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quinta-feira, agosto 04, 2016

Narrativa real

Ele subiu no palco, agradeceu e começou seu discurso:

- Hoje será um dia histórico no Brasil.
O processo de usurpação feito por uma casta chega a desmoronar todas as instituições democráticas. 
Para entender isso temos de recorrer à história.

"4.225 pessoas, ou 0,002% da população, com 37% do PIB".
http://www.oxfam.org.br/calculadora

De que forma se construiu essa tomada da Câmara pelos fundamentalistas e setores mais conservadores? Como pode um povo todo assistir assustado a abertura de impedimento contra uma presidenta - parecendo completamente isolados do povo e focados em seus interesses? Como eles inviabilizaram o governo Dilma? Como pode uma só classe dominar Justiça, Mídia e Legislativo? 
Podemos levantar algumas questões...
Existe um conservadorismo que une classes média alta (universitária, proprietária, cujos pais já eram universitários e adquiriram bens) e a classe média baixa (pouco escolarizada, universitarizada aos poucos provavelmente em universidades caça-níqueis). 

Uns, pouco educados para a cidadania, se sentem melhores que "a ralé perigosa" e tem medo de perder com um Estado que tenha que gerir dívidas sociais - temem pela ordem na qual é barato ter um empregado, na  qual "os líderes da nação" decidem sozinhos, na qual as manchetes de uma mídia ultra-concentrada chegam para confirmar a irresponsabilidade da esquerda, os medos anticomunistas da Guerra Fria e o medo das mudanças. 
Dentro dessa classe existe mesmo um grupo cosmopolita, à favor dos direitos humanos, defensor do verde e dos indígenas, mas que, incapaz de ver o todo, quer acreditar que a "social-democracia" vendida pela centro-direita já cumpriu ou está em vias de cumprir a justiça social. 

O mais surpreendente é que exista um grupo conservador de pessoas de poder aquisitivo inferior, em geral ligado às Igrejas Evangélicas Fundamentalistas, que recentemente têm feito a ligação entre "comunismo", "satanismo" e PT. São cerca de 40 milhões de evangélicos hoje, no Brasil. Os maiores líderes, que cobram dízimo para continuar alugando canais na TV, começaram a se chocar com o PT por pautas que pouco têm a ver com distribuição de renda: combate à homofobia e direito ao aborto, por exemplo. 

É dito que essa Teologia da Prosperidade chegou ao Brasil através de missionários americanos para combater a Teologia da Libertação. Nos conselhos municipais, nas Câmaras municipais e Assembleias dos estados, até em grupos de voluntários dos hospitais esse público está assumindo postos de poder - potencialmente defendendo ideias baseadas em senso comum, sem o peso da crítica estabelecida pela racionalidade moderna, como a Escola Sem Partido (na verdade, censura ao direito do professor, para que os alunos apenas saibam o que os pais sabem). 

Lembrar - "A decisão de proibir o kit gay saiu imediatamente depois da Bancada Evangélica anunciar uma série de sanções contra o governo em protesto a proposta. Confira abaixo:
Saída do Ministro da Educação; CPI para apurar denúncias de irregularidades no MEC; Obstrução de todas votações do plenario;
Convocação do Ministro da Casa Civil, Palocci nas comissões, para dar explicações sobre o estampado na mídia;
Convocação do Ministro Fernando Haddad, na Comissão de Educação e Cultura, para explicar as cartilhas sobre homofobia;"
(Gospel Prime)

Aqui chegamos a um grupo de esquerda crítico da esquerda, que nasceu por volta de 1980, ou seja, não viveu a ditadura e chega à universidade durante o governo do PT. Suas críticas duras aos acordos da esquerda são válidas, mas esquecem, de modo geral, a quase impossível tarefa de reformar dentro de um sistema corrompido de cima a baixo. Essa geração viveu como criança as privatizações, os ajustes, a presença do FMI nos anos 1990. Isso mostra a força de um grupo pequeno, mas sintonizado com as questões do mundo contemporâneo; o perigo é esquecer todas as outras forças que constituem a democracia frágil. 

Frágil porque, ainda que tenhamos conquistado leis trabalhistas e evitado que o Brasil se tornasse uma grande plantação de café com crianças trabalhando nas fábricas (nos anos 1930), que tenhamos tido a introdução de demandas trabalhistas e do campo na arena política nos anos 1960 (por exemplo o 13º salário e aumento do salário mínimo), que tenhamos vencido a censura e a repressão e construído um projeto de diminuição da desigualdade (nos anos 1970 e 1980), ainda permanece a falta de transparência, a pouca participação popular, a desconsideração pela pluralidade e o Parlamento como oligarquia encastelada.

Nesse tempo em que o PT (oriundo da união da academia com o sindicalismo) tentou gerenciar os interesses do mercado financeiro, dos ruralistas, da bancada fundamentalista, houve "pouco índio, pouco sem-terra, pouco LGBT"... Mas acho sempre estranho que tanta gente culpe o PT por tudo, quando na verdade a população continuou votando no PMDB. 
2010 - “O presidente está sendo chantageado pelo Sarney para vir pedir votos para sua filha, ameaçando deixar a presidência do Senado e entregá-la para o senador tucano Marconi Perilo, um grande adversário de Lula”, disse Zé Reinaldo.
http://jornalpequeno.com.br/

Existe algo muito perigoso nesse sistema de presidencialismo de coalizão; o executivo não é eleito pelo parlamento, mas são 27 partidos na Câmara - muitos deles, "de aluguel", ou seja votam com quem dá mais. O governo oferece cargos, a "oposição" conservadora, um futuro sem amarras. Alguém olha as leis a serem aprovadas, procura as empresas, consegue o dinheiro, elege deputados e vira presidente da Câmara. 
Diz Noblat sobre Eduardo Cunha: 
"Se o voto fosse secreto, até mesmo os maiores desafetos de Cunha admitem que ele acabaria preservando seu mandato. Cunha tem seguidores em todos os partidos. E muitos lhe devem milionários favores."

A “Rainha da Motosserra”, Kátia Abreu, com dignidade surpreendente, não deixa pedra sobre pedra na Comissão do Impeachment no Senado, e desmascara que "o julgamento" é uma usurpação oligárquica. "O vingativo presidente da Câmara, que, no mesmo dia em que o partido da presidente negou os 3 votos para salvá-lo da comissão de ética, abriu o processo de impeachment"...

Conforme Antônio Augusto de Queiroz, diretor de Documentação do Diap:

"Em resumo, foram os custos de campanha, as coligações sem lógica ideológica e/ou programáticas, os motes moralistas dos meios de comunicação e da classe média, as cruzadas religiosas, especialmente contra a emancipação das mulheres e dos movimentos LGBT, e os programas de rádio e televisão com caráter policialesco, com ênfase na redução da maioridade penal, que levaram a uma onda de conservadorismo que resultou na eleição de um dos Congressos mais atrasados do período pós-redemocratização."
http://www.diap.org.br/

Concentração, oligarquia. Vejamos o caso da informação, aguardando regulamentação desde 1988, com entre 50 e 80 parlamentares donos de redes de comunicação (contrariando a Constituição), com empresas que passaram a justificar a ilegalidade e encobrir políticos aliados ou favoráveis a destituição de um grupo que contrariava seus interesses. 

Glenn Greenwald: "Há muito tempo, o quinto país mais populoso do mundo é dominado por um número reduzido de veículos de comunicação, dos quais a grande maioria apoiou o golpe de 1964 e os 21 anos da violenta ditadura de direita que se seguiram. 
Essas instituições ainda pertencem às mesmas cinco famílias extremamente ricas e poderosas que tiveram um papel central nesse período. Em um país de tamanha diversidade  e pluralidade, esse monopólio resultou em um mercado de comunicação que asfixia a diversidade e a pluralidade de opiniões."
https://theintercept.com/2016/08/02/welcome-to-the-intercept-brasil/

Mesmo tímidas, as ações do PT mostravam que nem tudo estava dominado: "Ministro vai iniciar debate sobre regulação da mídia em março" (Folha - 21/01/2015).

A imprensa escrita (Folhastão) - diferente da teledoutrinação do Sistema GloboBand - começou rapidamente a tentar livrar-se da alCunha de golpista e criticar excessos da gestão interina. Com certeza, ao invés do coronelismo do PMDB, com cara feia de autoritarismo, é muito mais viável um governo do PSDB, no qual trata-se de o mercado financeiro gerindo a economia, privatização sem limites e endividamento com FMI, e que tem o cuidado de apagar incêndios rebeldes (mas a repressão policial ilegal à manifestações tem mostrado um caminho claro), administra gastos no social para um mínimo sem revolta (mas os cortes na educação e cultura mostram que se pode avançar) e sabe manter a capa de legalidade, enquanto usa a máquina na Assembleia para barrar CPIs. Infelizmente, a população percebe cada vez mais que a "insustentável crise" podia ser pior. E foi.

A Justiça tem tido papel fundamental nessa processo.
O governo do PT deu poder às instâncias de controle social:
"fortalecimento, modernização e independência da Polícia Federal; autonomia do Ministério Público, com o Procurador-Geral da República sendo escolhido pela própria categoria, em votação direta, e não mais por decisão pessoal do presidente da República".
http://www.pt.org.br/governos-do-pt-promoveram-maior-numero-de-acoes-de-combate-a-corrupcao-no-brasil/

Infelizmente, sendo o sistema judiciário composto por uma classe média (uma boa profissão para se subir na vida), muitas vezes tem defendido pautas reacionárias - com honradas exceções. 
Em São Paulo, por exemplo, uma juíza foi contra as ciclovias, o Ministério Público parece sempre achar novas formas de acusar o prefeito de esquerda por "crimes" como abrir a Avenida Paulista ao passeio de pedestres nos domingos. O direito de propriedade é o centro da lei - inclusive o direito ao carro. O Estatuto das Cidades aguarda há mais de dez anos sua implementação; as pessoas sem casa ocupam áreas para forçar negociação; a Justiça manda a polícia em cima delas, como fez com os estudantes que lutavam contra os cortes na educação ocupando a Assembleia e Centro Paula Souza. 
Como afirma o jornalista Miguel do Rosário: 

"Não é mais a acusação que precisa trazer elementos comprobatórios para manter um cidadão brasileiro confinado entre quatro paredes. Agora é o cidadão que precisa provar ao juiz que é inocente. Pior, precisa provar ao juiz que não cometerá crimes no futuro! Forçar um cidadão, através da mais insidiosa tortura física, mental e familiar (!), a provar ao juiz que não mais pecará! Só a delação salva!" 
http://www.tijolaco.com.br/blog/author/miguel/

A defesa do ex-presidente Lula procurou o advogado Geoffrey Robertson, que encaminhou recurso ao Comitê de Direitos Humanos da ONU contra abuso de poder do juiz Sérgio Moro.

"Lula trouxe seu caso para a ONU porque não é possível haver justiça no Brasil dentro de um sistema como esse. Telefones grampeados, como de sua família e advogados, e áudios vazados para deleite de uma mídia politicamente hostil. O mesmo juiz que invade sua privacidade pode prendê-lo a qualquer momento e daí automaticamente se torna quem irá julgá-lo, decidindo se ele é culpado ou inocente sem um júri. Nenhum juiz na Inglaterra ou na Europa poderia agir dessa forma, ao mesmo tempo como promotor e juiz. Esta é uma grave falha do sistema penal brasileiro."
http://www.brasil247.com/

Para Aldo Fornazieri, Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo: 

"Os juízes do STF estão sob graves suspeitas, pois as gravações dos conspiradores deixam claro que o STF não agiu de forma isenta como guardião da Constituição. Tanto o STF quanto a PGR, no mínimo, omitiram-se e prevaricaram na posse de informações estarrecedoras que detinham."
http://jornalggn.com.br/

Um dos vazamentos foi o de Renan falando que Dilma recebeu o presidente do Supremo Tribunal Federal para discutir a defesa da Constituição, e que ele "só queria saber de aumento"; de fato, ganhou 41% depois do governo interino tomar pose. 

Raúl Zaffaroni, o maior penalista da América Latina: "Não acho que a Mãos Limpas tenha a ver com a Lava Jato. A Mãos Limpas não foi uma tentativa de golpe de Estado."
http://cartamaior.com.br/

Diz o jornalista Luis Nassif:
"Jogo jurídico – depois de inúmeras pressões contra sua parcialidade, o Procurador Geral da República (PGR) Rodrigo Janot esboçou alguma tentativa de isonomia, abrindo ações contra Aécio Neves (do PSDB). Cumpridas as formalidades, nada mais se sabe das investigações. No momento, ele está preocupado com os presentes que Lula e Dilma receberam de dignitários estrangeiros. A delação da Odebrecht exigirá outras estratégias evasivas."
http://jornalggn.com.br/

A luta de classes venceu. O valor de um governo está na esperança que dá ao povo. A concentração de renda sempre ameaça a democracia, mas aqui a esfera pública foi dominada por discursos obscurantistas. Parece que uma classe branca e rica usou a desculpa da corrupção para burlar a eleição. 
Como disse Charles Chaplin, em 1940: "Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!"
Obrigado.


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