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domingo, fevereiro 19, 2012

Outro

Conversávamos pela manhã. Ele era simpático no início. Um pouco imaturo. Um dia, resolveu sair comigo. Pouco importa que fosse alucinação ou outro fenômeno.

Queria atacar as pessoas, não sabia se comportar. Foi criando situações impossíveis.

Não suportava calado as injustiças, queria ser igual a todo mundo, desafiava os arrogantes, queria mudar o mundo.

No fundo, quem precisa de todas aquelas coisas? Transtornava-o sobretudo a obrigatorieade de saber tudo para ser alguém, de nunca estar pronto. E o fato de tanta gente saber tanto sobre você, estar disposta a julgar e condenar. Você é esses outros que cada um cria.

Tive de começar a ficar em casa. A rua, a chuva, o calor, o trânsito, a multidão, o barulho, miseráveis nas calçadas do século XIX, tudo o perturbava.

Para fazê-lo parar, falava eu mesmo, de modo que comecei a descrever em voz alta o maior número de detalhes externos e internos que se podia imaginar. O guarda-roupa estava com um pequeno arranhão, o cartaz de filme caíra da parede, os vizinhos, janela fechada, foram viajar, a parede branca está com uma mancha, quando acordei pensei nas frases “rainha do infinito”, minha garganta doía, senti-me feliz, devo começar a empilhar os jornais que se acumulam (corrupção e assassinatos), tirei o pó do pássaro verde no cactus, se conseguisse aquele emprego poderia viver mais calmo, e mais cansado, os sinos tocam, os vizinhos já ouvem uma música irritante, o cão, preso, late, aviões, o sol entra pela janela. A banalidade era um antídoto. Meu amigo observava-me com ódio e começava a me assustar. Devia dar um fim a tudo isso?

Por que motivo aquela imagem tomara forma? O que senti eu quando um vulto passou no meu apartamento? Quando estava sozinho? Às duas da manhã, ele caminha pelo quarto.

"Tudo está certo" - tentava dizer a mim mesmo. Cantava um poema de Whitman:

"Da terrível dúvida das aparências,

da incerteza afinal de que possamos estar iludidos,

de que talvez a identidade para além do túmulo seja apenas uma linda fábula".

Olhava no espelho e podia vê-lo.


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O trabalho Outro de Afonso Jr. Ferreira de Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

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