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segunda-feira, fevereiro 05, 2018

A Mansão

Lorde Kevin adorava entrar na mansão como todos os mortais, observando as luzes acesas no andar superior, centralizadas entre as colunas brancas. Ela sempre o esperava na porta. 
- Meu amado! Mais um ano! - o beijou seu corpo frio. 
Sempre gostou da decoração século XVIII da mansão, a madeira das portas, os detalhes dourados do teto, os lustres de diamante. 
Ela fora uma criança que via fantasmas, morava na mansão em decomposição da avó e começou cedo a escrever as histórias que eles lhe contavam nos sonhos. Quando se conheceram, no dia do lançamento de seu primeiro livro sobre vampiros (ele queria tirar essa palavra cafona do dicionário), ela percebeu imediatamente quando olhou nos seus olhos cinzentos. Há vinte anos se encontravam na véspera do dia das bruxas; ela adorava ouvir seus relatos sobre o que viveu, principalmente sobre Roma antiga e Paris nos tumultos de 1848. 
Ela estava interessada em escrever um romance sobre imortais em meio a repressão sangrenta. 
- Oito mil pessoas foram no cemitério de Bordeaux dedicar um monumento a Flora Tristan, feminista falecida quatro anos antes. "A união operária" falava de emancipação das mulheres e união dos oprimidos. Não é fabuloso?
Ele lhe deu detalhes sobre a "boa esposa" esperada por todos, "a ordem e a disciplina que mantinham o calor do lar". 
- O historiador Michelet via a civilização como fruto da luta entre a razão, o espírito, o homem contra a matéria, o oriente e a mulher...
Jantaram na mesa com doze velas e seis cadeiras vagas, a luz branca da lua entrando pelas altas janelas. 
- Você me chama de idealista e romântica... Eu nunca entendi como um ser imortal pode aprovar o materialismo vulgar e a visão de mundo sem valores morais de um Bazárov. O ser humano deve ser apenas um animal - mas pode a humanidade ser estável com muitos animais assim? 
Há anos eles discutiam Turguêniev. Por trás daquilo tudo, o sonho nunca dito dela de morrer para essa vida, sua idealização do assassinato por necessidade, sua busca insana de intensidade. Por isso a amava. 
- Já disse que eu o conheci? Ele era vaidoso, amava uma mulher casada, andava elegantemente por Paris mas eu via seu olhar vazio. Eu o observei. Não podia acreditar na geração fraca dos anos 1840, mergulhados em palavras porque sua Rússia ainda era feudal... Sofria realmente pelos maus tratos que sua mãe impunha aos escravizados. Mas estava chocado com a ideia de que, nesse mundo novo, a glória significaria violência e não beleza. 
- Um jovem apaixonado diz: "Como regra, não se deve sentir saudade das pessoas"... O monstro sempre sofre nos filmes cinzentos. 
A lareira estava acesa, apesar do dia não muito frio. O barulho dos pássaros da noite e do violino. Ela não imaginaria pelo que ele havia passado. 
- Eu devo dizer que todo predador deveria temer pelo fim da humanidade, que seria o fim de sua raça. Sempre acreditei que os mais fortes deviam prevalecer, assim como qualquer aristocrata francês, mas estou vendo que a extinção completa é uma possibilidade. A classe trabalhadora admira aqueles que a desprezam, quer conquistar um aparelho novo, seu ideal é o vencer sozinho. A nova aristocracia não produz mais. Os cálculos são autônomos, não levam a nada senão ao irracional. No fim do plano burguês está um incêndio, quando cada um cuidou do seu jardim e ninguém olhou a tempestade vindo. 
Passearam pelo verde, a estátua de Ártemis no lago cheio de plantas. 
Kevin sentia-se na presença de uma versão feminina de si mesmo, podia ir com ela para a cama, podia fazer seu sangue jorrar por puro desejo de união. E, no entanto, ambos sabiam que isso jamais ocorreria. 
Sentaram no banco de sempre. Ela disse:
- O que eu mais gosto sobre o monstro, é que ele tem um coração ambíguo. 

Afonso Junior Ferreira de Lima

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