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quarta-feira, dezembro 13, 2017

K, o flâneur

K é um fantasma. Ele deveria ter uma meta, já que é personagem. Ele deveria ter obstáculos. 

K. circula pela avenida do cemitério. Os ossos foram enterrados sob a nova loja. Um acordo com a prefeitura. São fantasmas que ficam nas escadas rolantes. 

Presos na colônia penal. Sempre achava cômico a justiça como engrenagem de tortura. "O condenado era o mais animado, tudo na máquina o interessava". Condenado sem saber por que. 

K fica parado numa avenida, luzes, a pedra da margem, aguardando o fluxo de carros que não vai parar só porque tem uma faixa de pedestre. Os fantasmas são educados. 

Ele nasceu no gueto, a língua é outra lá fora. O herdeiro se mata, a imperatriz assassinada, o herdeiro assassinado. Ele conhecia o tempo morno e perigoso da espera. Ele quer jogar e viver a mesma vida de modo diferente todo dia. 

K foi ver a promoção do supermercado, euforia. A moça do caixa conversa sobre a nova lei do trabalho, diz que vai enlouquecer se contar dinheiro das dez da manhã às dez da noite. 

Ele gostava de pensar sobre o que se vê, mas não se entende. Ele pensa que é preciso não entender. Todos já pensaram em tudo pra você. A lei é apenas um horror a mais. 

O terceiro ato acaba sem conclusões. Ninguém melhorou. Ele também não aprendeu. Ele não sabe se, no fundo, eles não estão certos, a lógica implacável, a doutrina impecável, crescer e avançar, ele só sabe que o que pode é seguir sendo o que é. 

K vê o vidro subindo até o céu, as luzes na fachada, palmeiras, o jardim japonês, uma escultura decorada com luzes. K senta no teatro e observa as cadeiras vazias, o show vai começar. O protagonista é ruim, mas bonito. O rapaz atrás dele diz para a namorada que quer ir embora.

O maior dos pensadores, à golpes de martelo, como o burguês vitoriano comum, despreza o homem comum. Os "bem-nascidos", orgulhosos de si mesmos, desprezando a moral da compaixão, o desprezo e ironia do poderoso. 

O advogado K. Ele já era um fantasma antes de morrer. Lembra do enterro do avô, o castelo no monte. Ele sentia que Madame Bovary era ele, numa vida cinzenta. Ele pediu demissão por não poder escrever. 

K conta os famintos miseráveis pelo trajeto: na escada do metrô, sem sapatos na frente do supermercado, enrolado com um pano branco como uma lagarta, só de calção e com as costas curvadas por uma deficiência, com calças em farramos e cabelo desgrenhado e branco, etc. etc.

A cidade é feia, a cidade é a estrutura monstro, a cidade é construída pelo absurdo. "O que são os perigos da floresta e da savana comparados com os choques diários do mundo civilizado?” Ele já viu isso tudo antes. Está muito cansado. Ele sonha caminhando. 

Afonso Jr. Ferreira de Lima


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