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quarta-feira, janeiro 30, 2013



O antiSherlock

Momai estava de férias no sul, em uma prainha remota, mas recentemente incrementada com lojinhas, supermercado, caixas de banco, um hotel, cheia de casas com flores e gramados. Um livro sobre impérios antigos, vinho. Era seu refúgio contra aquilo que as pessoas continuavam chamando de cidade, São Paulo. Sua filha havia fugido com o namorado, encontrada vendendo artesanato em Floripa. Quando estava já perdendo seu eu no meio do caos metropolitano... Havia chegado presunto novo, um extra como consultor do "serviço secreto", a polícia de inteligência.  Nessa cidadezinha, o crime mais terrível era o desaparecimento de um cão da vizinhança. Tyr, o deus da guerra, dormia tranquilo na sua carteira.

- Sinta-se honrado: parece que os crimes gostam de você – Hélio dizia no celular. Estava vindo, o caso de um rico empresário na serra gaúcha fizera com que a polícia solicitasse consultoria especial.

O homem morrera de causa desconhecida (não foi coração, nem objeto cortante, etc.) em um ambiente “hermeticamente fechado”. Nenhum sinal de arrombamento na casa. Fora encontrado nos seus aposentos pela sobrinha – no meio da noite, ela ouvira, do seu quarto, que era conjugado, um grito desesperado. A porta do tio estava aberta e ele agonizava junto a ela. Apenas pode dizer: “Callipolis”. Neste momento, chegou o cunhado, um alcoólatra desprezado por ele, que passava as noites fora.

Na velha mansão os recebeu a governanta, Dona Schultz, uma senhora altiva, com olhos azuis frios e um colar de pérolas um pouco extravagante para sua função.

Ele era um tanto paranoico. Temos um alto muro que cerca toda a propriedade, com câmeras e cerca elétrica. Há mais ou menos 15 anos, bandidos entraram nesta casa e, desde então, mandou colocar barras de ferro na janela e nunca mais dormiu sem trancar as portas. Se tocar nessas paredes, como fazem os detetives de filmes, vai ver que são sólidas como as de um castelo.

Havia um sabre na parede e uma vela sobre a mesa. E se faltasse luz?

Ele tirou as coisas do lugar? Parece arrumado.
Sim, ele quebrou um abajur que ficava ao lado da cama, com certeza tentando se levantar, derrubou esta cadeira e abriu a porta deixando cair a chave de ferro.

Momai olhou rapidamente para a cadeia, a chave e as barras da janela.
Com isso ele chamava a senhora? - apontou uma corda que, passando pelo duto de ventilação, descia até acima do travesseiro.
Aconteceu apenas duas vezes nesses anos todos. Ele temia um colapso no meio da noite. Ela vai dar no meu quarto, passa por uma saleta ao lado. Se foi atacado, por que não me chamou?

Depois falou com o jardineiro, um homem soturno, meio delirante, que tinha certeza de que vira personagens no jardim que há tempo espionavam o patrão.
No enterro, Momai observou a sobrinha chorosa, com seu cabelo lilás e piercings, o cunhado ainda vermelho, que parecia nervoso, e a governanta.

Eles tiveram um caso? - perguntou à jovem.
Sim, mas não guardavam ressentimento. Quando jovens, viajaram juntos para a África, onde ela trabalhou como enfermeira voluntária. Ele a contratou. Ela o serviu mesmo depois que começou sua relação de uma década com Giulio, um marchant italiano do qual se separou há um ano. Andava depressivo.
Você vai herdar tudo?
Sim. Não é maravilhoso? Meu pai virou um trapo depois que mamãe morreu. Meu tio me explorou anos, um cárcere privado emocional, e agora me deixa livre. Apenas o sítio ficou em nome de Giulio.
Ainda: a senhorita foi a primeira pessoa à entrar no quarto. Teria alguma coisa especial a descrever?
Não. Nada. Ah, sim, talvez. Depois da perícia da polícia, o quarto havia sido liberado para a limpeza. Achei aquilo muito estranho. Inclusive, tive a impressão de ver Dona Schultz limpar até mesmo a cadeira, as grades e a corda da campainha. Bizarro.

Hélio perguntou, enquanto Momai tomava seu café com cuca (nunca encontrava isso em São Paulo):
Callipolis é a cidade ideal de Platão?
Exatamente. Eu lhe disse, quando previ que o deputado Coriolano estava organizando um grupo de extermínio, que a coisa era maior.
A polícia acabou investigando o caso. Foi bom. Pelo menos ele foi afastado pela comissão de ética. Mas agora... Quem sabe o companheiro pode nos dar mais alguns fatos?
Hélio, você sabe... Não se pode criar ciência amontoando fatos. Eu crio a mais bizarra teoria de que sou capaz e, se for a mais provável e nada a desmentir, tomo-a por verdade. Sou o antiSherlock.

Giulio contou, por webcam, que tinha certeza do assassinato.

Ele tinha ficado com a maior parte de nossos quadros mais valiosos. Provavelmente íamos iniciar uma batalha judicial. Não vou ser rude, era violento e irascível, mas um bom homem. Estaríamos juntos se... Bem, só posso dizer que havia segredos, telefones secretos, cartas com lacre, havia um encontro anual inevitável em alguma parte da Sicília e que nunca pude saber o que era... Não posso viver com mentiras! Foram dez anos de felicidade, mas... Eu simplesmente sinto que não sou importante.

A perícia analisou a corda. Dona Schultz teve prisão preventiva decretada. Cartas ambíguas, mas importantes, foram encontradas em uma parede falsa do quarto.

O último caso me fez pensar numa organização internacional, agindo por convicções filosóficas. Para Platão, o governo devia estar na mão de reis-filósofos. Não é improvável que ele tivesse decidido abandonar a causa. Quanto ao assassinato, a única forma de algo entrar no quarto seria por esse duto de ventilação, pela corda. Logo pensei em algo que escorreu por ela, mas desapareceu em seguida. Como numa obra antiga. Um veneno vegetal mortal, desconhecido, que tivesse de alguma forma evaporado. Mesmo assim, ela teve o cuidado de limpar a corda...

O assassino está ligado ao último “psicopata profeta”? Mas como...
Ele enlouqueceu e expôs a corporação. Podiam fazê-lo outra hora? Existem casos em que o estado presente determina completamente o futuro sem parecer fazê-lo, aparentando ser aleatório. Berkeley dizia: “ser é ser percebido”.  Agora, eles sabem que eu sei.

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sexta-feira, janeiro 25, 2013


Uma cidade

Adeus, prefeito. O melhor dos últimos 40 anos. Muitos cravos e margaridas nos canteiros. A praça, conhecida por ser escura e deserta, foi reformada, com calçadas ampliadas, e a população passou a circular e a sentar nos bancos ao fim da tarde. Foi o que mais fez casas populares. Trocou a lama e os buracos por asfalto, asfaltou mais que a capital. Reformou prédios históricos. Mas o jornal da cidade não gostava dele.
- A saúde é o fundamental – dizia o editorial quase todo dia – e o hospital tem filas imensas!

Só que todos os filhos de Dona Sônia haviam nascido naquele hospital, muito bem atendidos.
- Eu sou bem de vida, podia pagar. Injustiça não, comigo não – ela dizia aos quatro ventos.
A população, indignada, agitava-se nos bares e esquinas. Até Seu Otávio, comerciante antigo, em frente à praça, dizia, vendo as flores recém-plantadas:
- Mas olhem os outros candidatos! Um fazendeiro grosso, que governou a cidade por anos sem mudar nada! Uma madame desvairada que só pensa em compras e intriga! Um advogado que olha todo mundo de cima só porque seus avós são europeus!

Seu Manuel, plantador de maçã, de 82 anos, completava:
- Comunista, mas trabalhador...

Os jovens vibravam com um centro cultural embaixo da Igreja: cinema de graça, biblioteca, música clássica aos sábados e a história da cidade nas paredes. Elisa, advogada recém-formada, que passara 12 anos fora e abrira um escritório recentemente, colocou as mãos na cabeça:
- Vamos voltar a ser o fim do mundo!

O prefeito havia comparecido a uma inauguração no período eleitoral dez anos antes. Alguns panfletos antigos com as obras realizadas foram distribuídos nas casas durante a última eleição. O caso acendia debates: teriam escondido os panfletos para derrubá-lo? Seria inteligente fazer isso por alguns votos? Ele realmente era corrupto?

Dona Berta, empregada doméstica, disse à sua patroa:
- É, se errou tem que pagar; não votei nele, nem gosto desses meninotes que querem já ser prefeitos; mas dou graças à Deus da minha rua não ser mais de terra, senão... Está certo, está certo, mas no meu coração... Eu estou tão triste. A gente já viu tanta obra errada, tanto ladrão grande... Ai, o povo! O povo, sempre sofrendo! E, além disso, graças ao hospital, agora vou voltar a ter meus dentes.
A cidade ia silenciando enquanto o sol se punha. 

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quinta-feira, janeiro 24, 2013


Um boi que assiste

O cru é o mundo
(vivo, que se esconde)
E a linguagem é sua energia
(tanta ansiedade nos homens que passam)
O ar é obra do trovador
Só a rede faz o peixe
O amor, a guerra e o dia
(É a fantasia que cria a noite)

Palavras, nas cavernas, nas baladas, o canto do corpo
Palavras que reúnem o espaço
São as imagens as verdadeiras verdades
Na tela do pintor é que o mundo se completa
(E tu, pastorzinho, é quem as aparta
Pulando da cama para dar fim aos fantasmas)
Não podemos compreender o mundo sem seu retrato
O cru se oculta sob sete peles heterônomas
A seiva, sua calma primal.

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sexta-feira, janeiro 18, 2013


Raízes

Nunca pensei a fronteira
Barrancas do Uruguai desvi
O pasto nostálgico na minha alma
É um uivo lento que herdei sem pedir

O pasto, o pasto lento
O sonho, o sonho escuro
E eu corro, guri-cavalo
Lendas, mortes, lamentos 
(e a grama cresce, boiosa
E a vida passa – o tempo)
Alguma coisa de mistério

segunda-feira, janeiro 14, 2013


Sete flores

Onde andam as rosas?
Que são só ausência
Rosa, se te vejo
Nem sei como agir

Atrás de um portão
Em terra verde orgulhosa
Pendendo em cachos no vento
Só em pensamento

(E o belo  traço
Limpo e certo
Tecido na noite
Poesia de linha e pouco
- Quando esquecida e vaidosa
Tu lhe apontavas a origem -
As rosas não tem mais fio
Que as liga à última estrela)

Rosa sem odor
Rosa programada
- Para uma vida só de verão
Vida de quantidades -
Rosa tão cara
Mundo sem rosação
Tudo nos separa

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domingo, janeiro 13, 2013


Cidade Baixa

O plano era derrubar tudo e criar um novo bairro, chamado Cidade Alta. As casas antigas, o caminhar pelas ruas verdes e a vida boêmia seriam substituídas por “progresso”. (Érico Veríssimo, em “O lírio do campo”, mostrou como os espigões podiam ser fatais...)

Ele saía de um jantar romântico. 25 anos, cabelo castanho escuro, 1,75, ativo liberal. Estavam felizes e levemente alcoolizados. A Rua da Praia era toda dourado com suas árvores altas. Um carro veio em alta velocidade. Beckett é sempre igual: escuro, cara branca, será que em todo lugar é assim, ele disse dois minutos antes, Eu gosto.

Foram quatro meses dentro de casa. (Morte: Se n é a catástrofe final, n+1 não pode ser a catástrofe final; se n+1 não é a catástrofe final, (n+1)+1 não é a  catástrofe final. São uns instantes, aqueles momentos de branco em que você segura o pinto e espera o xixi e pode pensar: está tudo perdido, acabe logo com isso. Se o amor é filho de deuses, no mínimo deveria ser um semi-deus. “O fim está no começo e no entanto continua-se”.) Seus amigos (Vera – loira, livro preferido: Paris é uma festa, Sagarana, filme: Morangos silvestres, viciada em videogame, pós-roqueira, peitos grandes, falante compulsiva, poeta, formada em Letras, manicure; Cesar – advogado, grisalho, ex-amante, violino, jazz, O Gordo e o Magro e O capital, vizinho, você precisa de um emprego de verdade, é inteligente e bom) estavam preocupados. Um passeio no shopping? Um desconfiava do outro, era necessário.

Quando vai cair a última casa, caem os panos, um fim para nenhum conflito, como será viver nessa prisão, Cidade Alta, preciso morrer antes.

Foi assim que se conheceram: estavam girando o gôndola de livros de bolso. Seu celular tocou.  Não tinha forças. Uma das coisas que adorava fazer com ele era tomar chá com “biscoitos Natal” - caminhar à beira do Lago, brigar um pouco e fazer amor no frio. Tenho que comprar pão e uma cueca nova. Lembrou de Melissa, ficaram juntos uma semana, por que lembrei dela agora, ela usava meias brancas na cama. Abaixaram os olhos, como quando as coisas são grandes. Silêncio, outro olhar, vou sair, ele falou alguma coisa, você também gosta de Thomas Mann?, telefone, bebida, foi bom pra você. Ok. Tudo vibra, tio Heráclito, ou, como disse Cesar, parece haver um movimento intrínseco aos níveis mais elementares da matéria, mesmo no zero absoluto há energia. Tudo que é duro desmancha no ar.

(Pensava sempre num jogo impossível: as regras mudam com o tempo: no início do jogo, os peões comem as peças em L, os nobres ficam imóveis dependendo de seu vizinho ou comem uma casa para frente; depois, isso se inverte, quando resta apenas a metade dos peões; no fim, os peões podem escolher qual seus “modos” e o rei ataca em todas as direções ou sai do tabuleiro).

Ele voltava à ativa. Seu celular tocou. Um cliente no outro lado da cidade. No taxi, observava os casais de namorados, as casas baixas tornavam a vida mais humana? Não há mais natureza, lá fora é só poeira e a destruição completa, só existe sono, despertar, noite e manhã, ele disse. No futuro, seriam implantados chips para monitorar nosso batimento cardíaco? Em centrais de controle? E quanto aos miseráveis? Receberíamos mensagens quanto ao nosso desempenho profissional semanal, nosso progresso rumo ao “sucesso”, sobre nossa performance sexual média, gráficos sobre as melhorias semanais do governo e novos empreendimentos imperdíveis? Adeus Cidade Baixa. Quantas histórias ficam grudadas em uma parede? Como seria quando cada prédio de 15 apartamentos se tornasse uma torre com cem? Os vereadores falavam em “requalificação”, “atrair público novo”. As leis existem, e daí? Os escravos viveram ali. Nesta casa, Getúlio Vargas começou a planejar secretamente a Revolução de Trinta, lembra. Tudo tem que melhorar nesse mundo - dizia um vereador.

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quarta-feira, janeiro 09, 2013

Maria 


1
Eu fui sua aia na França. Eu vi quando ela dormiu como uma égua fogosa com o rei e outros cavalheiros.
O rei inglês percebe seu sorriso na corte. Ele ordena que ela vá ao se quarto. Ela resiste, discutem em particular durante uma caçada.

O marido joga-lhe na cara sua antiga ligação com o rei. Ela chora. Entrega a ele seu bebê com raiva. “Seus filhos terão um nome graças a mim”.

Sua irmã retorna à corte. Ela incentiva que se case com o rei.

Os pais a isolam da família devido aos boatos sobre seu passado.

A irmã aborta. Manda chamá-la. O rei a está traindo.

2
A princesa, a maior beldade de seu tempo, quinze anos. Ouro sobre tecido vermelho. Os navios foram desviados pela tempestade. Eu fiquei com ela quando todos a abandonaram. Sua comovedora carta, quando, viúva depois de três meses, foi encarcerada como manda o costume, dizia: “Agora peço à Vossa Alteza, meu Irmão, que me deixe retornar à minha terra e me case por minha vontade, que obedeci sua vontade como serva fiel”.  

Soube que minha dama estava na corte e que o rei demonstrava interesse por ela. Pedi que intervisse para libertar-me e que eu pudesse casar com o duque da minha escolha. Eu retornei depois de longa negociação, pois alguns queriam que meu casamento representasse papel junto aos Habsburgos, tendo sido obrigada a dar minhas joias ao meu rei.

Nós nos separamos quando minha irmã (funesta Fortuna a nossa) se tornou favorita do rei – sua família desejava outra coisa para o irmão. Mesmo lutando pelo casamento, sou afastada da corte depois dele.

A duquesa, minha amiga antiga, me escreve dizendo que está muito doente e dá a entender que seu marido está interessado na noiva do filho, de dezoito anos. Quando ela morre (o filho a segue em pouco tempo), o caixão baixa na Igreja de Santa Maria, destruída pelos iconoclastas uma década depois. Pela vontade de Deus, seu corpo é resgatado.

3
Ainda jovem, fiquei conhecida como devassa. Na França, se vivia com muito mais liberdade; a corte italiana ensinara a vaidade, o culto à beleza e o amor carnal aos nobres. Eu me diferenciava apenas por uma língua ferina e por não deixar um homem ignorante sem resposta.

Dançam. Ela corou quando ele falou ao seu ouvido. Seria rainha?

Os boatos de que estaria grávida do rei não tinham nenhum fundamento, mas seu filho Henrique tirou o sono daqueles que pensavam que um varão ilegítimo podia ascender ao trono.

A irmã mais nova, levando em conta como o rei desprezara sua amante, exige que ele se divorcie quando percebe seu interesse.

A irmã sofre com a peste e manda chamá-la. Pensa se não seria um castigo e conta um sonho em que viu a si e a seu pai serem enforcados.

Ela se casa em segredo com um serviçal de seu pai.

Sua irmã sobrevive e casa-se com o rei. Ela é banida. Escreve cartas implorando ser aceita novamente na corte.

Ela se desespera vendo os dois sendo acusados de traição e presos na Torre. 

Herda ricas terras de seus pais e seu filho, Henrique, se torna importante conselheiro da Rainha.



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terça-feira, janeiro 08, 2013


A morte de Ivanov

Em silêncio, à mesa rústica, à luz de uma velinha fina em um candelabro de prata, ficava o autor. O chá estava frio, jornais espalhados pela mesa. Sentia aproximar-se uma crise. Ouviu uma música. Sua Bíblia velha, por um momento, lhe trouxe à mente os dez anos terríveis na prisão e na infantaria no gelo. Sentiria novamente seu corpo se duplicar? Novamente aquele poder lhe tomaria, o que ele chamou de Deus? A claridade que tudo transfigura, um êxtase sereno, o sentimento de ter entendido e justificado a vida e a esperança. Mas não: aldeias incendiadas, filas de homens fuzilados, centenas de camponeses enforcados, multidões caminhando na neve em pleno inverno. Tentou em vão mover o corpo, paralisado. Onde a liberdade pode nos levar? Um estudante atira no czar. Um ativista volta de Genebra com um mandato para organizar uma sociedade secreta. Eles matam um dos membros que decide abandonar o grupo. Passam mujiques levando machados/ Algo terrível vai acontecer - ouve.

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segunda-feira, janeiro 07, 2013


Na casa de chá

Uma tarde muito quente, sentamos em uma casa de chá e ficamos observando as flores e ouvindo os passarinhos da praça em frente. Nós estávamos trabalhando na abertura da Avenida Farrapos na capital, e eu vinha mostrar a serra ao meu colega. O movimento surpreendia para uma segunda-feira: os moradores da cidade vinham em busca do pão caseiro, das cucas e pastéis para um chá da tarde, e os forasteiros, mais em busca dos doces artesanais.  A dona, uma senhora gorda, loira e de grandes olhos azuis, apareceu para recolher louças, e meu amigo começou a perguntar algo; logo começamos uma boa conversa:

- Essa casa começou com meu pai. Eles passaram muito trabalho como colonos e ele queria uma função mais adequada para minha mãe - expliquei que os primeiros alemães haviam chegado há cem anos. Eles se orgulhavam da biblioteca pública, da faculdade e de não haver analfabetos na cidade. Tinham até um banco dos moradores. Ela continuou - Tanta gente interessante já veio aqui. Tem gente importante que sempre volta, clientes que param na cidade para tomar um café e comer uma torta.

Comentamos da cidade, de como era florida, calma e agradável. (Eu percebia que ela olhava para os lados, mas ficou tranquila quando viu que os funcionários davam conta dos clientes). Falamos sobre o crescimento inevitável, do nosso trabalho, que, planejado desde 1914, só saía agora, sobre Jango e os novos espigões da capital.

- Que horror, fujo de cidade grande! Se eu pudesse ia para o fundão onde morava minha mãe! E essa coisa de construção... Lembro de um senhor que veio aqui há alguns anos... Ele trabalhava na modernização do presídio – iam criar um controle dos presos que entravam e saíam. Isso porque eles viviam transferindo presos de um lado pro outro, e onde saíam dez, chegavam oito... e quem diz? Não se conseguia fazer! Peixe grande ia perder... Depois ele trabalhou nas estradas. Iam fazer o mesmo para controlar os contrabandos nos postos... “O senhor veja, veja que todo funcionário aqui tem carro. O senhor acha que isso vem do salário deles? Não, temos de demorar uns anos pro pessoal se adaptar, senão não sai projeto nenhum” – disse o responsável. Segundo ele, levou 10 anos. Ele contou que estava em uma reunião com quatro vereadores e um deles por nada queria aceitar o projeto. Outro disse: “Liga logo pro teu capo e pergunta o que ele quer. Vai que o cara te apaga”. Falou assim, na frente de todo mundo!  Acabaram diluindo o tal “controle”. Dizem que os comunistas querem tomar o Brasil, mas eu te digo, quando o Jango fala de reformar o sistema penitenciário... O Jango é estancieiro! O senhor sabia que “eles”, “eles” querem vender o banco do estado? Dar, eles querem dar de graça!

Ela pediu licença e saiu com um sorriso. Comemos nossas tortas de morango um pouco melancólicos e pensando que são surpreendentes os homens. 

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domingo, janeiro 06, 2013


No cemitério

Fazia mais de uma década que eu não retornava à minha cidade natal. Eu chegava à frente desse túmulo com um misto de reverência e nostalgia. João Fernando Peixoto de Andrade, escrito na pedra. Uma inteligência brilhante, um homem que poderia, como se dizia à época, ser de “Estado”. Seu sobrinho, ao meu lado, me guiara até ali.

Aposentei-me como advogado, mas na época de minha juventude servira como soldado. Durante os anos de nossa adolescência, fôramos amigos inseparáveis, mais que irmãos. Descortinava-se para nós o nome de filósofos antigos, de literatos franceses, nos quais um introduzia o outro com frenesi, e discutíamos até mesmo o ocultismo, a sociologia e o positivismo, e as seitas herméticas e pitagóricas. Ele tratava com pessoas de todas as classes com eloquência e simplicidade dignas de um diplomata. Conhecia tudo e demonstrava modéstia que encantava a todos – no íntimo, eu pensava que não era páreo para ele, e sofria por meu orgulho em não admitir publicamente sua superioridade. Escrevíamos poemas, Lamartine, de Nerval, Apollinaire e Verlaine esquentavam nosso sangue juvenil. Quantas vezes chegamos a dormir encostados para fugir ao frio das noites nos capões, depois de uma caçada ou pescaria, enquanto nossas roupas secavam ao fogo.

Ambos entramos no exército na mesma época. Ele, condecorado por bravura em seguida, logo já tinha sua cota de maragatos mortos. Eu seguia sem volúpia minha vida de soldado raso. O destino quis que ele se tornasse meu superior, bem na época em que eu casava com uma moça escolhida por minha família, mas que me deixou contente. Eu mesmo tratei minha esposa como um cavalo faminto, talvez por uma educação demasiado puritana e uma juventude toda de freios curtos, e ela, apesar do interesse inicial, logo me pareceu fechar-se e esconder algum segredo. Entretanto, na minha imaturidade, achava até indecoroso tentar desvendar as tristezas do coração feminino, às claras, não tendo sequer paciência para isso. Eu procurei meu amigo assim que a novidade do casamento passou, pois sempre me vinham à mente nossos bons momentos, mas ele se tornara frio e distante.

No trabalho, reprendia com severidade meus erros comezinhos e chegou a me humilhar na frente do batalhão. No início, porém, essa brutalidade era temperada ora com uma discussão sobre Wagner, ora com o comentário sobre uma nova crítica ou livro de beleza sublime (fomos uns dos primeiros a ler Proust, ainda em francês, e se discutia se seria reflexo de um esnobismo decadente ou o maior romance da literatura do século). Mas, por vezes, eu o via olhando-me com uma dureza assustadora. Pensava se isso não se devia ao seu leito frio, mas não tinha coragem de tocar no assunto. Percebi que cheirava à uísque pelo menos uma vez por semana. Eu o vi dar socos e bater a cabeça na parede, numa madrugada, chorar bêbado como um miserável no canto do banheiro, e, certa vez, tive de defender um pobre cão de sua violência. Começara a me interessar pelo violino (somente minha total falta de talento me faria desistir finalmente) e pelos casos sensacionais e polêmicos do tribunal - minha paixão se acendia, obliterando todo o resto. Minha mulher cedo contraiu uma doença que exigia constantes cuidados e minha alma se tornava também instável e sombria.

Certa vez, por um descuido meu, a vida de colegas foi quase posta em risco, mas eles mesmos tomaram isso como falha de avaliação ou percepção confusa; enquanto meu general puniu-me gravemente condenando-me a um mês de solitária, segundo se disse, instigado pelo meu “amigo”. A partir daí foram inúmeras as armadilhas em que me meteu, e eu passei a viver desnorteado, sem saber direito em quem confiar e onde pisar. Percebi também em mim um pensamento mórbido e obsessivo por sua pessoa – quais os motivos, como essa transformação se dera, onde eu errava e onde ela erraria? Sua foto nunca deixou de adornar minha cômoda, como a de um modelo de erudição e linguajar elegante, o que irritava sobremaneira minha mulher. Por fim, abandonei meu serviço, passando a morar novamente na cidade vizinha com meus pais, o que durou um ano.

Em breve, minha esposa veio a falecer, e achei-me em negra desgraça - pois, como me diziam, uma casa sem descendência é como um capim seco – sombra apenas amenizada pelo estudo infatigável das leis. (Mais tarde adotaria duas crianças, filhas do meu empregado). Além disso, nas noites, insone, dizia para mim mesmo que nunca amara essa mulher verdadeiramente, mas fora o tempo todo egoísta e inacessível. Quanto ao nosso homem, quanto mais subia, mais amargo e cruel a todos se mostrava, e parece ter repetido aquela forma de agir; uma conspiração sua logo foi descoberta, tendo sido expulso da companhia. Ouvi agora que João foi morar numa casinha num mato e viveu pobremente (a criação de um tipo de cão grande de caça parece ter sido sua renda e, talvez, algum contrabando), muito solitário, arrastado pela bebida, até seus últimos dias. Pelo menos uma vez por semana, tiros eram disparados no lago vizinho, assustando à todos.

- Que estranhas emoções se aninham nos corações humanos, quantas cavernas escuras – disse o sobrinho. Encontrei três cadernos grossos cheios de sonetos na sua tapera rude, dedicados ao senhor. Apesar do ódio, prevaleceram as lembranças de ensolaradas conversas sobre as possibilidades de uma vida a ser escrita – disse, entregando-me o material ricamente encadernado. Eu sentia o mesmo, assim como um incompreensível remorso. 

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