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sábado, outubro 14, 2017

Sobre fascismos e heranças


O cancelamento da exposição contra a homofobia e o boicote contra o blackface numa peça são a mesma coisa?

Nós só podemos pensar assim porque nunca fomos parados pela polícia, discriminados em uma loja ou perdemos um papel por causa da pele.
As questões são opostas: 1) como um grupo no século XXI deixa passar essa (fiquei chocado quando vi o personagem de uma empregada com o rosto pintado de preto) X como o conservadorismo ainda vê a arte como deformadora social ou pedagoga como no século XIX.

É como se todo personagem brasileiro fosse Jeca Tatu, toda mulher burra ou todo latino traficante. Aquilo que aprendemos entre iguais será questionando quando diferentes fazem parte da sociedade, mas o oposto é o fascismo.
Não havia nem um toque de ironia na peça: o personagem podia dizer assim: vou pintar meu rosto de preto porque esse é o lugar de um negro numa sociedade racista.

Penso assim: o conhecimento sobre a máscara negra na commédia dell arte é bem específico. Eu por exemplo, só tenho como referências o que me fez pensar: meus zeus, por que a empregada tem de ser negra?
O negócio é que na cultura existe esse dado herdado de racismo sando esse símbolo.
Não adiantaria apenas dizer: vou usar suástica porque na minha opinião não é antissemitismo.
A questão é, como esse debate não chegou até a esfera pública?
Outra questão: se você me disser que algo que eu fiz te ofende, pedirei desculpa. Isso significa que você é alguém, que seu ponto de vista é válido.
Mas por que eu poderia dizer: não, não é isso?

Outra coisa é a censura com a invasão da exposição no espaço cultural do banco. A arte, depois de anos de autonomia estética, recusando-se a retratar a elite, o passado heroico, o sagrado e depois algo além da própria imaginação, volta a buscar diálogo com o político e o histórico. E os preconceitos nunca questionados se tornam fomento para raiva punitiva. A arte contemporânea exige um contexto histórico: ou um mictório seria só um mictório. O que a ditadura fez: núcleos de pensamento em mares de desconhecimento. Uma vanguarda cosmopolita num cosmos de repressão. A revista M do jornal Le Monde publicou sobre os casos em Porto Alegre e no Rio:

“A interpretação singular destes trabalhos artísticos é o resultado de uma campanha promovida por grupos ultraconservadores onde se encontra arraigado o prefeito do Rio de Janeiro”, analisa a revista. “Na origem disso, um vídeo, filmado por um visitante da exposição patrocinada pelo banco Santander em Porto Alegre (...). Visto mais de um milhão de vezes, o filme amador ‘Exposição criminosa, Santander criminoso’ mostra as obras acompanhadas de comentários como ‘que porcaria’ ou ‘depois de destruírem o gênero, eles atacam a família". 
http://br.rfi.fr/brasil/20171013-censura-no-brasil-e-apoiada-por-extrema-direita-nostalgica-dos-militares-diz-revista

Como reagir? Em 1936, a Frente Popular, eleita na França baniu as ligas fascistas. E nós? A própria estrutura segregacionista de cidade e do modelo (bairros-bolha, sem espaço público, sem educação, sem mídia alternativa) forma essas ilhas conservadoras em que "posição" é incentivo ao ódio, preconceito e raiva do privilegiado. "Expressão" não pode ser recusar o mundo moderno.

Através da ação penal 470, que recebeu a marca de "mensalão", criou-se a revolta moralista que tirou a esquerda do jogo no Congresso e prefeituras. Mesmo eleita, Dilma ficou inoperante. O outro fim do estado vem agora. O que parece mais louco nesse boicote é que a indignação é sobre "a sociedade financiar coisas que ela não aprecia" (justamente, a sociedade já avançou e quer reconhecimento e a exposição estava recebendo em torno de 700 pessoas por dia numa cidade de 1 milhão e 500 mil pessoas). Se as discussões sobre direitos humanos e arte não chegaram ao grande público foi justamente por falta de poder público, organização e planejamento (a arte é fomento, divulgação, educação). 

Se o "dinheiro público" é usado é justamente porque estender as bases de uma República, tolerância, diálogo e reflexão, somente é possível através de um "interesse geral" e não privado (deixemos de lado aqui a questão da Lei Rouanet ser renúncia fiscal como marketing das empresas). É aí que eles entram. Retirando-se o governo, ficam apenas os que podem mais e os que podem menos e seus ódios paroquiais. Os herdeiros em posições de comando, que estão lá por oportunidade e não por excelência, numa sociedade injusta, vão nos governar. Acaba a República.

Afonso Jr. Lima 






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