O viajante noturno
Nessa época, os campos ainda não haviam sido cercados. Eu estava na fazenda de meu avô, havia muito gado, um tanto solto, as charqueadas não se importavam com a qualidade. Uma noite, acordei com a correria de peões falando alto, meu avô dando ordens e minha avó choramingando. Eles me mandaram para cama, mas fiquei espiando pela fresta da janela. Alguém vira o “homem de preto” e meu avô dava ordens para vasculharem os arredores.
No outro dia, minha avó, um tanto contrariada, cedeu à minha impertinência: quem era afinal essa assombração?
“Dizem que um gaúcho que viajava solitário à noite, encontrou um menino índio com olhos vermelhos fazendo uma trança no seu cavalo enquanto ele dormia ao lado do fogo. Pensou tratar-se de alguma feitiçaria, mas o menino ria alto, dizendo que era uma brincadeira e perguntando se podia dormir alí para se aquecer. Como o homem não acreditava em assombração, deixou que o menino ficasse. Mas, enquanto ele dormia, aproximou-se e pôde perceber que, dentro da calça, logo no fim da coluna, o índio tinha uma coisa parecida com um rabo. Assim, não pregou o olho nem um segundo, até que o sono lhe venceu logo antes de surgir a manhã. Quando acordou, percebeu que estava no meio de um mato cerrado, e uma mati-pereira gritava nas árvores, parecendo ecoar de todos os lados. Ele ficou perdido assim um dia inteiro e, quando veio a lua, adormeceu. O menino de olhos vermelhos voltou e lhe acordou, oferecendo-lhe algumas ervas e frutos. Como estava com fome, comeu e acabou dormindo de novo. No outro dia achou a saída da mata e bateu numa tapera onde moravam dois velhos. Tentou contar-lhes o que lhe sucedera, mas sua voz não saía, apenas urros horripilantes. Os velhos o expulsaram e ele começou a vagar pelos campos à procura do menino, tornando-se uma assombração.”
Nesta noite, eu não pude dormir. Saí da cama na ponta dos pés. Resolvi ficar na grama do lado de fora da casa, com meu estilingue, fingindo olhar as estrelas, mas com a secreta ânsia de ver alguma coisa. Eu me cobri com um pelego e deitei sobre minha grossa capa de lã.
Acabei adormecendo. Sonhei que um homem barbudo me estrangulava e acordei em meio a tais gritos que a casa inteira veio me acudir.
Nunca mais consegui falar.
Afonso Jr. Lima
O trabalho O viajante noturno de Afonso Jr. Ferreira de Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
O Saci-Pererê é um dos personagens mais conhecidos do folclore brasileiro. Possuí até um dia em sua homenagem: 31 de outubro. Provavelmente, surgiu entre povos indígenas da região Sul do Brasil, ainda durante o período colonial (possivelmente no final do século XVIII). Nesta época, era representado por um menino indígena de cor morena e com um rabo, que vivia aprontando travessuras na floresta.
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