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sábado, abril 04, 2015

Entrevista - trecho do livro "Canções para Dias Difíceis"


- Tudo bem?
- Boa pergunta.
- (rindo) Um estilo punk?
- Punk zen. (risos)
- Vamos começar pelos seus livros queridos.
- Sim. Um deles tinha capa verde, lembro bem, enorme, capa dura.
- Verde como?
- Acho que as coisas mais importantes a dizer sobre os velhos livros... É sobre o prazer intenso, sobre a transformação que provocam. Em certo momento, talvez os escritores perceberam que tudo era unificador, universalizante, eram os sistemas científicos positivistas, o poder absoluto dos reis e depois das corporações, etc. Proust para mim pode ser o surgimento do particular, e, ao mesmo tempo, do fluxo. Esse projeto moderno imagina também o que agora o por que agora: o que pode ser literatura quando tudo tem uma utilidade, quando a linguagem se empobreceu e estagnou... Os Shakespeare, velhos, vermelhos, me mostraram a deliciosa terra da imaginação. Os russos, amarronzados, lembrando uma tradição secular, mostravam um mundo injusto, um sentido ético, uma consciência sobre os sentimentos e hábitos, que é o que nos falta. Só Clarice era luz pura, puro enraizar-se, pura terra úmida, delicada retirada da pele, novinha em folha. Woolf... não lembro. Talvez porque eu seja Woolf.
- Algumas pessoas acham pedante falar desses livros hoje.
- É porque nossa elite se fechou sobre si mesma. O projeto de que nada será de graça, de que vencem as raças superiores, de que aqueles que não tem transporte, nem saúde, nem habitação, merecem isso porque seu trabalho não têm mesmo valor... esse projeto é contrário ao literário, para quem a moça nordestina com olhar perdido, uma flor, uma rua, tudo é parte de uma sinfonia brilhante e fala. Para excluir constantemente os "diferentes" precisamos de uma polícia forte e de pessoas sem identidade, sem reflexão.
Na adolescência, a biblioteca de sua casa tinha o quê?
- Eu não li muito. Minha mãe trabalhou como funcionária pública, bem na era em que tudo que é público é visto como "obstáculo à competição". O que é competitivo é sempre estrangeiro e não importa se as pessoas ficarão sem emprego, como no Iraque. Mas, retomando... Havia 100 mil livros na biblioteca do banco federal. Depois, para evitar gastos, foi fechada. Adorava caminhar pelos livros e a madeira antiga. Eu, no fundo, era um adolescente solitário, sem muitos amigos de verdade, só que tive oportunidade de mergulhar em oceanos anteriores à tudo, conversar com esses fantasmas sinceros.
- Ainda hoje?
- Você sabe como é São Paulo. É preciso dizer não. De repente você está numa multidão, cercado de prédios decadentes, ou caminhar até o centro num domingo parece passar por um campo de refugiados. Minha imagem de mim mesmo é caminhando, cruzando a cidade, um parque, um campo. E, lutar muito para criar o mapa, com o recolhimento.
- Mas quais...
Acho que disse isso em outro lugar. Grandes, clássicos, fortes. Se ficamos apenas no jogo exterior, no corpo, nas ações de comer e pegar comida, algo se desfaz. Por que será que, de tempos em tempos, os gregos tinham que por uma máscara, sair das regras sociais, falar com a voz dos outros, acreditar que eram transpassados por vozes e energias do cosmos? A transformação revitaliza a sociedade. Muda as formas de pensar. O mais importante foi a imensa luz na torre, Sodoma, Ana Karenina, o crime da machadinha... Não muito mais. Pelo menos nesse intervalo entre ser reprovado no vestibular e tentar de novo. Mas voltando ao início... Lembro que eu tinha quatorze, estava num hotel perto de uma famosa cascata em Gramado com minha avó. Eu estava lendo a República, minha avó achava que eu era estranho.
- A avó que você diz "aristocrática", fazendeira?
- Digamos que sim. Para mim, era o lar, o cheiro de bolo (era doceira), tinha medo. Herdeira. Da alma melancólica e pesada, digna, altiva. Quando, adolescente, fui para Berlim... Berlim nessa época ainda não era vista como um centro internacional de cultura ou cidade verde, eu, pelo menos tinha a sensação de uma cidade em reflexão, tentando entender o que significava a queda do muro, mesmo um tempo depois. Descobri minha avó um pouco por lá. Estava no Aquarium e encontrei uma senhora parecida com ela. O mesmo coração. Era uma serenidade, uma máscara, mas perfeitamente funcional no mundo. Ouvi na igreja Kaiser-Wilhelm um Monteverdi e lembrei dela também. Eu sou muito mais esparramado, desatento, preguiçoso, mesmo ler precisa do dia certo, em que o sangue dorme, sou pedra e lama; sua ordem e disciplina, luz e força, carinho frio, um oposto complementar. Ela entrou em depressão quando minha tia – uma amidade de quarenta anos – quando ela morreu, anos depois. Sentada em um banco comigo aguardando o corpo, pela primeira vez deixou rachar a superfície: merda de vida, disse. São as pessoas que me conheceram de verdade.
- Pesado, heim?
- É a vida e tudo que fazemos dela. "Ela virou escrita", como disse alguém.
- E no entanto, você sempre reagiu a...
- Gosto da visão grega antiga, onde tudo era mudança. A identidade era importante no século XVIII para fugir da soberania do rei; para que serve uma identidade hoje?
- E o teatro...
- Isso é o que Shakespeare pode fazer a uma pessoa. Quando você lê um texto, não vai julgar como julga no mundo real: não podemos aceitar tudo, mas no texto, sim, e os personagens mais demoníacos são aqueles de quem mais gostamos. Escrevo teatro desde os quinze anos, talvez não seja bom, mas escrevo. Quando cheguei em São Paulo... pareceu-me que tudo é muito realista. Realismo quebrado, mas realista. Eu fui indo para coisas narrativas em 2007, depois estados da mente, foi natural, coisas que eu li, mapas da mente. As pessoas diziam... nada agradava ...que não tinha conflito, não entendiam o lugar, o enredo. Não gostavam, pensava, será que eu perdi a relevância, a varinha de condão? Terrível. Mas depois, percebi que nada tinha a ver comigo.
- Essa é uma autoficção autobiográfica?
- Sim, mas verdadeira.
- Eu li uma crônica sua na qual contava sobre um mago que conheceu na Inglaterra...
- É verdade. Nos conhecemos um uma festa. Ele usava dreads vermelhos, mas já tinha seus 50 anos. Uma capa de couro preto. Ele mal me viu e falou que eu deveria ser astrólogo, dançarino, pintor ou colecionador de antiguidades. Eu poderia mesmo ser qualquer dessas coisas. Como eu conto no texto, atravessamos a cidade em meio a fog, ele falando das mulheres que conquistou e conquistando algumas. Era culto e herdeiro de uma indústria. Ele disse: "Você tem o pensamento cósmico. Parece ter viajado o mundo". Fiquei com isso na cabeça. Nunca tive propriamente a sensação de saber perfeitamente para onde estava indo.
- Seu trabalho já foi dito experimental e, paradoxalmente, classicista e parnasiano. Como vê isso?
- Eu andei namorando Borges, mas estaos na era do clichê, "o que ninguém é é obrigado". Não tenho, nem deveria ter opinião à respeito. Muito ocorreu no século XX, um arcaico que era o contemporâneo. Dizem também que quando Leminski mostrou pela primeira vez seu livro Catatau para os amigos eles disseram: você é um bandido que sabe latim. Eu não sei, mas acho a frase ótima. Veja, se você não tem dinheiro de berço, acaba sendo um observador, luta por palavras estranhas, imcômodos, e tem que achar seu jeito de ser, para não ser levado pelas modas. É o mundo do estado de emergência, calamidade pública, como se disse. É a tensão brasileira em ser totalmente marginal e rebelde e lutar por uma herança que é e não é nossa.
- Vamos falar do conto "Parmênides", onde você fala de psicologia arquetípica.
- Brinco, melhor dizer que eu brinco com. Da modernidade, herdamos uma proposta estética que é "criar as regras pelas quais se cria", ou seja, toda proposta é uma proposta de possiilidade da linguagem, juntar de forma nova as velhas palavras revelando o olho que olha. A teoria de Hillman é provavelmente fantástica e séria, mas pra mim sempre teve um sentido de materializar e racionalizar o movimento junguiano de questionar o positivismo. Não sei se Jung estava certo, mas tem coisas incríveis no fato de você arriscar um salto na metafísica. O que será a realidade? É preciso continuar buscando.
Por que escrever? Por que a arte?
Será que é porque é a única coisa que não tem definição? A humanidade está morrendo por falta de aparelho de pensar, de papa para pensar, de pensamentos de igualdade, e por causa de mecanismos econômicos que podem mesmo acabar com a natureza. Sabe, talvez o mergulho numa outra consciência ajude na tolerância para diálogo: a incapacidade de entender outra lógica, a autocomplacência com nossa suposta superioridade, nosso discurso organizador, pode levar ajudar até no que pode ser a lei maior do capitalismo doente, o darwinismo social, a competição histérica e a exclusão do "fraco": a guerra para abrir mercados pode vir de um sentimento: Eles eram uma raça inferior, Eles não entendem a democracia, Eles gostam de empresas públicas ineficientes e corruptas, Eles tinham medo que suas empresas fracassassem diante da competição estrangeira, Vencem os melhores é uma lei biológica.
- Mas isso não seria do campo da filosofia? Você já foi acusado de ser filosófico demais.
- A escrita nada tem de pessoal. Ele, esse sujeito autor, pode ler sobre filosofia do Renascimento e depois passar meses sem vontade de nada, ou lendo romances policiais e vendo filmes. Por isso o trabalho da criação não deve ser visto do ponto de vista comercial, como tudo hoje em dia. A vida de um artista não segue aquela linha comum, um crescendo em direção à carros, viagens e casa, mas pode parecer ociosa até que um texto resume e significa tudo. Não é comum, mas devia ser, talvez, fazer a biografia dos livros lidos, onde se viveu de verdade. Vivemos uma época de empobrecimento extremo do pensar, a ponto de ter de reensinar a ler, pensar freia, e pegamos a primeira coisa que propõe uma lógica, aceitamos os fundamentalismos midiáticos e religiosos sem confronto. Chego a pensar que deveríamos afastar com rigor tudo que nos afasta de uma construção subjetiva - porque é a única riqueza perene, a raiz profunda.
(...)

Afonso Jr. Ferreira de Lima



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