Aquela noite eu estava um pouco agitado – comera demais, estava um pouco gripado e não conseguia ficar na cama, ora com frio, ora com calor. Por volta das duas da manhã, levantei. Na cozinha, abri a porta da área; percebi que a janela que dava para o corredor do prédio tinha luz. Quem estaria chegando essa hora? Com toda essa chuva?
Tomei meu copo de água, estava indo dormir, quando percebi que a luz do corredor acendeu novamente. Instintivamente fui até o olho mágico da porta observar.
Uma moça de camiseta branca, cabelo negro e tranças passou pela porta – recuei. Não tinha podido ver seu rosto, estava de cabeça baixa?
Quando eu mudara para um prédio antigo no centro de São Paulo, um mês antes, muitos amigos me consideraram louco. A região estivera muito violenta por um tempo, e os preços baixaram. Dizem que a Prefeitura havia parado de recolher o lixo e prover segurança com o objetivo de degradar a região – surgiam assim planos de “revitalização”, entregando à exploradores privados o direito de desapropiar, demolir, contruir e obter lucro.
Aquela visão despertou algum sentimento estranho em mim. O silêncio do prédio fazia tudo parecer mais esquisito. Ficaria ela no corredor, com todo esse frio? Deitei-me. Percebi que as luzes acenderam algumas vezes, como se alguém estivesse caminhando lá fora. Finalmente, dormi.
Eu acordei com um choro, ou talvez fosse a tosse de alguém. Dormi novamente e, dessa vez despertei com batidas em uma porta, seguidas de soluços, estes sim, de desespero.
O mundo dormia. O sono misturava-se com lembranças de casos terríveis: um ex-namorado matara uma moça por ciúmes; um policial fora baleado e sua namorada estuprada. Eu estava perturbado, talvez pela ideia de só eu estar consciente na escuridão, e tentava me convencer que, simplesmente, uma pessoa esquecera as chaves. Que houvera alguma briga dias antes, uma separação. Que o homem condenara a mulher a vagar por alguma traição. Onde teria ela ido morar?
Como não cessavam as batidas, cheguei a pensar em abrir a porta e chamar por ela. Mas quem seria aquela mulher? Poderia simplesmente lhe servir um chá? E se fosse realmente uma maluca, que houvesse ameaçado o próprio marido ou namorado? De repente, lebro que a vizinha havia comentado sobre uma briga violenta meses atrás. Preferi desistir. Por fim, dormi profundamente.
Aquela foi uma semana agitada. Trabalhando bastante até tarde da noite, esqueci completamente do ocorrido. Mas, uma noite, quando uma tempestade parecia querer varrer todo o cimento de sobre a terra, com um frio lúgubre, ouvi novamente as pancadas fortes em uma porta. Quem seria tão grosseiro de fazer isso depois da uma da manhã?
Abri instintivamente minha porta e olhei pelo corredor. Uma mulher estava de costas para mim, com suas tranças negras, encostada na parede. Eu dei um passo em sua direção, e algo me fez parar, meu sangue gelou. Ela estava virando e, por algum motivo, eu também olhei por cima do ombro, para a escada, como se algo estivesse atrás de mim; e quando mirei novamente, o corredor estava vazio. Desaparecera. Fechei minha porta com um estrondo.
Procurei minha vizinha no outro dia. No prédio, vivera uma moça presa pelo marido dentro de casa. Há mais ou menos seis meses, ela conseguira fugir. Voltara para a casa da mãe. O marido, inconformado, tentara ameaçá-la. Foi morta num suposto assalto quando voltava sozinha por uma estrada de terra.
Passei a dormir muito pouco, assolado por pesadelos. Uma semana depois, fui morar com um amigo.
A. Jr. Lima
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