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quarta-feira, fevereiro 15, 2012

Condutor da noite

Não conseguia parar de lembrar. Os trilhos, meu amigo no líquido vermelho, a forma desesperada como seus braços se moviam, como tentava se mover, os gritos.

Por que motivo eu deveria ser o condutor que vinha depois, por quê?

Comecei a sonhar todas as noites. Ora ele gritava do seu lago de sangue, ora eu conversava com ele sobre o que poderia ter evitado aquilo.

- Mas por que motivo nós temos de vistoriar os trilhos com os trens em funcionamento, ele perguntava.

Eu acordava banhado em suor. Meus gritos despertavam minha minha, que mulher começou a se preocupar comigo. Passei a dormir na sala.

Agora já nem mais dormia, com medo dos pesadelos. Caminhava como um fantasma pela casa com um copo de água ou uma cerveja.

Tomava alguns remédios para ir ao trabalho.

- O cara que vinha dirigindo não teve muita opção. Não se pode ver a não ser coisas bem distantes. Ele abaixou os olhos para ler alguma coisa – era o que se comentava.

Uma noite, depois de vagar pela casa até o momento mais frio e escuro, decidi pegar o carro e dirigir até o local.

Eu poderia ficar observando os trilhos no resto de luar, o vento, qualquer coisa que apontasse para um significado. Poderia sofrer um assalto também, mas qualquer coisa, até o silêncio, eu imaginava, poderia aliviar minha mente enlouquecida.

Observava a pedra branca do céu e seus véus negros. Por incrível que pareça, acabei dormindo no carro.

Passei a fazer isso noite após noite. Fiquei até amigo do guarda noturno.

- Sabe o que eu não entendo, eu dizia – Por que motivo não se faz essa coisa toda de madrugada?

Ele foi gentil deixando que eu caminhasse pelos trilhos, horas e horas, sozinho, pensando em que deveria eu me apoiar para seguir em frente, como acordar num dia radiante se tudo era tão absurdo, até que eu retornava para casa e conseguia dormir um pouco.

Em uma dessas jornadas de notívago, eu estava saindo de um túnel, pareci ouvir um gemido. Fiz força para controlar meus nervos, mas meus passos começaram a acelerar.

Fiquei duas noites sem voltar lá. Ao mesmo tempo, uma curiosidade cega me afligia. Que som seria aquele, sinistro e misterioso?

Passei a andar em busca de algo sobrenatural, até passei a dormir na plataforma, esperando o dia amanhacer. Sentia minha mente se esfacelar – o sangue, os gemidos a escuridão, e agora os ratos e os uivos dos cães ocultos, tudo me transtornava.

Por fim, desisti de meu emprego, abandonei minha mulher – assustada e resignada - e passei a dormir durante o dia dentro do túnel, atrás de uma coluna e, o sol derrotado, saía com os morcegos para minha vida. O guarda me alimentava.

De alguma forma, a minha consciência é que fazia a madrugada, era eu que a conduzia.

Uma vez, já no meio dessa marcha de silêncio que tudo esconde, após uma tempestade, ouvi uma voz que parecia me chamar. Vi meu amigo caminhando nos trilhos. Seu torso era cinzento, seu rosto, sem olhos, suas pernas, de substância volátil.

-Venha comigo – ele disse.

Não sei mais que lugar é esse em que tenho vivido.

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