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quarta-feira, janeiro 29, 2014

As coisas em Utah

Por algum motivo o mórmon ao meu lado no ônibus não estava acompanhado de um amigo brasileiro e, na escuridão, parecia pender sua cabeça para meu lado um pouco mais do que o recomendado por Joseph Smith. Ao fechar os olhos, a imagem que saltou em minha mente foi a de uma cobra de duas cabeças que eu vira no Museu Zoobiológico ou algo assim há anos na praia.

Minha memória involuntária voltou ao tempo em que o Tonho, meu irmão pré-adolescente, decidiu converter dois mórmons ao ateísmo na sala de visitas, atrapalhando a novela Terra Nostra da nossa segunda avó, a Dada, que mantinha a elegância com um prato de biscoitos e chá mate, e minha irmã montando castelos de areia no chão. Isso durou uns três meses, e ficou provado que, caso meu irmão tivesse nascido na Grécia clássica, nunca ninguém teria ouvido falar de Demóstenes.

Muitos anos depois, na época da faculdade, eu ia a feiras de literatura ler poesia para o público de estudantes e professores. Muitos gostavam, acenavam de dentro das barracas de livros, alguns até paravam de tentar comprar Harry Potter e trocar seus vales-livro, mas um mórmon olhava fixamente sem quase se mexer. Quando acabou ele chegou perto, tentei falar em inglês, descobri que não podem, descobri que vivia sem rumo nos Estados Unidos, tudo era sem graça, tinha virado alcoólatra, a vida na Igreja era dura, mas tinha um sentido. Sentamos na beira do palco – incomodados por uma mosca albina - e conversamos uns vinte minutos, perguntei se conhecia Whitman? Poe? Baudelaire? nem ousando os brasileiros, não conhecia mas iria procurar. Chegou o carro que iria me levar, ele sorriu e me estendeu a mão, feliz. Um dia, vá conhecer as montanhas de Utah.

O rapaz ao meu lado roncava próximo demais de mim, eu não ia conseguir dormir mesmo, eu pensava que em Utah as coisas deviam ser diferentes. 

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