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domingo, fevereiro 18, 2018

Bone Man

- Você pode me ouvir?
Ele andava na velocidade da luz.
E apenas começava.
A luz viaja em um ano nove trilhões, quatrocentos e sessenta bilhões e oitocentos milhões de quilômetros.
Era preciso achar um novo planeta. O prazo se esgotava.
A mídia já o chamava de Bone Man. Havia um único efeito colateral. 
Ele perderia suas memórias afetivas, mantendo apenas funções ligadas ao planejamento e ação com a ajuda de implantes e nano-robôs.
Ele tentava escrever o que sabia. Talvez já fosse um monte de clichês e angústias misturados. Talvez já fosse ficção científica. 
"O dinheiro, investido na ciência, produz o progresso" - a frase de Zola era o slogan do presidente. Não se tratava, entretanto de investimento, mas de "liberdade para morrer de fome", como disse um jornalista. Desde que a democracia havia sido abolida, por "motivo de segurança", depois de protestos, todas as universidade "sem utilidade prática" perderam financiamento. Aquelas que focavam nos estudos de humanidades haviam acabado fechadas.
O governo basicamente funcionava como polícia para conter revoltas e como financiador de bancos, em caso de caos no mercado.

A bomba que acabou com Nova Iorque foi apenas a primeira tragédia. 
Tempestades que mataram milhares, a falta de água potável, guerras que geraram uma massa de imigrantes foram usadas para propor as mudanças.

Os prédios antigos do centro foram varridos por condomínios-arranha-céus que se ligavam a cidades na estratosfera e largas avenidas de compras no espaço.
A maioria da população, na agricultura, gerenciada por máquinas, disputa os riachos semi-poluídos para lavar roupa, alimenta-se de insetos e macarrão instantâneo e não tem acesso à remédios, depois do fim do serviço público.
A reforma da educação acabou com "palavras vitimistas". A "nova ecologia" era o principal foco, ou seja, dinheiro para a pesquisa espacial. A física quântica tinha seus mistérios.
"Dizer é inventar". 
Ele começou a esquecer quem eram seus parentes nas transmissões pelo vácuo, até que eles perceberam seu sorriso indiferente. 
Seus sonhos, logo, eram todos com coisas que não conhecia. 
Mas eram pesadelos completos. Ele entrava em áreas subterrâneas de uma casa e via pessoas dormindo ali, entre cadáveres e miseráveis. 
- Você pode me ouvir? - ele dizia.
Alguém vinha atrás dele com uma faca.
Acordava suando.
Todo dia seu corpo gerava movimentos para manter sua função. Ele ia esquecendo até mesmo por que decidira fazer aquilo. 
Ele começou a se sentir aprisionado. Olhava o vazio, o risco que as estrelas formavam no seu correr inédito. Pedaços dele também estavam ficando para trás. 
Ele viu um igual a ele, conversaram.
- O destino, não devia ter aceito. O futuro já aconteceu para você.
O outro desenhou um peixe. Lembrou de sua infância, quando ainda haviam peixes nos lagos. À noite, dormiam abraçados. 
M 101 chegava perto, um buraco negro de 20 milhões de sóis dentro dela, mas não estava engolindo nada ao seu redor.  
- Você é uma estrela. Esses átomos de alguma forma vivem há 13 bilhões de anos.
Ele abriu a porta. 

Afonso Junior Ferreira de Lima

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