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segunda-feira, maio 19, 2014

Thomas Mann no Brasil

para Willi Bolle

- Dizem que o deus Hermes, quando cruza o caminho de um homem, lhe inspira o desejo da distância - o senhor Mann bebia seu chá no terraço do hotel, com seus óculos escuros pelos quais olhava com visível satisfação o clima límpido e ameno. Ele viera para o Brasil para uma viagem "secreta" de um mês, pensando em manter a disciplina na criação de seu novo livro, já que no sul da Califórnia ele era "tragado constantemente para as atividades solares" - palestras, homenagens oficiais, entrevistas, talvez porque provava que a América era o que todos sabiam. (Além disso, fizera uma cirurgia grave no pulmão). Roosevelt havia dito que ele seria um ótimo presidente para a Alemanha. Parecia simplesmente mórbida a forma como queriam separá-lo da cotidiana humanidade. "A viagem é o maior estudo - dizia meu professor, mas eu viajei para parar o tempo" - ele disse bem humorado, pedindo outra fatia de torta de limão. "Eu sempre desejei ver as coisas de longe" - ele disse, parecendo olhar para mim, protegido pelo óculos. Eu não tinha coragem de retribuir o olhar. Preferia a água da piscina. Bebia mais uma xícara, mesmo com o calor de 25 graus.

Ele falava bem devagar, todos os seus movimentos pareciam estudados, como se fossem parte de uma ópera, mas eu pensava que isso nada tinha a ver com arrogância ou pedantismo, mas com uma cultura europeia que eu jamais entenderia completamente. E, ao mesmo tempo, fazia parte de mim constantemente a sensação de também estar atuando, de precisar saber fazer as coisas no tempo certo, de que existia uma certa medida para tudo. Em especial para "aquilo". "Diga tudo, mas nunca diga 'eu", dizem que Proust afirmou. 

Nada "disso" era falado às claras, naquela época. Quando eu vi a senhora Mann pela primeira vez, em Nova Iorque, fiquei surpreso com sua aparência masculina. Meu pai, que a conhecera muitos anos antes, tinha por ela a maior admiração e justamente a achava feminina, de olhar "forte e sensual". A primeira coisa que me ocorreu, que pode ser mesmo estúpido, era que ela não era feliz. Hoje, penso que era uma espécie de serenidade, um orgulho e um despojamento extremos, por ser o pilar da casa. Ele, ao contrário, parecia-me um pássaro frágil, tinha uma pele branca, olhar terno e um bigode levemente cômico. De alguma forma, nada nele me fazia ver o "deus da filosofia literária", a "Alemanha encarnada", a "saudade de Platão" com que geralmente o descreviam. Ele se sentia livre porque viera sozinho? 

Eu era um jovem jornalista recém formado, filho de um concertista brasileiro amigo da sua esposa. Fora escalado para ser seu acompanhante, principalmente nessa primeira apresentação, por falar alemão e porque, creio eu, meu pai supunha que seria um "trabalho de formação" para mim. Eu tinha lido seu livro sobre Veneza, claro. Queria falar sobre ele, mas minha timidez não me permitia. De alguma forma, ele percebeu?

Fomos ao Jardim Botânico. A vitória-régia, essa flor sexual, lhe inspirou um pensamento lânguido: "A maior parte do meu trabalho, eu devo ao espírito de minha mãe, essa brasileira. 'Oh volúpia, oh inferno - insaciáveis, invencíveis - diz o filósofo." Ele pareceu estudar atentamente uma travesti elegante que passeava por entre as orquídeas. E, entre as altas palmeiras, que parecem querer crescer até o céu: "No centro de tudo está a vontade de viver, o desejo". Lembrei de ter lido sobre o fato de seu irmão ter lhe recomendado a terapia do sono para "tratar" sua "condição".

- Andre Gide publicou em 1924 seu "Coridon", no qual expõe sua vida íntima. Dizem que o filósofo católico Charles Maurras, foi visitá-lo um ano antes para evitar a publicação. Pediu que ele se ajoelhasse e pedisse ao Cristo orientação, e Gide se negou a fazê-lo. "Não se trata de ser ou não rebelde, mas de ser ou não verdadeiro", ele teria dito.

Eu tentava lutar contra o pensamento de que um homem assim amável pertencia a um mundo passado; pensava que o peso que tinha no fundo da alma, deveria ser por ter sofrido ao ver o que considerava a civilização ser devorado pela loucura, que ameaçava queimar tudo. Mas ele seguia em frente. E gostava de falar.

Subimos a serra. No carro, eu tive coragem de perguntar alguma coisa sobre o livro. "Você já leu o Fausto - do Goethe" - ele perguntou. "Lembra-se que o homem vende a alma para conquistar o mundo? Isso o faz crescer, ele é perdoado. Eu acreditava que o que nos salvava de toda a mesquinhez burguesa, a banalidade do comércio acumulador e da burocracia calculadora, era a arte. Eu achava que a arte era essa passagem, essa ligação entre o vir à ser e o atemporal, o real e o abstrato, o sensual e o universal. Pensamento em sentimento, sentir-pensar. Mas depois do horror, eu tenho medo do que pode ser a arte, a ciência, a filosofia. Medo dos faustos fechados em seu mundo". 

Jantamos cedo, caminhamos pelo jardim da casa que nos hospedava. Estava muito animado sobre seu novo livro. Falava em "abismo", "pacto com o demônio", "destino alemão", e eu, mesmo sabendo estar diante da história, começava a sentir um cansaço crescente. "Um intelectual seduzido pelo sono da felicidade, afundado na água suja e parada do pensamento conservador".

Esfriava. Acendemos a lareira. "Minha mãe não era burguesa. Ela nos contava lindas histórias, brincava conosco. Um dia, meu pai mandou embora minha babá brasileira porque achava que ela estava me tornando mole" - ele estaria falando comigo? novamente hesitava - "A paixão é a morte, todo desejo é sofrimento - dizia um pastor amigo de meu pai. Esse ambiente gerou a revolta romântica". 

A segunda garrafa nos deixava meio bêbados. "Um dia eu fui à ópera e lá encontrei um jovem que havia sido meu colega. Vestido com as últimas novidades da moda, cercado de amigos, passava, como sempre por íntimo das artes e ousado pensador. Várias vezes, em público, criticara meus trabalhos, opiniões e até mesmo comportamento, de maneira que eu sabia que, por detrás dessa alegre simpatia, vivia um ainda mais frio ódio ao novo e inveja. Ele tentava fazer com que eu me envergonhasse de ser um pensador, e livre, tentando convencer-me que eu é que era o beijo da morte, já que as pessoas rebeldes, nessa ambiente romântico, eram apenas as que faziam tudo que o costume mandava. Eu simplesmente saí do teatro. Esse Hades convidando à repetição eterna". Ele parou. Nossos olhos se encontraram. Eu o vi poucas vezes depois disso, e não saberia dizer nem sequer se aprendi algo desse homem, a sensação que tenho é de que observei a vida passando com liberdade.

Afonso Jr. Lima

2 comentários:

Egberto Embalagens disse...

É verdade que Thomaz Mann esteve em Paraty-RJ quando criança; junto com seus pais ? ou é lenda ?

afonsojunior disse...

Olá Egberto - é ficção :) abr