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terça-feira, fevereiro 14, 2017

Memórias de Paris

Philos Adelphos, 1840

Ouvi falar dele pelos amigos franceses que o viam perambulando pela rua mergulhado em pensamentos até alta hora da madrugada. Ele era um jovem estranho, com fascinação por livros, bibliotecas e livrarias.
Dizia-se que adorava enigmas e desejava sempre entrar na alma dos outros para adivinhar-lhes as intenções. Assim, cultuava por um lado a criatividade e, por outro, a investigação. Nos Estados Unidos, gostava de cartas, e estudou matemática, mas em Paris, parece ter se isolado numa mansão abandonada de ilustre família, com fama de mal assombrada. Passava os dias com as cortinas fechadas e só caminhava pela rua à noite.
Sua companhia eram os livros, não recebia visitas e escondeu dos conhecidos sua nova localização.
Mas o que eu tenho para contar é que, para observadores melhores que eu, esse rapaz desenvolveu o que talvez os cientistas da mente chamem de dupla personalidade.
Isso tudo foi confirmado pelo manuscrito que nos deixou. Nele, fala de um amigo, que na realidade nunca pode ser encontrado. Esse conto saiu numa revista local.
Mas o que mais me intrigou foi sua reflexão deixada em outro papel amarelado.
Eis aqui o que pensou, anotado, com certeza numa escuridão artificial feita por cortinas e iluminada por círios.

"O tipo de enredo que quero criar nunca foi visto ainda pelos humanos. Salvo talvez no caso de Édipo. Tem a ver com a capacidade imaginativa. Não significa que observando as coisas de muito perto nós as entenderemos. Pelo contrário, seria preciso recuar e imaginar as coisas mais absurdas. Por isso os artistas são cientistas de certa qualidade, mas divago.
Acho que a ambiguidade da percepção é parte de nossos julgamentos. Uma pessoa pode nos parecer de um jeito e, logo depois, seu exato oposto. Vivemos cercados de aparências. 
O tipo de enredo que pretendo criar é baseado em hipóteses (criações do não visível). Porque assim também é a vida, os fatos, como eu disse, são pouco para organizar as coisas. 
O terceiro elemento dessa fábula seria a curiosidade. Ela revelaria o que nos lança à ação, o fato de buscarmos sentido nas coisas que parecem absurdas. Ainda que ela seja essencial às histórias, aqui o passado está na frente.  
Assim, esse enredo seria não algo para chamar a atenção, mas sobre a escolha das perguntas, quando fatos passados em frente aos seus olhos podem não ser vistos. 
Quero ser o primeiro moderno a valorizar a intuição analítica, nesse novo mundo em que a observação científica apodrece entre cremes, máquinas e exércitos. Pois como já se afirmou, as perguntas enigmáticas sobre qual era o canto das sereias e qual nome Aquiles teve enquanto escondido entre as princesas não estão além de toda a conjectura".

Afonso Lima


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