia e 1830 na França. Dom Pedro caiu em 1831.
O homem olhou para ela e se afastou.
Um carro decide cruzar a marcha, o rapaz sai pela janela, exige seus direitos. Uma moça com um cachorro, que anda pela calçada, o chama de fascista.
Um restaurante está de luzes apagadas. Seu dono fez propaganda para tirar a presidente. Nos bares ao redor, um jovem de camisa polo e short colorido agradece o garçom que serve uma vodca.
A miséria não é boa para a poesia, ela pensa. Napoleão III exilou Victor Hugo.
Querem chegar até a casa do novo presidente. "Golpista trapalhão" grita alguém. Uma fila de policiais acompanha os caminhantes dos dois lados. Vê policiais segurando a arma. Resolve observar. Em outro cruzamento um Citroën buzina pra passar.  Mais dez motocicletas fecham a procissão. E quatro carros com sirenes vermelhas. São quatro quilômetros de manifestantes. Segue.
O céu está ficando cor-de-rosa.

Afonso Lima

sábado, julho 30, 2016

Noite e dia

As pessoas estranham o homem
Com um buraco de bala andando pela rua
Era um tempo de espera
Sonho que forja o poeta

As pessoas estranham
A poesia atingida
pela terra perdida
mar espelhando mundo
mergulhando
algo se perdeu
canto de pranto e dentro e fora
pelo tempo refeito

as palavras acorrentadas
feitiço dos reis
multidão furiosa
o dragão matou o santo
o pânico pode matar
eles sabem o que fazer eles, te darão o céu
a rima ruma contra a onda
ouvindo a rua

nesse barco tão etéreo
alimento-me de esperança
o progresso não me assusta
porque sou lúcida infância

As pessoas estranham aquela garota
Já atingida na manhã
palavras pela vida


Afonso Lima

sexta-feira, julho 29, 2016

O barulho do meio-dia

"No alto da cidadela, Cassandra vê o que ninguém viu: o seu pai, o rei Príamo, traz o corpo do seu irmão Heitor. Sua voz potente exorta os troianos a realizarem um cortejo, última festa antes da ruína".
Assim acabava um conto no qual Brossolette estava trabalhando. A revista era rodada todo sábado à noite, e as esposas, namoradas, amigas dos articulistas, funcionários e editores se reuniam a eles na gráfica. Gide ou Malraux podiam passar por ali. Toda uma geração de literatos circula pelas ruas, acostumados a ir de casa em casa, café em café, editora em editora, discutindo, lendo novidades, conhecendo novos autores e consagrados clássicos. Sylvia Beach podia emprestar livros, ajudar nos saraus, publicar novatos como James Joyce.
Isso eu lia enquanto aguardava minha amiga na catraca do metrô. O caos, multidão do meio-dia, entram pessoas e seguem para a linha Amarela, ou para a Vermelha, pessoas aguardam outras pessoas, um velho pede dinheiro, um louco grita, alunos cantam.
E um homem chama o funcionário para liberar sua passagem com um cartão. "Esse cartão não funciona no metrô".
"Mas os funcionários sempre libera".
"Se liberam, estão fazendo errado".
"Moço, preciso pegar metrô".
"Já expliquei. Não posso".
"Pode sim. É casca grossa".
O funcionário conversa com um homem. Uma moça com um bebê fica aguardando que ele tire a corrente para sair.
- Brossolette era diretor-técnico da revista Marianne. Acabou fazendo parte da Resistência francesa.  Com o editor da NRF, ocultava manuscritos das publicações clandestinas e os fazia circular.
"Meu senhor, estou aguardando faz tempo. Dá pra parar de falar e vir abrir essa porra?"
O funcionário retruca, ela sai atropelando com o carrinho do bebê uma senhora que entrava.
"Fomos processados por formação de quadrilha, cinco anos de processo", diz uma moça atrás de mim. "A sorte é que, quando invadimos, o reitor não estava, senão seria acusação de sequestro".
"Eles tratam educação como caso de polícia", disse a outra jovem.
- Brossolette foi pego pelos nazistas e torturado. Ele aproveita o horário de almoço de seu guarda, abre a janela do quarto onde está preso, atira-se do quarto andar. Não queria entregar os planos do general. Morre no outro dia no hospital.
"Cassandra foi assassinada por Clitemnestra com um machado ao lado da banheira na qual Agamenon jazia".
"Olá, desculpe o atraso. Tem uma manifestação".

Afonso Lima


romance "Mundo Corporation".

Trecho inicial de meu romance Mundo Corporation, de 2005 (inédito).


Mundo Corporation

Afonso Junior Ferreira de Lima

Porto Alegre, 2005

Era um belo dia de sol. Cheguei ao aeroporto para buscar Catherine um pouco atrasada. Há dez anos não nos víamos.
Tentava acordar do imenso estar da luz para viver de novo sob demandas, queria manter esse eu orgânico que é tão difícil de conquistar, um eu capaz de atender a tudo, de estar onde está, vivo e livre, como uma raiz-bicho que sabe ser terra. Esse eu do tempo, que conquistei com muito esforço, para errar, e ter laços, que é, afinal, o que mantém esse vasto navio, um contato direto feito de preservação do minuto-presente. 
Eu pedi, precipitadamente, a um rapaz que estava no balcão do aluguel de carros uma folha para escrever, como brincadeira, o motivo que havia nos unido, há tanto tempo: rêve, sonho. Eu fora para a França fazer minha pós-graduação em História da Arte e havíamos sido colegas.
O rapaz, muito bem vestido, alto, loiro, disse:
- Desculpe senhora, não temos folhas.
- Bem sei que talvez não devesse pedi-lo, mas é uma amiga querida e estou vendo na sua impressora um monte delas. Se não pode me dar pode dizer...
- Não senhora, a senhora não entendeu. Não temos folhas.
Fiquei perplexa. Eu mesma estava retornando ao sul depois de algum tempo fora, em Recife, e não estava acostumada ao ar glacial da minha terra.
“Você deve de ser correta”, lembrei-me de meu pai falando. Correta. Pensei, em um relance, que meu avô ainda havia apanhado de seu pai no tronco da sua fazenda, onde haviam sido punidos os escravos, numa tentativa de lhe dar educação. Minha mãe, por outro lado, de origem polonesa, carregara aquela dureza, a força da criação marcada pela ideia de pecado. Eu estava tentando escrever sobre sua vida, no pampa imenso, em Baj, “terra dos morros”. Como um raio, pensei em como esse filho de imigrantes havia sido criado. Quem veio comigo na viagem sem eu convidar? Por que sou eu? Eu pensava na castração, que ainda me parecia forte no mundo atual, cheia de modos de ser criados pelo marketing.
Sai um pouco atordoada pelo saguão do aeroporto. Pensava em escrever, também, um texto inspirado na vida de meu neto, que, provavelmente, gostava de homens e que eu sentia sofrer com a repressão sexual.  Eu sofrera tantos preconceitos, pílula, virgindade... A velha herança do século do Iluminismo repressor, terapêutico, que hoje é substituído pelo histérico horror ao pobre, ao ignorante, horror aos que estão fora do padrão.

           

  Acabei vendo Catherine, que devia ter chegado  enquanto me distraía. Parecia tentar se livrar de alguém.
- Desculpa querida por perturbar você... Mas que ideia maravilhosa essa, na sua cabeça... um turbante? Ah, que chique! Você é francesa?
Quase sem acreditar naquela intimidade artificial, ela diz:
- Sou. Paris. Desculpe, estou com pressa...
- Ah, Paris, Paris! Que maravilha! Eu tenho vários vasos de Paris.
Ela faz uma cara fria e responde:
- É? Eu também. 
Seu rosto mostrou todo seu desdém pela adoração ao mundo europeu. Tentei interromper e salvar a situação:
- Catherine, querida, que saudade! Vamos, vamos, estamos atrasadas.
Já no estacionamento, nos abraçamos.
- Você está a mesma, Natália!
- Ah, minha querida, aos 58 anos não se é a mesma! Se é melhor! -  falei, sorrindo.

Catherine era talvez 5 anos mais nova que eu, uma mulher decidida e criativa, forte, de carne e osso, além de prática, cheia da firmeza e ousadia francesas. Seu espanhol estava afiado, e poucas vezes recorria ao francês.
- E como vai esse seu país maravilhoso? Gente linda, divertida, sempre em movimento... Que energia sobe das ruas... Tudo brilha, tudo fervilha... – falou com um sorriso.
- Lembra aquela vez que você não conseguiu sacar seu dinheiro? Somos heróis do caos! Sorrimos.
Catherine trabalhava com moda, tinha um pequeno atelier e fazia roupas de vanguarda.
- Cada vez estou mais cheia disso tudo!
Estivera há dez anos no Brasil (quando meu marido ainda era vivo), conhecera rapidamente a Amazônia, Foz do Iguaçu, São Paulo, Florianópolis e depois Buenos Aires, uma semana intensa.
- Ah, que saudades do Ver-o-Peso! Nunca me esquecerei daquelas cores!  Mas, e você? Por que saiu do Recife
- Minha mãe ficou doente e faleceu. Retornei para conviver mais com meus filhos.
- Você ainda tem uma filha morando em Curitiba?
- Sim, e outra em Florianópolis.
- Ah, o Brasil! Que energia positiva tem essa terra! Sem o peso que mil anos de absolutismo e religiosidade punitiva impuseram a nós, na França. É uma pena que a maioria de seu povo esteja na miséria, pois, sem isso, o Brasil seria o maior país do mundo!
- Catherine, sempre radical!
- Por supuesto!
Falamos um pouco da viagem.
- Ah, minha amiga! Adoro Porto Alegre! Tem árvores, casas antigas... Agora aquele bairro, o seu Quartier Latin, como é mesmo....
- Cidade Baixa?
- É, continua com casas antigas?
- Cada vez mais estão levantando espigões... pequenos e finos...
- Que horror! Algo sensacional aqui é que o velho para vocês tem cem anos! Sempre achei isso bem cômico, pois o velho para nós é romano – riu -  Porto Alegre é ótima de caminhar adoro aquela rua, que vai para o lago...
- Fernando Machado? Acho que é uma das primeiras ruas da cidade... Continuas com a mesma memória implacável...
- É... tão calma, tão luminosa... Lembro-me que você queria ir ao lago pelo centro e não em linha reta! Estava tão acostumada... Esta é uma cidade ótima de se ver, podia ser qualquer capital da Europa, é mais calma e mais organizada. Claro, não tem como se comparar ao resto do Brasil em termos de natureza. Além disso, é uma cidade burguesa. Parece-me que as pessoas se vestem para impressionar, ainda há um clima vitoriano... não tem a agressividade criativa de São Paulo. Tem muita gente bem culta e moderna, mas vi também muitos novos ricos, muita gente que só pensa em dinheiro, muita “madame”. Tem algo de conservador nessa cidade. Os homens usam todos a mesma roupa. As mulheres são mais ousadas, mas sempre burguesas. Assim me pareceu. Mas deve ser bom viver aqui. Um charme especial...
- Sim, é uma cidade deliciosa. Quem tem dinheiro, principalmente, vive muito bem. Agora surge uma juventude bastante ousada, mais desapegada, uma vibração nova.
- Adoraria ter vindo no Fórum Social Mundial, que ocorreu aqui.
- Sim, foi uma revolução para a cidade: mantos cor de laranja e turbantes africanos mexeram com preconceitos muito profundos. A mídia também mudou do “loucos de todo o mundo” para “um evento que nos projeta internacionalmente”.
- O velho Brasil com vergonha de ser inovador. Uma elite que sempre quer ser “estrangeira” e sempre “atrasada”... Bem, no Brasil, você não come larvas como um refugiado de Ruanda; mas, se nasceu sem recursos, acho que provavelmente acabará num presídio ou vendendo drogas.
Passamos pela “Redenção”.
- Que lindo, adoro este parque, é aquele da feira, não?
- Sim. Lembra, no fim de semana, toda a cidade vem tomar chimarrão, ver a feira de artesanato, o “Brique”, sentar na grama. Infelizmente, fim de semana passado, quatro gays foram assassinados aqui. Pensam que foram skinheads.
- Skinheads no Brasil? Mas, aqui, todo mundo não é mestiço, não tem sangue de todas as raças?
- Pois é... Sabia que, na década de 30, Porto Alegre conheceu grupos de jovens que empunharam a bandeira com a suástica? Até o intendente da cidade, espécie de prefeito, Alberto Bins, era pró-nazismo. Os escritores Érico Veríssimo e Dyonélio Machado lutaram contra essa tendência fascista. Getúlio Vargas, presidente do Brasil, tentava fugir à influência norte-americana negociando também com a Alemanha.

- Mon Dieu! O que está havendo com o mundo? Isso me faz pensar que talvez ass massas continuem miseráveis e ignorantes, a elite, compulsiva e aristocrática e a classe média, as duas coisas. Comércio é impulso: o que aconteceria se o Supereu, a moral coletiva, fosse o Isso, puro impulso? Uma amiga, lá em Paris, me contou o caso de um casal conhecido - ela, obcecada por beleza e plásticas, ele, por carros novos - que esqueceu seu filho na escola por 12 horas. (...)

Afonso Jr. Lima.  

quinta-feira, julho 28, 2016

Doze anos depois

- Ontem conheci um personagem interessante. Um músico, que trabalha em bailes tocando guitarra - disse Lídia, no piano. Ele me contou sobre o drama de pagar à associação e não ter certeza de que seus direitos foram recolhidos. Chegam fiscais nas festas com ameaças e exigem uma porcentagem. O presidente negociava com uma arma na mesa.
- Que dia foi esse? Foi um apocalipse, vocês viram? A polícia expulsou os manifestantes, a polícia prendeu um deputado que quis evitar um massacre com sem-teto, o Ministro anunciou medidas de força muito suspeitas, disse Alice enquanto sentávamos na mesa.
Era o aniversário de nossa turma de formatura. A maioria de nós estava mais gorda sem desespero, mais rica e fumando mais maconha.
- O que é mais assustador é que sabemos de tudo - Lídia disse sorrindo. Sabemos dos problemas e não podemos influir no sistema. A democracia não se importa conosco. Lídia era artista plástica, mas trabalhava em um banco para sobreviver.
- O que vem por aí é um controle policial, uma perseguição às ideias progressistas. Eu me lembro quando, cheias de esperanças, criticávamos a esquerda, presa entre uma elite escravocrata e o mundo das finanças - disse, com ironia, Nora. Seu marido era um empresário muito bem sucedido que a mortificava com sua confiança no empreendedorismo.
- Nossa geração abraçou o egoísmo de classe média. Será que acabou a solidariedade, sobre a qual a civilização foi feita? - Alice falou, com seu olhar sempre doce, enquanto observava as opções na mesa. Passe a salada, por favor, Nora.
- Hoje meu pai repetiu que estamos acabando com a corrupção. Vocês sabem, um jornalista dos mais respeitados. Nossa classe média iluminada é assustadora - Lídia opinou - Acho que a elite mundial se uniu contra a representatividade... Aqueles que acreditam que nossa sociedade cria oportunidades deviam se envergonhar - dizia ela, servindo-se de mais carne e vegetais.
- Não acho que seja tão simples assim - eu disse, pegando o vinho. Nós melhoramos, ou não?
- Não podemos descansar um dia. Mas tem razão, temos contatos - Nora riu.
- O que você quer dizer?, perguntei.
- Pense comigo: sua família tem contatos, eles te arrumam um curso, você consegue títulos, tudo que você faz tem um selo de qualidade - Lídia disse.
Nora ficou pensativa e disse:
- De um lado, vejo um bando de ignorantes que não tiveram educação e que acreditam que a corrupção começou nesse governo. De outro, um bando de pessoas bem educadas, com seus apartamentos e seus carros, que não dão a mínima para a democracia ou a igualdade. Um bando de pessoas bem informadas, cosmopolitas e idealistas que acham que a esquerda faliu e preferem ficar longe da política.
- O Brasil é conservador, mesmo que haja cada vez mais vozes progressistas. Acho que tentamos fazer tudo seguir a tradição. Se existem ideias novas, vamos combatê-las - Lídia brindou.
Alice lembrou:
- Você viu a manchete sobre o ex-presidente? As acusações parecem muito vagas. Que juiz é esse, meu Deus!
- Sim. É um símbolo. Ele mudou de status. É o status que define o valor. Não interessa o que faz, mas quem - Nora falou.
Acabamos de almoçar e fomos para o jardim. Pelo menos o sol nos aqueceu enquanto caminhamos entre os lírios violáceos.

Afonso Lima

-

sábado, julho 16, 2016

Wonderwall

Fiz essa versão em 2012. 

Wonderwall
http://letras.terra.com.br/oasis/videos/UZnw6TQ_P83/

Hoje, você vai ver,
Que tudo tem volta, meu bem
Você sabe que se perdeu
e só quer me perder também
Eu acho que ninguém
te conhece como eu, você eu sei

É isso, se diz por aí
Que você chegou ao fim
Eu sei, sempre foi assim
Você sempre vai além
Eu acho que ninguém
te conhece como eu, você eu sei

Toda estrada que eu pego é a errada
com tantas luzes eu não vejo nada
Quanta coisa eu queria poder te dizer
Mas eu não sei

Quem sabe
Com você eu escape
Nada mal
Minha wonderwall

Hoje ia acontecer
Mas você ficou com o que é seu
Fui eu que imaginei
Vejo que nada se perdeu
Eu acho que ninguém
Te conhece como eu, você eu sei

Toda estrada que eu pego é a errada
com tantas luzes eu não vejo nada
Quanta coisa eu queria poder te dizer
Mas eu não sei

Quem sabe
Com você eu escape
Queira ou não
Você é a proteção

Quem sabe
Com você eu escape
Com você eu escape
Com você eu escape

versão Afonso Lima

Rio

O sol na praia uma bela alvorada
A águia voa sobre a verde montanha
Um povo alegre e o samba na quebrada
O sangue não está no noticiário

Mas o que está embaixo do lençol?
O policial recebeu o arrego
Mais um morto aguardando arquivamento
O problema é uma guerra instalada

"Não tem vivo com fuzil"
Talvez seja e "é bom bandido morto"
Ninguém olha Polícia Civil
Viva o silêncio judiciário

Afonso Lima

Kantō

11:58 da manhã de 1 de setembro de 1923.
Estava em Kyoto para acompanhar o festival. Pedi a um colega para entrevistar um sobrevivente do Grande Sismo
Ouvira sobre o redemoinho de fogo que matara 38 mil pessoas em 15 minutos.
As casas ruíram e os prédios do governo pegaram fogo. O tsunami teve ondas de 13 metros. A estátua de Buda de 90 toneladas, a 60 km de distância, se moveu 63 centímetros.
Mas também queria saber sobre o que houve depois. Meu amigo traduzia.

- Eles culparam os coreanos. Milícias civis japonesas. Foi um massacre.
Noe Itō, uma feminista nascida em 1895, foi estrangulada em sua cela, depois que anarquistas foram presos. Masahiko Amakasu, oficial do exército imperial, comandou as operações. Outros dizem que Itō e seu amante SaKae Osugi foram espancados até a morte e seus corpos jogados em um poço. Seu sobrinho de seis anos também foi assassinado. Amakasu foi preso e liberado após apenas três anos na ascensão de Hirohito. Noe Itō havia se separado do marido porque ele não apoiara seu desejo de estudar. Ela publicou uma revista feminista e traduziu "The Tragedy of Woman's Emancipation" da filósofa anarquista Emma Goldman.
- Medo. Dos socialistas tomarem o poder.
No fim, houve mais de dois milhões de refugiados.
Eu pretendia fazer uma biografia dos envolvidos.

Afonso Lima

Um clube do suicídio

40 anos. Essa era a idade que os meninos escolheram.
Eu sempre me achei uma pessoa razoavelmente feliz, que provavelmente é o que somos quando não pensamos nisso.
Um dia um colega me convidou para um drink.
Falou de sua vida muito medíocre e de como tinha ouvido falar dessas pessoas. Elas ajudavam os que queriam partir.
Achei aquilo muito bizarro. Mas não pude esquecer o assunto. Se realmente eu chegasse àquela idade e nada tivesse acontecido - um amor, uma propriedade, um livro - eu ia adorar desaparecer sem vestígio e sem dor, como dizia a lenda.
Afinal achei o caminho - a pista. Publiquei no jornal uma poesia deixando sinais e esperando resposta.
Recebi um bilhete anônimo em um envelope lacrado sob a porta. Um endereço, um horário e uma data.
À princípio parecia um simples coro de Igreja. Mas eu aguardei.
Fomos no enterro de um deles. Havia caído da escada. Ninguém da família. Lobo solitário.
Simpáticos, perguntavam sobre meus hábitos, família, trabalho. Eu hesitava, triunfante.
Por fim eles me contaram sobre a reunião da última quinta-feira do mês na mansão de um deles. Devia haver níveis.
Assustador, sem dúvida. Em tom de brincadeira, fui avisado que não havia volta. Eu aprendi a ler nas entre-linhas. Deixei-me ficar mais por passividade e curiosidade do que por outra coisa. Queria sentir medo.
Na cidade, algumas mortes indolores. O que era mais interessante é que eles não tinham sócios que assinaram um contrato, mas selecionavam pessoas que preenchiam seus critérios de infelicidade, uma vida cinzenta. Eu passei a ter pesadelos.
Já não queria mais. Infelizmente, eu chegava próximo da idade fatal e decidi mudar de cidade. 
Finalmente achei uma esposa, tive dois filhos, encontrei um lugar no mundo, uma profissão.
Mas eu seria feliz? Não sei.
Amanhã vou descobrir.


Afonso Lima

sexta-feira, julho 15, 2016

esperança

Eu sou esse assassinado
pelo trem pontual do dia
esse menino grão sonhando
em ser coisa totalmente minha

absurdas cantigas dessa gente que rima
cachaça com morte e correntes e aço
silenciosa madrugada e essa voz
deixar as cascas de opaco passo

fantasmas amigos soldados
não deixar o rosto na máscara perdido
corto o papel e sobreponho distâncias
caminho estranho e liberto


Afonso Lima

quinta-feira, julho 14, 2016

Queda

riyoon
сан
bruadar
unistus
somiar

Algumas vezes ficava no Google tentando descobrir como outras pessoas diziam aquilo que queria dizer.
Algumas vezes ficava pensando como afinal o cérebro juntava as letras e elas levavam à imagens. Como letras levavam à experiências e memórias? Google poeta: a series of thoughts, images, and sensations occurring in a person's mind during sleep.
Tentara explicar para a moça da biblioteca que haviam cometido um erro, mas teria de levar dois livros lá de qualquer forma, havia uma reserva. Andar é bom. 
Contrato entre duas mentes, criação coletiva. Tinha traduzido um poema. Parece que Borges pensava que traduzir era criar. Sonhava entre as linhas. Cada emoção abria uma porta. Lembra da letra borrada num livro, um B que perde sua forma, um A apagado, no qual os elos não fecham. O livro que tinha folhas tão brancas e brilhantes, estava com medo de sujá-lo, colocou uma capa falsa. O livro no qual uma das páginas estava grudada à outra, teria de separar com uma tesoura para não pular uma história em seu início.
Devia ter ido pela outra rua. 
O que havia de mais bizarro era a ambiguidade entre uma zona comercial e agitada e lampejos de zona de guerra. 
Coragem. Tudo depende do seu espírito. Julgar, combinar, resistir. Um executivo bem alinhado, a moça de terninho na bike, desce do carro um senhor com uma bela gravata com uma pasta de couro reluzente. 
Como era difícil achar o tempo. Será que tinham tempo? Nem a biblioteca sagrada como oposto da via, nem a vida mercantil como apocalipse do novo. Parece que a cultura ameaça com sua espada todos os rebeldes - onde está o resultado, o foco, o objetivo? Sempre achara que era para descobrir o mistério que investigava. Sempre achava que em cada coisa concreta havia um passado e só o livro podia revelar. Easter egg. 

Não fazia o que queria. Tinha medo de alguns livros na verdade. Assim como algumas crianças têm medo de figuras e sombras. 
Em que enredo colocar essas coisas. Como a cidade ficara tão feia? Quem são essas pessoas que não fazem parte da fábula? O que não contamos é esquecido. 
O cruzamento sob um prédio feio e parecendo abandonado pela história, aqui um canteiro mal feito te força a seguir pela ciclovia, a via da direita é o caos, resolves ir pela esquerda, cruzar pelo sinal, o próximo demora meia hora.

Aquela capa da biblioteca que já viera rasgada, esqueceu de falar para a funcionária. Aquela vez que deixou cair molho num livro emprestado. Como ficava apagando minuciosamente todos os flagelos sublinhados e como se confundia com manchas, falsos pontos do papel em livros novos. Aquela capa inacreditável, feia. 

Avenida perdida. O tempo impressionante no qual os carros ficam parados à distância, e os da direita não chegam, te força a atravessar angustiado.

O tempo ganho na vida era esse tempo roubado. Coisas que partilhamos. 
O verso é sobre a lenda que fecunda a realidade. Que é Portugal senão Pessoa? 
A queda. D. Sebastião e o sultão Mohammed contra o Moluco e os otomanos. 7000 nobres perdidos. Camões teria dito que amava tanto sua pátria que morriam juntos. Ou ao contrário. 
Mas sonho tem asas, virá o Quinto Império quando o cavaleiro Galaaz encontrar o Graal da palavra certa. 
"O sonho é ver as formas invisíveis/ movimento de esperança e de vontade". 

Um corpo vivo ou morto coberto, no chão, uma mulher come uma marmita.
Uma sociedade miserável é a que mais precisa de fantasia, disse um poeta. Somente o que sentimos compreendemos.
Livros na banca de jornal. Será o século XXI o século do preconceito, do discurso oficial, da rigidez da ignorância? 
Não existe essa coisa de se identificar com os outros, dissera um conhecido, cada um é único e exclusivo. Quanta coisa está guardada e é o narrador que conta. 
Pensa no sonho de Daniel, sonha com uma pedra que destrói uma grande estatua de ouro, prata e bronze, com pés de barro.  
"É O que me sonhei que eterno dura" - marinheiro sonhando um novo reino, a glória pelo verso. 
Barracas e cães, homens com seus cobertores sujos na marquise.
Precisava marcar com a amiga. Imigrante qualificada em férias. Estavam cortando custos na universidade, divulgar literatura estrangeira era dispensável. 
Pensando bem conhecia cada vez mais gente que não se importava com livros. A vida podia existir apenas com futebol, séries americanas, compras, livros técnicos, games, jornalismo. 
Será que o mundo seria finalmente estático? 

O livro não era o que parecia. O livro buscado não está na estante. O espírito mudou e desiste do outro. 
As primeiras linhas são adoráveis.  

Afonso Lima

quarta-feira, julho 13, 2016

M.O.G.

Dizem que as histórias já existem e tudo que podemos fazer é oferecer o seu resumo.

Suas mãos estava muito frias. 
A cabeça doía. Haviam cavado buracos embaixo de neve.
Conseguiu comprar um chá quente do preso aristocrata. 
Pensou na sua edição chinesa antes que adormecesse. Não acordaria. 

1920. Ela estava na sua cidade natal, a bela Tallin, perna alta, perna baixa. Conseguira fugir. Haviam caminhado pelo parque no entardecer. Sua amiga havia encontrado um violinista que cantava por uma moeda. Ele contou sobre um caso de amor trágico, o amante acredita numa cartomante que lê a sorte, e ignora o ciúme do marido traído. De onde vem essa história? Do Brasil, madame. Ela vem do Brasil. 

O livro chegou através da amiga. Ela pediu que procurasse uma pessoa digna. Ela soube que Alice tinha traduzido poemas russos. Infelizmente, não havia nada sobre o autor, apenas as iniciais: M.O.G. Por coincidência estava chegando um amigo que conhecia tarô e fora membro de uma sociedade ocultista na Polônia. 

- Ele era professor de química. Ele foi o mestre. O maior. Seus livros foram proibidos assim que o sistema mudou. A elite russa já ficara sabendo de seus cursos. Uma tradição de duzentos anos. Permitiu uma publicação limitada de suas aulas. Um grupo maior ouvia suas palestras, mas somente eleitos aprendiam sobre a Verdade que refletia-se nos 22 arcanos. Ele continuou por um tempo sua atividade de modo clandestino, até ser preso. Se a verdade já fora revelada, para que continuar a busca? Alguns livros foram salvos. Apenas 100 livros foram reimpressos em Xangai. 
Alice imaginou o pobre homem comendo um pão duro e carregando pedras.

Pouco antes de adormecer, ele vê os gêmeos Castor e Pólux que observam o sol nascente. 

Afonso Lima

segunda-feira, julho 11, 2016

Sono

Turistas familiares, foi assim que minha esposa nos chamou. Do alto se via muita pedra, um rio ao longe, a casa rústica e o casal de idosos que nos atendeu pareciam um retrato de contos de fadas.
Mesmo não entendendo quase nada do que falávamos.
As crianças exaustas, dormiram logo. Levávamos também os filhos de minha irmã, três garotos.
A noite foi de tempestade.
A minha filha primeira não conseguíamos acordar no outro dia. Minha esposa chorou, mas disse que não devíamos nos desesperar, a menina devia estar numa espécie de coma. Nosso sinal havia caído. O rádio avisava que a estrada estava bloqueada.
Dia de angústia e incerteza, mas a dona da casa nos preparou um delicioso prato de carneiro e cebolas.
A luz parecia estranha. É o dia em que o sol fica mais tempo no céu, disse o dono da casa.
Quando, enfim, o fogo e o sono nos levou, estávamos certos de que nossa filha acordaria de alguma forma.
A minha filha segunda também não voltou. Minha mulher estava em pânico. Não adianta sacudir a menina, eu disse. Ela queria sair daquela casa de qualquer jeito.
Como vamos levar nossas filhas? - perguntei.
Pegamos o carro e fomos até o bloqueio da estrada. Ficamos parados ali por horas sem saber o que fazer. Por fim, dormimos.
Nosso filho não acordou. Minha mulher tinha pesados arcos azuis sob os olhos. Estava petrificada. Ouvimos por fim um barulho de polícia e um homem gritou que estava chegando reforços. Gritei sob nossos filhos e o homem pareceu compreender a situação.
Passamos aquela noite ouvindo as máquinas trabalhando e as equipes conversando. Minha mulher queria evitar que as crianças dormissem. Elas adormeceram no raiar do dia.
Já quatro filhos haviam se perdido quando finalmente chegamos no hospital. O médico parecia assustado.
- Estão vivos? - perguntava minha mulher insistente.
O homem apenas mexia a cabeça.
- Isso já aconteceu há muito tempo.
Pediu uma equipe da capital.
Minha mulher, desesperada, queria remédios para evitar que os filhos dormissem. Ela mesma foi sedada.
Perdemos mais três crianças nas noites seguintes. Tentava descobrir se a culpa era minha. Largara a advocacia havia dois anos, enlouquecendo a todos. Tinha feito três filmes, apenas o primeiro fora um sucesso.
Quando a equipe chegou, a imprensa veio junto. Minha mulher vagava agora como louca pelos corredores. As crianças eram monitoradas por aparelhos. Só meus dois meninos ainda estavam acordados.
Nossa primeira filha foi declarada morta. Minha esposa parecia insensível. Sua irmã havia sido chamada para ajudá-la. O enterro foi marcado por um estranho silêncio e o peso da fatalidade. Meu sobrinho não acordou. Mais especialistas chegaram. Todos foram levamos para a capital.
Os médicos decidiram induzir curtos espaços de sono para evitar que as crianças chegassem a adormecer profundamente. Meu segundo sobrinho não despertou. Decidiram induzir uma espécie de sonambulismo, uma privação de sono com semiconsciência.
Nosso segundo sobrinho dormiu e morreu duas horas depois.
Sonhei que minha segunda filha despertou. Nos contou como visitou um edifício com cinco andares. Foi guiada por uma mulher idosa. No último andar, elas sentaram uma de frente para a outra. Lá estavam outras crianças. E nossos mortos.
- Diga-me, o que ocorreu em sua vida? - disse a senhora.
Assim, passou a contar cada dia e, dentro de cada dia, cada coisa que viu, tocou, cada pensamento que passou pela sua mente.
Minha mulher morreu três anos depois. Faz dez anos que estão dormindo agora.

Afonso Lima



Diário

Dia 5 de setembro
A mansão tem 13 quartos e somos 12 pessoas. A vida nos deixou no banco rendas crescentes. Juramos não abandonar a casa, não reprimir nosso desejo, não trabalhar e não sentirmos culpa. A vida se multiplicará em tudo.

Dia 27 setembro
Decidimos beber tudo que fosse possível. Um caminhão parrou na porta. Contratamos empregadas para limpar o vômito. Toneladas de pizza chegam todos os dias. Um médico nos despeja litros de energéticos, analgésicos, suplementos multivitamínicos, aspirina, café...

Dia 1 de outubro
No Halloween nos divertimos pra caramba. A casa cheia de lanternas e esqueletos. Contratamos pessoas para apanhar. Maga estava possuída. A bandinha na piscina ficou a noite toda tocando. Os amigos adoraram os canapés nos quais colocamos sangue. Orgia.

Dia 10 de outubro
Decidimos que no jogo, quem perder será escravo. Tudo deve permitir e atender. A cada mês um de nos perderá sua liberdade. No primeiro jogo, Jonas perdeu. Cada um de nós deu um tapa ou um beijo nele.

Dia 12 de novembro
Rogério teve de perder a virgindade anal. Não foi nojento. Acho que estamos perdendo nossa sensibilidade.

Dia 18 de dezembro
Ana teve de dar para todos os rapazes que quiseram. Ela não parecia contente. Acho que tem ainda uma chama dentro dela. Um pouco de cristianismo mofado. Por que devemos fingir que não somos animais?

Dia 22 de dezembro
Hoje matamos pela primeira vez. Ele fica no fundo da piscina dois dias até pensarmos no que fazer.
Comer passou a ser nosso principal assunto. O tempo da digestão, depois mais sono, sexo, drogas.

Dia 24 de dezembro
Decidimos comer o morto. Comemos um churrasco muito temperado. Os ossos nós separamos em grupos e enterramos em partes diferentes do jardim. Acho que quero ir embora.


Afonso Lima

sexta-feira, julho 08, 2016

metamorfísica

hoje quero o tempo de duvidar
o espaço entre olho e palavra
analisar um mapa do que não existe
sendo fingir não saber para ouvir o poema

Hermes e Atená parecem irmãos no bosque
ele pensa na terra, ela nas armas e na noite
ele sabe que não existe fio certo de rumo
ela tece o que não se espera

nesse dia outro que liberta o possível
cavalgar na luz do repouso caos
no qual engenheiro e arte se alinham
deixe-me pensar como se fizesse um caminho

Afonso Lima

quinta-feira, julho 07, 2016

A casa da fazenda

Dizem que ele foi amarrado na cama, um pano na boca, roubaram tudo, ainda escorria um fio de sangue da cabeça.
A casa em si era uma coisa muito velha, acho que ainda de barro. Mas era a casa da família, foram os donos daquilo tudo. Os maiores políticos vinham do centro para falar com o coronel, ele decidia a eleição do bairro.
Sua mãe ainda fora dona de escravos e, depois, tinha na fazenda libertos, coitados que viviam numa indigência constante sem salário ou descanso. Até apanhar de chicote apanhavam, a senhora era desconfiada e nem sempre justa.
Ficou um retrato severo, os santos sujos, metal e madeira disso e daquilo com pó de antigamentes. O jardim feio também era um mausoléu de tempos.
Mas ele quase morreu ali. Sufocado de dar dó. É que tinham mudado o chão, o ruído, o rio do dia, respeito antigo de nome já não era, gente nova, campo maquinado, chegou o Zinho, no poste até uma cabeça de um que não se comportou, se disse.
Muitos ainda lembravam, a casinha diminuía, o olho que tudo via já com miopia. O velho era menos que nada, o mundo o engolira.
Mas ainda parece que, salvo de um menino, achou dois funcionários e cavalou em reta até achar os dois.
E foi cabeça no poste e rio cheio.

Afonso Lima

quarta-feira, julho 06, 2016

A Revolução

Soldados americanos confiscaram os livros clandestinos.
No alto da colina, nos fundos da mansão, ficavam guardados à sete chaves numa sala abandonada.
Mas o filho mais velho perguntou ao pai, no churrasco no jardim:
- Se falam do totalitarismo, que perigo pode haver?
- Me passe a linguiça - disse o pai, suando.
Conhecia o segredo. O rapaz decidiu esconder-se duas horas por dia no depósito.
O que dizia o livro?
Depois que alguns animais passaram a viver naquele novo tempo, eles trabalhavam mais e comiam menos.
Depois que alguns animais passaram a ser totalmente livres, não podiam falar o que pensavam.
As novas ordens eram passadas como pensamento crítico.
Alguns animais acreditavam que nada podia ser diferente.
O filho mais velho decidiu caminhar pela cidade. Achou estranho buracos no chão, viu um homem sem sapatos olhando a lata de lixo, quase foi atropelado por um carro dos que costumava usar.
O filho mais velho começou a vender os livros de forma clandestina.

Afonso Lima

sexta-feira, julho 01, 2016

O despertar

A borboleta pousou na folha. Viu no horizonte uma tempestade se formando. Era aquela parte do dia, o sol em plena noite, em que a ameaça crescia, a escuridão gelava as patas, as flores ficavam avermelhadas e sua alma de inseto se encolhia para entrar num pesadelo. Ela acordava como homem. 

Afonso Lima