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segunda-feira, fevereiro 11, 2013


Queimando o filme de Deus

Eu podia pedir para meu Filho, bom em marketing (o primeiro a criar um mercado de trabalho para as mulheres), mas ele anda meio depressivo com o que se tem feito com Seu nome (certo que isso começou com Constantino e piorou com o novo Papa, mas Eu existo); ou para meus RPs, um para cada dia. Mas resolvi falar Eu mesmo, porque não disse "Faça-se a Luz" em vão e odeio obscurantismo; e odeio que a ignorância seja usada para levar meu povo a desfazer dois mil anos de trabalho, ou mais. Eu sou Deus e ninguém sabe o que se passa pela Minha cabeça. Você deveria ser ignorado, mas algo ocorreu com nossa democracia e você pode impedir leis e direitos, transformar o direito à livre expressão em intolerância. (Vamos dizer agora que todo o evangélico é doido, que tal?) Você é uma pessoa arrogante e perigosa e Eu não lhe dei nenhuma procuração. 

Parece que, agora, se o número é tudo, os políticos defendem qualquer ideia; se a Razão não existe mais (o que pode ser bom para evitar o autoritarismo), se debate com seriedade o fundamentalismo arcaico e a queima das bruxas, o que fez com que Minha Imagem ficasse abalada de forma irrecuperável. (Beleza, sou da paz, Eu vivo de beleza...) O senhor não conhece nada de ciência (que triste ter faculdades assim no país onde Eu nasci - e viva o geneticista!) e, provavelmente, ocultar fé sob ciência é um erro, que já não deu certo antes. 

Só porque Freud disse algumas coisas uma vez, o senhor acha que nada pode mudar. Nada menos científico! Pensei que vocês já haviam superado isso de misturar moralidade com ciência: o senhor fala de "depravação moral" e que "nenhuma verdade científica bíblica até hoje foi derrubada". Mas Eu seria tolo assim? Eu não o culpo por pensar coisas preconceituosas como "o gay na TV vai fazer toda criança se tornar gay", mas por fechar seus ouvidos e abrir a boca demais. 

A verdade é que o senhor vive no Século XIX (enquanto eu sei, com Einstein, que todo o tempo já existe, no espaço e mais). O senhor diz que é meu amigo, mas está queimando meu filme porque eu não parei no período vitoriano; eu não sou só o Alfa, mas também o Ômega, e uma das funções do Espírito Santo, quando não está guiando o povo, é alegrar Nossa vida fazendo números com fogo. E nada me entedia mais que a falta de humor,  de generosidade, e gente que sabe tudo, porque a razão só existe na comunidade. TRANSformação é a base de tudo: até mesmo do ser do humano. 

Eu acho que  mundo contemporâneo (de vocês) é perigoso porque as empresas e bancos não são mais uma das forças, mas estão no governo, só com metas de empresas e bancos; porque a educação pública piora (principalmente nos estados onde a oligarquia é mais forte), enquanto o marketing educa dizendo: "vá, tome o que é seu, agora!"; mas principalmente porque tem gente como o senhor, que não aceita argumentos contrários, tanto na imprensa, como na política e na economia. A sociedade de vocês está cada vez mais fascista porque sem circulação e liberdade não há verdade, o eu está fora da comunidade e quanto maior debate público, menos erros. O que educa é a convivência, portanto a igualdade e a justiça. Não venha por a culpa em Mim! Eu criei as pessoas para serem livres, e, olhe os animais, a variedade e criatividade são incríveis! 

Os seres humanos gastam cada vez mais dinheiro em medir as quantidades, criar remédios, organizar o exterior e vigiar o comportamento, talvez resgatando uma dívida antiga com os cinco sentidos. Cada vez sabem menos de sua paixão, do seu medo, de seu passado. Mas para que hesitar, se a compulsão e a produção são tudo? É a velha era da técnica, com cobertura de adrenalina. Tudo já foi explicado, e isso é assustador. Não admira tanta gente por aí "andando mortas". Há a falta de singularidades, de dúvidas e, portanto, de soluções criativas. Há "Idade das Trevas".  

Tudo que o senhor quer (como outros "gênios" aristocratas) é subir em uma caixa e dizer aos outros o que é certo (como a publicidade?), que eles não podem ser como são, como eles são doentes ou ignorantes, que devem ser como o senhor. Hoje não existem mais leis escritas na Pedra (não, Eu não parei na Era da Pedra), mas precisamos acender o daimon interior - cada um tem que segurar seus demônios internos, suas sombras que podem destruir o mundo. E cada dia tem a sua verdade e, e a situação vai dizer como o certo existe. E a pior forma de soltar seu demônio é identificar-se com os valores que defende ("Eu sou A justiça") ou identificar esses valores (a família, o amor, a pureza) com um dado da realidade (uma família, um tipo de amor, uma pureza). Mas nada pode ser mais idiota do que confundir-se Comigo. Preguiça!

Ninguém merece, nem Eu. O senhor não se importa que Meus filhos sejam assassinados e humilhados por serem como são. E Eu os aceito como eles são, porque Eu os fiz bons. Que sejam felizes e respeitem a si mesmos e aos outros. E, quem sabe, poderei ficar em Paz.



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Queimando o filme de Deus de Afonso Jr. Lima é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Encontro 
(para InFernando)

Uma pin-up desenhada
O teu sorriso amigo
Onde?

Ouvinte da cidade
Jardineiro do tempo no mínimo
Espaço onde vivemos
E não há tempo

Amigo, coração pro mundo
Atento ao que passa
“O cara mais simpático da cidade” - eu digo
Passa tão rápido

Nem o cinza da pedra reflete
Nem o duro do silêncio
Nem o mal, nem a névoa – são da tua qualidade

Amigo, coração do mundo
Lidamos com retratos e, portanto, outros livros
Significados, o real por eles visto
Mas o que significa isso?

E, para a letra te dizer
Seria preciso voar
E todas as cores e paixão
A memória do não é pedra
E o existir é mais amplo
Do que se pode sonhar


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O trabalho Encontro de Afonso Jr. Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

segunda-feira, fevereiro 04, 2013

Uma pequena diferença

- Para iniciarmos nossa análise - disse o diretor do departamento de investigação - gostaria de deixar claro que o caso envolve uma república asiática que nenhum país do globo deseja ver desestabilizada. Qualquer vazamento de informação colocaria os líderes mundiais em pânico. 
- Compreendo senhor, pode contar com minha discrição - disse Momai.
- O senhor Moon está aqui para acompanhar a investigação. O caso é que o poderoso líder dessa república está com problemas com seu filho mais velho, seu provável sucessor, que tem se mostrado um playboy inconsequente. Por causa disso, seu irmão, que estuda em uma escola renomada na Suíça, pode tornar-se o novo presidente. O rapaz já foi  descrito como "afeminado" pelos colegas de escola. Entretanto... Uma foto comprometedora, envolvendo, ao que parece, uma jovem, foi parar nas mãos da uma importante marchant brasileira Vera Klosto que tem revelado talentos asiáticos no mercado Ocidental. Como ela não exigiu resgate, supomos que apenas deseja ter uma espécie de "proteção".

- O senhor saberia descrever como ela se apossou da foto? - perguntou Momai. 
- Essa é a parte mais interessante. O presidente tinha acabado de receber a foto de seu serviço de espionagem, eles haviam roubado a câmera do fotógrafo. Por segurança, haviam destruído a máquina e mantido uma única impressão. O pai, entretanto, aturdido com o fato, foi capaz apenas de virar a foto na mesa quando surpreendido pela entrada da exuberante figura, com quem havia criado alguma intimidade. Vinha acompanhada por um diplomata europeu. Não faltou a esta astúcia para compreender o objeto sobre a mesa, que mostrava o nome do filho e o símbolo do serviço secreto no verso. Por acaso tinha uma série de amostras do catálogo de uma exposição que seria realizada em Veneza e deixou-as sobre a mesa. Depois de uma conversa de mais ou menos quinze minutos, retirou dali tudo que era seu e mais um pouco e se foi sem que o presidente pudesse dizer uma palavra. 
- O método guarda uma semelhança estranha com o conto "A carta roubada" de Allan Poe - disse Momai. 
- Sim - respondeu o diretor - Suspeitamos que esteja entre os pertences dessa senhora na sua mansão, mas as paredes são cobertas de gravuras e pinturas - no fundo das quais se poderia, por exemplo, esconder o objeto - e sua coleção de fotografias contém mais de 11 mil itens. Não podemos pedir um mandato. Dois homens já conseguiram entrar secretamente na casa em vão. Podemos colocá-lo lá dentro por algumas horas - ela irá dar uma conferência por esses dias em Boston - e esperamos que o senhor possa nos ajudar. 

- Claro. Mas antes preciso ir a um museu. Tenho de pensar como uma marchant - disse Momai - é assim que as intuições surgem. Mais uma pergunta: imagino que o rapaz tenha sido vigiado e acompanhado o tempo todo na Suíça. 
- Sim, ele usou nome falso e era a único garoto do colégio a chegar de carro, com um motorista. Um importante diplomata tinha como função acompanhá-lo. Ele é fanático por tênis e sempre tinha muitos seguranças. 
- Estranho: como alguém pode tirar essa foto? - Momai perguntou se levantando. 

Hélio o esperava na porta da Pinacoteca.
- Espero que seu namorado me perdoe por mais essa - Momai disse.
Eles entraram. Uma exposição de tapeçaria contemporânea, muito colorida, misturava fios, metal e madeira. 
- Andei retomando os contos de Poe, só para me sentir preparado - disse Hélio ao sentarem na sala de esculturas. Encontrei nesse outro conto, "O mistério de Marie Roget", algo que me pareceu interessante. Importa-se que eu leia? - Momai fez um sinal com a mão - "Porque em relação a última parte da suposição , dever-se-ia considerar que a mais leve variação nos fatos dos dois casos poderia dar origem aos mais graves erros de cálculo, fazendo divergir totalmente os dois cursos de acontecimentos, como acontece tantas vezes em aritmética, em que um erro inapreciável, se tomado individualmente, produz afinal, por força de multiplicação em todos os pontos da operação, um resultado enormemente distante do verdadeiro". 

- Interessante. O método de Dupin é partir das superfícies, como num jogo de cartas, das variações de expressão, da fisionomia dos jogadores, do modo como classificam as cartas na mão - para chegar ao verdadeiro estado do jogo. Prefiro a perspicácia intuitiva à indução. Nossa amiga nos oferece um banquete de sensações e dados para analisarmos... Mas as coisas nunca se repetem. Se começarmos supondo que a exposição oculta e não mostra e não que a exposição distrai...

- Não estou acompanhando, Momai.

- Oh, às vezes me parece que, quando eu estou pensando sobre um caso, a natureza toda pensa comigo.
- Jung diz mesmo que não sabe onde começa e acaba o inconsciente... - Hélio disse.
- Pensando nisso, lembro de ter visto o mesmo trecho do conto usado num livro sobre sistemas caóticos e complexos. Poe expressou profeticamente uma ideia hoje muito importante no estudo desses sistemas. Não sou bom em matemática, mas penso que esse artigo dizia que um atrator estranho é uma região para a qual tendem os eventos futuros de um sistema, apesar desses eventos terem muita distância entre si. Além disso, pequenas variações iniciais levam à resultados muito distintos no futuro... Neste caso... Da superfície para a verdade da estrutura, ou da estrutura para a verdade da superfície? A aparência também é estrutura...

Na mansão, paredes de quadros se ofereciam para análise. 
- Por onde começar? Cubismo ou Tachismo? A carta estava muito "à vista", por isso não era vista - disse Hélio. 
- Vamos buscar uma parede secreta. O mais difícil. O atrator, não o evento. 
- O mais difícil não seria um cofre num banco?
- Não para quem quer estar na região mostrar/ocultar, dentro/fora, visível/invisível - Momai passava as mãos pelas paredes. Viu uma tela com moldura oval, dourada, no estilo de "vinheta", com um busto delicado de jovem se fundindo com o fundo negro. 
- As equações são explícitas e deterministas, mas o resultado tem um alto grau de incerteza... Poe: o atrator estranho. 
Moveu o quadro e empurrou a parede atrás dele. Ela girou. Hélio parecia estupefato. Um envelope estava sobre uma mesinha. 

- Ela fingiu expor o objeto para nos confundir, disse Hélio. Ao usar como método uma referência tão clara, estava na verdade direcionando nosso olhar para a carta "manchada e amassada" no "porta-cartões".  
- Pior que isso. Por que alguém iria imprimir uma foto para os arquivos oficiais? São cúmplices? Suspeito que o que resgatamos não seja mais que uma foto comprometedora falsa. Imagine a seguinte situação: o pai é informado pela sua espionagem de que certos comportamentos do filho são notados; pede ao serviço secreto que finja obter uma foto do rapaz levemente comprometedora: por exemplo, ao lado de uma garota com os seios à mostra junto com um amigo. A foto é deixada na mesa quando se percebe a marchant, devidamente identificável. Quem levou à "Carta roubada" foi o pai.
- Claro! De alguma forma se especula sobre o escândalo, mas não sobre a homossexualidade do filho! Mostrar para ocultar...
Hélio pega o envelope e vai abri-lo, mas é impedido. 
- Uma pequena mudança nas condições iniciais leva à resultados que estão muito distantes entre si...

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O trabalho Uma pequena diferença de Afonso Jr. Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

domingo, fevereiro 03, 2013

Presente diabólico

O centro parecia deserto, com seus prédios antigos e calçamento de pedras claras. Alguns moradores de rua, um carroceiro, seguranças. Sentaram e pediram um café.
 - Trinta minutos esperando para sair do bar, chuva torrencial. Meu guarda-chuva se desmontara. As calçadas estavam cercadas por rios. Eu vi uma mãe pulando com um bebê de colo por sobre a água. Foi um mês inteiro em dez minutos de tempestade - dizia Momai num jorro. 
- Pai, tudo bem. Hoje vemos essa peça e pronto. Não fico magoada. Não sou mais criança. Conte-me sobre o caso. 
- Só espero que sua mãe não... - ela deu uma risada - Ok. Uma mansão. Uma festa de aniversário. Invasão. Os homens são presos no banheiro. As mulheres, amordaçadas, vendadas e estupradas coletivamente. Terrível. 
- E você desconfia que não foi nada disso. Por causa do poema de Lorca. Realmente, é estranho apenas uma delas ter sido morta. 
- "Tua boca já sem luz/para minha morte". Por que uma secretária escreveria isso na primeira página de sua agenda?
- E você comentou sobre uma reportagem de jornal guardada, na mesma agenda, sobre o comandante da polícia que teria ordenado a morte de uma juíza, e foi pego pela nova lei de armas, que obriga registro de toda a munição, para saber quem a comprou. 
- Outra reportagem falava que a maioria do Congresso recebeu mais de 1 milhão da indústria de armas. E quer modificar a lei?
- Realmente: é muita coincidência. O chefe da moça era o presidente da Câmara, Marcelo Costa, que acusou o prefeito de corrupção e conseguiu sua cassação. Sobre a festa, você parece duvidar da teoria da invasão. 
- Muito fraca. Os donos da casa, dois irmãos, afirmam terem sido amordaçados e trancados em um quarto, enquanto suas esposas foram trancadas no banheiro. Por que todas as mulheres foram estupradas, menos suas esposas? 
- Você acha que a vítima pode ter visto os criminosos? E a "invasão" seria uma espécie de "presente de aniversário" demoníaco? 
- Sim, ao que parece. Não acredito que estou falando isso com minha filha adolescente. 
- Se você leu Conan Doyle, sabe sobre as "tendências hereditárias". Eu fui feita para o crime. 
- Ele também pensava que tudo era previsível porque se repetia, não? O mundo era estável, e, portanto, dedutível sub quadam aeternitatis specie. Não haviam dito ainda: "A mudança é o sistema e os sistemas têm que mudar".
- Você falou de uma irmã da secretária? Vai procurá-la, não?
- Sim. Vamos subir, faltam cinco minutos. 

A irmã o recebeu no apartamento onde ambas moravam. 
- O senhor lembra que, no ano passado, o vereador defendeu publicamente um aumento de 60% para o legislativo?
O judiciário também pedira isso. O prefeito não aceitou e fez uma campanha pela mídia. Logo em seguida, foi julgado por corrupção. 
- Sim, estou ciente. 
- Minha irmã queria sair do emprego. Estava assustada. 
- A senhorita acha que pode ter ouvido alguma coisa? 
- O senhor deve lembrar que ano passado, durante uma greve da polícia, que durou 4 dias, ocorreram 180 homicídios. A maioria deles de jovens, negros, usuários de drogas da periferia. O prefeito estava pressionando por investigação. 
- Obrigado, senhorita. É bom termos quem lembre do dia de ontem. 

Hélio estava empolgado. Tomavam um sorvete.
- Um deles confessou. Eles mataram a moça porque ela ouviu seus nomes. Eles mesmos compraram os materiais para amordaçar e amarrar as vítimas no supermercado da cidade vizinha. Mas tem uma coisa que ainda me intriga. 
Eles juram que a ideia não veio de nenhum dos dois irmãos. Teria sido uma criação do terceiro homem, o André Padilha? Eles ficaram em silêncio. Ele sumiu. 
- Tenho uma teoria: por favor, rastreie o celular desse homem. Tenho certeza de que ele tem envolvimento com o presidente da Câmara. O diretor do Departamento de Homicídios, durante a greve de policiais ano passado, afirmou que havia a suspeita de que 30 assassinatos no período haviam sido cometidos por policiais? E chegou a dizer que o comando da greve poderia ter ordenado as execuções para causar comoção na opinião pública? O vereador Marcelo tem histórico de defesa de grupos reacionários. 
- "Tua boca já sem luz/para minha morte". 
- Os estupradores têm que pagar. E, quando André cair... Não é a República das Bananas, afinal. Nunca duvide do poder da arte - Momai riu, acabando com a bola de chocolate. 

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Presente diabólico de Afonso Jr. Lima é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

sexta-feira, fevereiro 01, 2013

O fantasma na máquina

- Desculpem o atraso - Hélio disse. Chuva e alagamentos.
- Por que você nos convocou, Momai? Não conseguiu sozinho? - a mulher elegante, aparentando vinte anos, disse de seu divã.
- Pare de irritá-lo, Perséfone. Ele nunca se apaixonará por você. Ainda que seja a única mulher capaz de parecer para sempre uma adolescente - respondeu um homem gordo, de bigodes, com um boné, camisa polo, casaco de tweed e tênis. 
- É evidente, Dr. Orlando. Ele só sente atração por mulheres vulgares - ela disse. E sabemos de algumas histórias de colégio...
- Ele não sabe o que é sexo faz tempo - disse um homem sentado em sua poltrona, alto e magro, muito bem vestido, de cabelos negros desgrenhados, que descansava sua perna mecânica sobre um puff.
- Crianças, crianças - a senhora de cabelos brancos e olhos violeta pousava uma bandeja com bolos sobre a mesa - Vamos direto ao assunto. Um cientista e professor famoso. A morte ocorreu por asfixia. Um hematoma grave na cabeça, caída sobre a mesa. Um papel queimado no cinzeiro e uma caixa de presente aberta. O quarto, trancado por dentro; a mãe e a filha, que moravam com ele, dizem nunca ter notado semelhante atitude. Uma casa muito alta. Ninguém ouviu nenhum tiro. 

- Lembremos do nome "Dyle" ou "Byle", que ele escreveu com as mãos trêmulas na capa de um livro antes de morrer, Albertine - Momai disse. Todas as descrições nos falam de uma inquebrantável força de vontade. Alguns falam mesmo de uma pessoa fanática. 
- Em primeiro lugar - disse o homem alto - é preciso perguntar quem são as pessoas ao redor. 
- Bravo, Maravoglia - a bela mulher falou - Quando fui convocada, fiz minhas pesquisas. O professor Shin Lun é um amigo, especialista em psicologia cognitiva, conhecido pela tese de que "não existem pensamentos e emoções: existem neurônios". Dr. Luiz Paiva, de tendência platônica, estuda a relação entre corpo e linguagem, com influência da antropologia e da psicanálise. Dra. Lisa Pietrovna é especialista em psicologia social e comportamento de grupos. Lívia Kartz é a professora assistente, ambiciosa, que vem ascendendo rapidamente no mundo científico e foi contratada à peso de ouro, depois de um doutorado na Suíça. 

Hélio estava ansioso. Não gostava de se sentir um penetra no Círculo, onde "mentes brilhantes" discutiam de modo ultrasecreto crimes "impossíveis". Dr. Orlando percebeu. 
- Nosso querido investigador chefe... Para nós, você pode contar. Continua escrevendo romances de detetive?

Ele foi pego de surpresa e interpretou como ironia: 
- Pelo menos eu não sou um velho médico sem pacientes, que gasta tempo com golfe e sessões mediúnicas.
O doutor deu um sorriso condescendente e pareceu desviar de assunto: 
- Algumas vezes eu me pergunto: por que as pessoas gostam de mistérios? Em parte, talvez por isso mesmo: provar que a realidade ainda tem brechas, sombras, está em processo. Além disso, um mistério mantém a intensidade da mente aberta, propicia a criação de hipóteses e incentiva a atenção flutuante; criar é um prazer para os humanos. Todos os livros são de mistério: o que vem depois, quem são essas pessoas, que linguagem ainda verei?
- Uma pistola de ar comprimido! É claro! Pela janela... Eu li isso em um romance, eu acho... - a senhora disse, enquanto servia chá. Ele recebe uma caixa com uma coisa comprometedora, sente-se mal, vai até a janela... Talvez tenha sido atingido ainda sentado. Mas não por uma bala, por um objeto inofensivo, até mesmo uma borracha comum, mas que distrairia as atenções... Alguém iria olhar ao redor quando o cadáver tem um hematoma? Mas, além disso, um ferimento enorme com bala de fragmentação poderia nos fazer imediatamente imaginar um atirador. Ou talvez... eles quisessem Momai!

- A caixa! O homem tentou queimar a carta ou foto comprometedora - diz Momai. O papel foi preparado com uma substância altamente tóxica... Lívia Kartz estava certa ao afirmar que o ambiente universitário era asfixiante. 
- Uma análise das cinzas pode confirmar isso - disse o doutor.
- Em uma conferência, há dois anos, ele disse: "As pessoas desejam consolação e acreditam em fantasmas: inclusive o Dr. Paiva. Se eu morrer, vocês já conhecem o culpado" - lembrou Hélio.

- Mas a pergunta é: por quê - disse Penélope, pegando o violino. 
Malavoglia falou:
- O sr. Ryle foi professor de Filosofia em Oxford e autor da expressão "fantasma na máquina", para criticar o dualismo cartesiano. Descartes havia defendido a existência de uma substância "mental" oposta à "material", tanto por não crer que as poucas peças que ele identificava como o cérebro fossem capazes de gerar as combinações necessárias para um pensamento adaptável, quanto para poder definir o mundo como máquina sem alma, e estudá-lo livre da Igreja. 

- Sim, disse Momai - Para Gilbert Ryle, era preciso usar a navalha de Ockham - não utilize teorias além do necessário. Seriam as variadas atividades humanas que nos levam a crer que existe vida mental. Além disso, apenas a ciência poderia nos revelar a verdade sobre nós mesmos. 
Momai levantou-se do sofá com um pulo.

- Ouvi uma palestra do nosso homem na internet. Ele afirmava que nosso comportamento e escolhas podiam ser definidos pelo ambiente e pelos genes. Parecia defender um ponto de vista filosófico de que só é verdadeiro o que pode ser medido e observado. Ele anuncia um artigo bombástico, no qual vai demolir definitivamente todas as formas de dualismo. Pareceu-me que sua defesa de que "os humanos são seus cérebros" era uma batalha pessoal e política. 
- Você está invertendo o argumento e dizendo que não há como provar que "a mente" não existe? Isso me lembra trabalhos recentes sobre a consciência como qualidade emergente de um sistema complexo - disse o médico. 
- Quando conversei com Dr. Paiva, ele me pareceu preocupado com a competitividade do colega - disse Hélio. Ele lhe teria escrito uma carta sombria, mas que havia desaparecido. Outros confirmam uma enorme animosidade entre eles. Ele me jurou que o tal "artigo bombástico" ficaria na gaveta por estar sendo criticado duramente mesmo antes de publicado. Shin Lun me descreveu uma conversa em que ele disse temer pela sua vida.
- Dra. Lisa chegou a falar de "disputa mórbida" entre eles - Momai completou. "Se quer achar malucos, procure entre os psicólogos", ela disse. 

- Parece que alguém quer evitar a desmoralização de uma teoria. Um dualista fanático. Querendo eliminar um cético materialista - Penélope disse.
- Quem mataria um cético? - Momai andava pela sala - Nos assassinatos do "psicopata profeta", uma morte, a de uma estudante, estava ligada ao pensamento de Mandelson - "Fé privada". Outra, a de uma empresária, à visão de Spinoza: "Deus é natureza". Estava falando da secularização do mundo e a culpando pela "libertinagem" e "capitalismo selvagem". Um "desvio" de uma sociedade secreta. No caso mais recente, imaginei que o morto fazia parte dessa organização internacional.
- Então aqui teríamos um terceiro "desgarrado" do time, pronto para desmentir o positivismo com sangue? - disse Lady Albertine. Digo isso porque a sociedade secreta se exporia demais agindo ela mesma.
- Ela pode permitir. Talvez seja um inimigo mais poderoso. Ele quer o jogo. Enquanto alguém pode ter convencido o professor de que estaria em perigo - disse Dr. Orlando.
Penélope largou o violino:
-  Ele recebeu a carta que ele mesmo havia escrito para Dr. Paiva - que rede poderosa! - e que podia criar um vexame. É insano, por isso, provável. Ele mesmo estava convencido da torpeza de seu colega. Como afirma o provérbio: "caráter é destino".

- Vamos procurar sinais de um atirador. Na frente da casa há um prédio vazio. E buscar quem poderia ter preparado o papel com a substância nociva. Mas eu acharia uma solução bem interessante para o incomum trancamento da porta. Obrigado, amigos. Até um dia. Vamos, Hélio. Temos trabalho pela frente.
Momai e Hélio saíram rapidamente. A chuva continuava. 
- Ele nos procurou por estar inseguro? Eu me preocupo com a tal sociedade secreta - disse Lady Albertine. É bom ficarmos atentos. 
- Momai nunca deixará de parecer um fracassado perdido numa cidade insalubre e inviável - disse Malavoglia, acendendo um cachimbo.