Páginas

Ajude a manter esse blog

domingo, julho 26, 2015

príncipe

será que você encara
o agora que acontece
será que a gente aguenta
isso que deu de
brotar brotar brotar

(se você mentir eu minto
se você contar um conto
se você topar ao topo)

noite de rosas, delírio no fundo
isso que a gente não sabe
de silêncio de mar isso que traga
a paz de ovelhas e chamas na curva de lua

(se eu deixar acredito
se eu sentir transgrido
se eu pegar sua mão viro
príncipe)

verdade de girassóis sem pudor
o mundo pra desvendar
e sem lei felicidade tamanha
será que você encara
voar voar voar

Afonso Lima

a maçã

Praça extinta, aço em caixa
uma mulher pinta sua grama de verde
porque falta água
africanos queimam plástico
que é mais barato
ser feliz é o alvo
vende-se paris

a escola precisa de reforma
vende-se consciência
trabalhos de coca-cola
ser alguém é o alvo
vende-se paris

o mosteiro feito de barro
uma corrente para os carros
se quero vender meu trajeto
ninguém me perguntou

no cairo o verde da praça
também recebeu ofertas
três diabos, sentiu-se pobre
um quase moderno

uma linda manhã
de compras em São Paulo
o escritório vomitou concreto
flores que nunca morrem
quero dar um tempo
quero olhar o horizonte
a maçã para a mais bela
vai gerar a guerra


Afonso Lima

sábado, julho 25, 2015

trilha

nem um azulmetálico para barco
nem uma chuva pesada que céu não segura
o coral a onda o sal pedaço de rocha branca
não: pente solto tenho para poesia

e um mar: talvez vento nem uma tarde
montanha perdida nem pensar perdido: o poste
a concha e a espuma, os bichos o barco
não:

são os chinelos e os teus olhos escuros tão escuros
são os pedaços de palavras em novos rumos
são cantigas escondidas em gavetas de fantasia
feitiçarias inglesas e macumbas teóricas na minha alma invertida
de fronteira europeia e serra mestiça: nem espelho azul
de amarelo descendo enquanto a mente se ilimita
tenho para poesia: um olhar

Afonso Lima

vida animada: um poema de amor

Eu penso sempre nessa
nossa prosa
complicada
que não dá mais

Você me escalava a varanda
enquanto hoje eu acho
que tanto faz

Não sabemos o que é
a nossa aposta
não tem resposta
pra onde mais?

Porque o mundo é de ferro
a treva tanta
de você eu quero
um pouco de paz

[vida de borboletas animadas na marina
também temos nossos segredos
que a verdade é dita pela louca poesia
nada se confirma do que seria dado coisa pura
na simplicidade reta eu ponho desafio de relva o simples livre
boleros de feras na ilha da fantasia]

se você me achar
fica um a um
minha insensatez
só um lugar comum

Você ia até me
dar o Taj Mahal
escrevendo torto
o poema vai mal

Vem me encontrar
em lugar nenhum
era uma vez
a gente era um

Não é só você
eu perdi algo em mim
eu quero o mundo
essa novela é ruim

Afonso Lima

o som de efemérides

Uma obra de metrô descobriu esqueletos
Uma cidade inteira dorme sob efeito de gases tóxicos
Penso nas casinhas antigas ameaçadas por novo cimento
Um enxame de palavras, bacantes anêmicas sentadas à beira do rio escuro
Quem me diz que o concreto é já feito também lança a sorte
Alguém me diz que não precisa do passado e só o futuro lhe interessa

Efemérides
um pouco de folhas caindo sobre mim
caminho pelo bosque de repente
a folhagem ganha um sol novo
um dedo-fruto brota do tronco
o tronco truncado de uma árvore
e o lago coberto de leves folhas

libertar o pássaro-mundo de sua gaiola
os demônios da vingança, a lua banhada na fonte
a água enamorada de Orfeu, em tempos de planejamento
discurso oficial dispersado minha inteligência universal escuta mago
o eu não se impõe
surge
treino um olhar capaz de duvidar
é o mesmo para mim
por onde hei de começar
o mesmo é ser e pensar
tenho um bom coração
mas isso não dá poesia

Afonso Lima


quinta-feira, julho 23, 2015

amor

amor, palavra tão dura
que rima com feijão e oco
amor palavra estranha
coisa suja como massa de pão
amor, coisa de televisão juntos
amor, um passeio na praça
ou quase, um dia de tempestade
amor, briga pelo ar-condicionado
toalha chuveiro e sabonete
arrumar os lençóis
amor, cachorro pra rua
e lavar os pratos, a alma
amor, não entender
favor enviar feedback
o verde, comprar artesanato
amor, nunca verdade
amor, nunca entender
amor, seguir mar adentro
amor, som estranho
amor, olhar pela janela
amor, não resolvido


Afonso Lima


sexta-feira, julho 17, 2015

Costela

Um dia a bela Eva estava dormindo
em algum gramado florido
E o Três-Pessoas pensou: e se daquela costela...
Ou ainda o Zeus junta-nuvens
cravando as garras no peito dos mortais
pediu a Hefestus terra e água para se abraçar
desgraça das mulheres-come pão
tirou o homem do cântaro a tampa e
fatal busca
buraco negro
amor incerto
sorriso incoerente
flor imprevisível

Afonso Lima

quinta-feira, julho 16, 2015

sem bossa

montanha rio serra
onda pedras praias desertas
sol sinatra serenata
não vai ter
neve luminosa verdura
da janela animais espertos áspera água fria
não vai ter
verão briga de papagaios bossa nova pássaros no swing
riscos de branco no céu luz na folha lobo mau
não vai ter
a acrópole espalhou a barbárie
falta melodia o progresso
o sol cansado se esconde em cinza surdo
bicho fora do tom
montanha rio serra sertão
uivo lua branca samba exportação
onda pedras praias desertas
e nossas pegadas
outros jovens amores
não vai ter

Afonso Lima

quarta-feira, julho 15, 2015

Ode à literatura

A puta
(mais um dia
o tambor é meu pastor
pensar pela pele
sinto cheiro de mar
casaco, boné e guarda-chuva
e o poema começa)

A puta é aquela que acarinha do samurai com olhos de berlim ouve o coração
a peruinha da Paulista o nordestino organiza o cimento e entra
na máquina de desaparecer mas pra puta mágica perfumada não escapa nada
na noite de são joão o tâmisa tomou alguma coisa e virou
tietê
coluna que um vento dobra como frágil flor
fugir da esquadria o metro que arrisca

horrible desires
horrible dreams with your eyes
there is song you and me
the sailor´s home is the sea

a moça sentada no banco um todo dia para ganhar seu pastel
alegria alegria de no mangue na horta urbana alguma rima o som do mar de coral já sem golfinho
não é apenas o lírio que dá lira mas o bêbado da esquina o faminto

o sangue do teen que deu triunfo da vida o suor do digitador para tirar a palavra da âncora
é rambô que sambô sentado no banco a literatura não é só altura as palavras formam uma banda
só a tímida cortesã pode por em coro pilantra e pensamento
carta solitária
sono de rua
um pouco de krisna e
outro de rio
libertinagem de sons e tornar confuso o mundo a bobagem que derruba o cimento calculado
deve haver um sentido em tudo por enquanto quero malandragem na Augusta
a puta com caderno de notas registra a dura da polícia ô meu brazil
(tudo vale se no vale a alma se no fim do dia olha a lua ouve um blues e pitadas de oriente)
pedra enluarada pelo novo prefeito platão é gostosão mas meu cafetão é o ritmo
últimas notícias da palavra enfeitiçada pela noite
janela
clarão de esperança
uma garça ali no lago
na orgia da mata nosso elmo oco o passado inacabado aqui se mistura
nossas catacumbas são o metrô e o bicho que sai do amor
acolhe a solidão e a gente descobre uma manhã escondida
muito prejuízo estando tão certo disso e perigo eu por outro lado converso com reis e restos de resistência
eu quero tirar as coisas dentro fora do suporto lugar
a capa do jornal me faz mal sem paciência para pastor
a puta é quem junta
o homem e seus sinos

No Parque da Luz a puta ensina
baudelaire com os sapatos gastos hippie dos jardins do apocalipse
o tambor é meu pastor mais um dia
beijo de palavras tradição de infância prolongada
e tudo para mim tem seu humor

Afonso Lima



terça-feira, julho 14, 2015

luz

acordei
tenho que aprender
dentro do momento tudo que existe
um brilho os fenômenos mínimos
o amor e a guerra (não tem planos)
bebo a pergunta fingir a lenda e o bosque
eu esqueci de saber (o movimento é meu professor)
tudo é estranho e é a infância
a correnteza (não preciso do amor
para estar apaixonado)
acreditar que existe um mar em algum lugar
ópera da superfície boiam verdes e o cinza
roubar drummond e sentir o sol
a imensa pedra sobre nossas cabeças e a grama na avenida
ousar tolice arcana
um tempo para ser feliz
não sei o que é hoje
me entrego

Afonso Lima

segunda-feira, julho 13, 2015

sabe como é.

Caminhando por algum
                                     sonho
        em
                     busca de um castelo dourado
                                                                    encontro dois orfeus
que
querem
um
relatório
                      , sabe como é. mallarmé
quero aprender como faz
paz quero descansar
justiça quero resistir. o discurso apagou tudo
humilhações eletrônicas. uma moedinha para eles
é meu passo
meu amor
minha alegria. uma moedinha
lutar
      contra
                não
                      a bomba (só)
mas o cálculo, a lei, a teoria
o o l h a r 
a mente estreita, a sempre tola satisfação
lutar com unhas e números
cidade à margem da sociedade um silêncio
o século não foi eleito
esconderam o sangue em
favelas
           em ódio
                         frio escura noite
os massacres não ajudaram
é confuso o caminho.
justiça
quero entender tanta gente esquecida pobreza tanta ferida aberta o escuro
que tudo paralisa
quero querer, rambô, povo em paz cobertor novo
arroz e flor na janela. compromisso com a verdade
mil mulheres e homens deitados de branco na grama
um índio estudando e fraternidade entre negros-brancos e brancos-negros
não repressão policial e regime colonial que restam
paz
para o menino armado aquele preso político a cabeça branca
aquele sem terra aquela mulher triste na calçada
coragem e fé penetrando
no mar de histórias, puro olhar e alguma
sabedoria
uma paz no chão do dia
as palavras e as coisas sem violência
no labirinto da lacuna
paz na rua e no nascer do dia
justiça

Afonso Lima

trans

titã de flor no cabelo/ diva fabricada
alinhagem de ferro/ não sabe o ser e não-ser
vingança é tua risada/ lady abraça teu amante
         (o gato preto lento
         mensageiro do outro mundo
         sandália de ninfa no fruto em glória
         a onda a cantar, tapete de flor
         ofélia ofegante nos braços de seu homem
         mostra no espelho a dor de um nome
         algema, terreno, mergulho total no inverno)
árvores, animais e átomos/ a tua dança negra abençoa
brasil jeca acha uma brecha/ mãe devoradora
(quer ser nu iork
e não controla o choque)
abre ala para a nova ela
     

Afonso Lima

oculto

estou no negócio da ambiguidade
secos e molhados de metáfora
torcer tempo, abrir espaço
não tenho compromisso
com o lirismo nem velha forma
de pensar eu quero fera
tudo pode estou vendendo
mar e inútil vento
folha, pedra de rio, lágrima
prosa do asfalto falada pelo sonho
(meu patrimônio é a dor arquivada
e a rima censurada da realidade
ricarda huch em flor amarga)
estou no negócio do ritmo do agora
secos e molhados de liberdade
presença de outro eu e tu
fazendo barulho para o punk solitário
avant-garde de pop art rock
que eu tenha coragem dessa viagem
de conhecer minha paixão e o novo da visão
como condutor o Matador-da-Serpente
a moral e bons costumes sem iluminura
em fotos memória e móveis de acajú

Afonso Lima

marinheiro

teu corpo ficou comigo
como ficou com o poeta
um marinheiro triste
a onda viril de afeto
ah! a gente corria pela Paulista
de mãos dadas, vimos o bonde passar
entre prédios podres e oscar wilde
os brancos lençóis e teus caracóis
lá embaixo, os barcos que vimos
nos olhos um do outro
o tempo tropicalista
o sonho refresca
a testa da besta
pastores cavalos pastando
nos montes um do outro
ah! as ondas da praia
do momento na boca a macumba
eu lembro
como ficou com o poeta
um marinheiro triste

Afonso Lima

domingo, julho 12, 2015

Cante

fios de luz que descem do céu
acordam a montanha
fios de verde descem e sobem
Kant colocou o tempo dentro
(mas ele era demais
falava com os pardais
sobre a liberdade do azul)
o tempo se sonha junto
tenho fome de tudo
não suporto o sempre igual
não sei onde vai estar
o ouro, o tesouro do oculto
colonizado come colonizante
odeio o imperialismo do conceito
o mundo é a mensagem

Afonso Lima

malandragem B.O.

Atirei o pau pra cachorro - to to
chocado, seu arcaico
infame, a drag queen
correndo do pastor
o que do teu vexame?
quanto mais preto melhor

(quero fazer um versinho besta
guerreiro josé domingo de sol
para torcer as palavras
e assim, mostrar o sem nome
desnecessidade do canto cantada)

a seiva é sangue é
machão, mulata, dotô
latas amassadas são ouro
para o velho solitário
Brasil em brasa
o passado não acaba

o índio brota da loira paulistana
do amor das antenas da Paulista
com os pássaros bruscos
(a solidão não vai levar à nada)
o que dizer do recalcado?
quanto mais bicha melhor

(Alguém ocultou o fogo
vende-se corpos
yankee mofado, a preta
não tá na foto
massacre de ideias
mas alguém suspeita
quanto mais gente melhor)

Afonso Lima

sábado, julho 11, 2015

na quebrada

coroné do asfalto
faz assim
aplica a medida
não é nele que dói
no jornal só pretin
mau
a cidade precisa de
office-boy

coroné do asfalto
faz assim
não tá 100% ruim
vamos levando
livro é coisa
de playboy no meu plano
um cano e vou chorar é bom
pra mano
duas horas de busão
vai empilhando
e uma hora
de oração

coroné do asfalto
faz assim
tá ruim de dar escola
se falhar
manda atirar
tem mais presídio
em construção

coroné do mato
também testa sua fé
se falhar
manda atirar
fascismo confusão
não saber
quem se é
(coroné da economia
quer o monopólio
da alegria)

não tá fácil de liberar a verba
nada você é você ganha nada
pretin se é mau pra que policial?
mão de obra barata se joga na quebrada
esgoto e a liberdade de merda
ladrão pobre morre no chão
floresta de aço até a bala tá perdida
de avião ladrão rico viaja loka vida
mas é assim, nada não tem fim
não tá fácil de seguir a escravidão
o fundão já rima, esperança plantada
cada dia é um tijolo - em construção

Afonso Lima

o mar de são paulo

está faltando
um pouco de poesia
moderna leveza
vozes restauradas
um olhar franciscano
pela São Francisco
(porque a revolução
é a ternura)

está faltando
a falta a ingênua
noite a contra-narrativa
do inacabado
um pouco de fé

está faltando
preservar a vida
pastores, pescadores de esquina
falando dos amores e do tempo
por nada

um bosque na Consolação
uma chuva de verão
uma festa de divino
traria consolação
mar na Praça da Sé
resolveria

Afonso Lima

refúgio

tudo que eu quero
é a poesia
de aveia com banana
um sol todo dia
a luta da cama

nuvens rosadas
tudo que eu quero
é bicicleta na garagem
jardim, casa própria
teu corpo acordando você
pra chamar de meu

Afonso Lima

sexta-feira, julho 10, 2015

contramão

A lua muda
e a onda
tem sua verdade
meus pés na areia

eu sigo a música
aquilo que não
contramão
dança de salão

eu não sei sambar
não sou exportação
tropidelícia inverso
(índio não tem terra
mas vende bem)

não durmo no ponto
criolo urbano
é preciso perder tempo
é o erro que nos salva

tanta coisa que não sei
o samba de surdo
sempre tem um horizonte
de cima do viaduto

Afonso Lima

Pop

Sou o saltimbanco da festa
um pouco aventureiro
um pouco assustado
seguindo as pistas da verdade

em carros glamourosos
estendendo a mão
eu não sei quem sou
que bom

somos um ovo de esperança
um ponto onde tudo
começa
sou o povo em roda
e a garganta que grita

(e tudo já foi dito
mas já que existo
o sol pede
bato o tambor
um sonho agora)

O que eu quero é
dança de rua
nua e crua a gente
menos lero-lero

O que é belo
é a busca infinita
linda é a história
que nasce do novo

Afonso Lima

intermezzo

Nosso amor foi
um circo
jogamos tudo e a mágica
acabou num segundo

Nosso amor foi
carnaval
não foi nada mal
e era uma farsa

tumulto de mar
allegro inventado
já sei voar

pelo bosque desfolhado
e frio elogio
de manhã, navego
quando tudo era possível

Afonso Lima

quinta-feira, julho 09, 2015

o tempo

Nos dias de minha infância
eu conheci a exaltação
se há peixes dentro de um vidro do banco
tem as férias em terra virgem
o palácio decaído e o aguaceiro
caramanchões e caminhos para se perder
rosas dos jardins, laranjas brotando, pássaros das árvores
e, em quartos cheios de fantasmas, rosas na parede
pássaros domesticados, macieiras em estilo japonês
o pequeno herói perdido na folhagem verde do parque
entre os lilases e o branco lírio da muralha
desaparecido nas folhas verdes das grandes árvores à beira d´água
brilhantes de sol, descobrindo lendas na floresta
à sua maneira o bravo homenzinho lutava
contra o mundo que o impede de chorar.

Afonso Lima

quarta-feira, julho 08, 2015

São Paulo conservadora

São Paulo é cosmopolita, aberta ao novo e disposta a abraçar a diferença, não?

Um conhecido, que mora há anos em Londres e tem um trabalho consolidado, tenta participar de uma seleção e ouve do coordenador: "Isso não é teatro". 
Um grupo de fora da cidade vai dar entrevista para os jornais e quase não é divulgado porque não se sabe qual editoria enquadrá-los (artes cênicas? artes visuais? dança?)
Um crítico famoso detona os grupos contemporâneos de um festival internacional porque, supostamente, estão abandonando o teatro.

Uma amiga ouve do pai, um engenheiro: "O PT é terrorista". Milhares de camisa-amarela pedindo tudo e sabendo quase nada ocupam a Paulista. 
A capa do jornal repete dia e noite que tem algum problema com a ciclovia, foca-se no que deu errado. 
Pergunto para uma amiga, que mora há anos na cidade: "São Paulo é mesmo uma cidade conservadora?"
"SIIIIM!" - ela responde.

Como propor aproximações para dar conta de uma realidade como essa?
No centro de tudo, o fato do acúmulo de riqueza num prato da balança, importando modelos estrangeiros pela metade - shopping, mas não pluralidade jornalística. O antigo hábito da mistura de classes em locais como o centro antigo foi substituído pelo medo dos condomínios fechados fora da cidade. 

A concentração cria espaços fechados e normas rígidas: símbolos de pertencimento, formas de controlar o medo (no clube, babás têm de usar branco, para sabermos quem são as babás). E pior, a luta dos excluídos uns contra os outros pelos parcos recursos, a luta para anular o outro, para "fazer parte". As elites que detêm a força (de decidir) e o argumento (para desmoralizar a contradição) não querem ouvir vozes dissidentes.

(Precisamos lembrar que a "autoridade" se estende até mesmo ao segurança terceirizado e ao policial que podem te tratar como lixo. Da mesma forma a esquerda pode ser reacionária se fixada em terminologias inoperantes ou num modelo teórico que só vê "modos de produção" e "desenvolvimento"). 

Isto está mais claro quando a vanguarda idiota, que não tem o medo da reação, obedece ao clima criado e se joga em aventuras irresponsáveis como xingar pessoas em restaurantes ou gritar a sindicalistas nas ruas que eles são "vagabundos". (Um costume é aceitar lógicas as mais simplistas, mas que conservam as antigas classificações). Chega-se ao ápice da barbárie quando alguém cria um adesivo com a presidenta de pernas abertas para o tanque de gasolina do carro. 

Por outro lado o capital (não nos iludamos com a sutileza de sociedades complexas) é uma força de inércia: são patrimônios acumulados, leis estabelecidas, rendimentos planejados... Um secretário é pressionado a aprovar uma lei que vai contra tudo que acredita porque "temos de ceder ao que já existe..." Como a maioria dos juízes fazem parte dessa classe, e, com exceções, vivem seus hábitos de clã, é recorrente o olhar conservador, pensando antes de tudo no benefício dos grandes proprietários e do grande empresário (o que justificaria as constantes e inflexíveis remoções e desocupações, como se o escândalo não fosse uma parte da cidade sem direitos).  

Lembro também que a cidade de São Paulo concentra cerca 20% dos mortos e desaparecidos políticos registrados no Brasil, ou seja, a repressão fui muito mais forte aqui. Aqui também a riqueza foi uma "desculpa" para que uma parcela da população cedesse politicamente. Isso persiste: por que devo participar de algo se posso ir para Miami?

Uma das nefastas heranças da ditadura foi o isolamento da universidade e um campus distante (antes da tática atual do sufocamento econômico). Existe o peso dos racionalismos parciais, os saberes de longa tradição, que não vivem no atrito com as ruas. É claro que o que mais precisamos no Brasil é de professores e pensadores, mas os intelectuais não podem ser quem desvaloriza todas as outras formas de saber.

(O velho Kant, provavelmente estava muito preocupado com o determinismo mecanicista quando imaginou a arte uma rota de fuga, desinteressada, só tendo interesse em si mesma; não ajuda o pós-estruturalismo onipresente na sua luta contra a linguagem que nos subjugaria, o fascismo da gramática e a liberdade como literatura gratuita; a literatura, essa coisa fluída, talvez queira também hoje redescobrir as verdades que podem nos guiar na confusão).

Se não criamos espaços de proteção para que grupos marginalizados e ideias novas possam pautar uma contra-estrutura, afundamos na inércia. Se quem legitima segue leis antigas, eu vou produzir o que agrada. (A elite da colônia quase sempre é mais rigorosa em preservar uma Europa do passado). 

Ainda, a multidão, transformada em anônima pela centralização do poder e falta de participação, assim como por políticas urbanas que a vêem como massa (sem espaço público) e indivíduos (no carro), passa a ser motivo de fechamento, mais ou menos como um jovem coloca fones de ouvido se o exterior o perturba. 

Uma amiga estrangeira comenta: "Em São Paulo, justiça social não é um consenso. Em qualquer país democrático as pessoas teriam vergonha de ver tantos moradores de rua. Aqui, querem capitalismo sem democracia". Lembro de um urbanista que fez um projeto que afetaria milhares de pessoas e me repetia: "Mas eles serão recompensados". É fácil aceitar uma pseudo-racionalidade sem que ela precise olhar o outro nos olhos. 

Mas é das ilusões que a sociedade cria de si mesma - da vergonha - que nascem as contradições e o barulho dos excluídos força passagem. Onde há emprego, há brechas para formação e direitos podem ser exigidos. Portanto, os jovens estão na internet, estão no passe-livre, estão contestando com dados e leis à questões "há muito respondidas". E, é claro, existem outras elites dispostas a investir em novidades, como as ciclovias. 

O maior gesto conservador de São paulo é a acomodação, a incorporação, o fato de que não apenas as maiorias-minorias têm dificuldade em negociar suas demandas, mas que recebem migalhas para desbaratar sua fúria. Isso vai tão longe como "movimentos" de bairros periféricos terem sido comprados para votar em conselhos com o executivo em projetos que prejudicam sua comunidade. Ou como não levar adiante a punição dos responsáveis pela ditadura. 

Será que a própria "diferença" não pode virar um nicho? Os urbanistas sabem muito bem o que fazer, mas nada o que propõem é feito. Falando do imperialismo latente no conceito de orientalismo, Edward Said diz que se "escondeu a disputa" sob a qual a estrutura foi criada.  
Ele também conta como no Cairo alternam-se arranha-céus e prédios em ruínas. Também São Paulo é cosmopolita e, ao mesmo tempo, arcaica. 

Afonso Lima

terça-feira, julho 07, 2015

antropologia

uma andorinha, só não faz verão
uma andorinha. só não faz verão.
uma andorinha só não faz. verão!
uma andorinha só. não faz verão

AJr

segunda-feira, julho 06, 2015

Verde reaça

Ele nasceu na grande classe média paulistana, porque até sair do bairro Higienópolis você anda (de carro) pra caramba. Os homens de negócio só falam com homens de negócio. Leitor de uma imprensa privada patrocinada por Deus sabe quem. O verde reaça tem ótimo coração, mas nasceu num meio ambiente tóxico e perdeu a ligação com o solo. Lembrar do que aconteceu com o PV da Europa.

O homem verde é um alienado cheio de fúria idealista e revolta iconoclasta.
O verde se tornou uma desculpa para plataformas políticas que, no todo, são conservadoras?
O Eduardo Jorge fez 80 km de ciclovias. O Haddad fez 300km. Tudo bem que o Eduardo convenceu um Serra, da turma do senador que criticou as ciclovias, "delírio autoritário". Até os gatos usam armas químicas para enganar os ratos. 

O Kassab ia fazer um lindo túnel e parque linear de 3 bilhões de Reais, com a bela roupagem de dar casas para quem mora no rio e proteger a várzea... Mas e as 10 mil pessoas, estavam satisfeitas de ir morar no fim do mundo? E quando as casas estariam prontas?

Ainda: com 3 bilhões se faria 25% do metrô que tem hoje. Com 7 bilhões do Rodoanel, o dobro. Ou seja, uma revolução nos transportes. Ao invés disso, acomoda-se o sistema carro-obra-condomínio com um parque de compensação que o Eduardo Jorge lutou muito pra ter.

Esse é outro perigo de São Paulo. Como a direita é cobrada, dá esmola, resolve-se o caso específico, o puxadinho.

E o verde reaça pode ser apoiado por um banco, pode apoiar o conservadorismo UDN, porque verde é verde. A Dilma tem ministérios demais, a Dilma gastou demais, a Dilma deu ministério para o Kassab. Leia-se: "Eu pago o Bolsa Família". É o mesmo discurso do mais superficial leitor da Veja.
Como se o caso verde estivesse fora do velho e bom modo de produzir e de gerir: é algo que não tem a ver com ideologia, capitalismo, neoliberalismo ou FMI. É uma ilha verde.

Como muito bem diz Naomi Klein, a crise ecológica mostra com perfeição os limites da atuação individual e a urgência de uma esfera pública que, antes de tudo, contenha a fome da iniciativa privada e seja independente de seus interesses. Sem essa reflexão, vira feira de variedades.

Afonso Lima

Para Mário

Mario
Eu não tenho natureza e amor pouco
para fazer poesia
Te ofereço essa ausência, um zero
neste deserto de ideias,
- local seco e arejado,
ali apertam-se os malditos
entre o céu escuro e o viaduto -
a tua esperança e festa me refrescam
Mario, a máfia tomou a cidade
sol, domingo, restaurante, a boneca
roda orgulhosa e fria, o tiro
onde dormem os servos cansados,
sem lei, sem praça para crias macias
a beleza se prostitui com ópio próprio
o pobre tem vergonha de sua miséria
o rico ensina o desperdício
o rio já sem sereias a pura noite
a cidade em brasa e seu tormento
só um coro de pardais luta e acredita
mas é sempre mais que isso
e as crianças correm e caem
é imprevisto

Afonso Lima

domingo, julho 05, 2015

Elite mimada

Estou aguardando o sinal para atravessar a rua, ele abre para mim, um carro para sobre a faixa de pedestre.
Vejo a CET (responsável pelo tráfico) parar um motorista que fala ao telefone enquanto espera abrir o sinal. Outro logo adiante.
Novamente, tento cruzar uma avenida, lá está um carro sobre a faixa.

(Não ajuda o fato de um sinal entre Brigadeiro e Santos ficar apenas 4 segundos para pedestres, ou seja, carro é preferencial; carro é a desculpa para grandes obras e um símbolo que mostra seu status).
No cinema, um jovem fica passando mensagem de texto durante o filme, peço para desligar a luz, ele volta a fazer mais três vezes, até comenta a mensagem com um amigo, e duas pessoas pedem para ele calar a boca.
Outro dia, dois jovens comentam o filme todo em voz alta como se estivessem no sofá da sala. Nem sei quantas luzes já vi brilhar no escuro...
Lembro de um jovem que, em conferência de um grande especialista norte-americano, fez um comentário rindo com sua colega. O palestrante interrompeu a fala e pediu silêncio, no fundo porque estava de fato se comunicando com a platéia. O rapaz desce, pega uma garrafa de água da mesa, faz uma espécie de performance. Não aceita a advertência. É um aluno que "paga" sua educação.

Ontem, por acaso, liguei a TV num canal que passava uma novela. Um rapaz alto e bonito chegava em uma festa com uma "gata", ameaçava outro jovem (pobre) e depois o "perdoava" cantando sua namorada. O dono do mundo.

Uma amiga estrangeira comenta que fica horrorizada com a classe A do Brasil. Só pensam em séries de TV e Miami. Se vestem com ostentação, como se estivessem sempre numa festa. "Na Europa, gente assim é vista como fascista". Lembro de um relato de um inglês no século XIX que afirma que os "brasileiros" (senhores) não trabalham, já que desde a água até os excrementos são administrados pelos escravos.

A juíza que cuidou do caso Thor Batista, que matou um homem correndo à 120 km, afirmou que ele era "blindado", nem sabia quantas multas tinha na carteira, já que era só alguma secretária pagar. Mas se até o governador não é cobrado pela falta de investimento no sistema de água (piedosamente rebatizada de "crise hídrica")...
Num grupo do Facebook, ameaças a quem defende o prefeito Haddad - "militante pago do PT" ou "ridículo vivendo no mundo da fantasia". Entender o labirinto da política atual exigiria informação plural e vontade de duvidar. Nada é mais fácil que um clichê.

É toda uma classe de pessoas que podem desprezar o mundo, porque desde pequenos estão acostumados a ter uma empregada para lavar seus pratos. Uma reportagem mostra que algumas escolas privadas tentaram incluir um método japonês no qual as crianças aprendem a limpar e organizar seu ambiente, para desenvolver responsabilidade (como fez a torcida japonesa nos estádios da Copa). Os pais foram reclamar que seus filhos não eram obrigados a fazer isso, já que estavam pagando...

Algo mudou desde a ideologia religiosa que pregava esforço e resignação; agora você vive sozinho, é free lance, o primeiro mandamento é ter um corpo sarado. Nossa elite não quer regras e leis, que servem para todo mundo, quer ser "livre". Desde escolher não pagar imposto até ir contra as leis de trânsito. Ainda está no século XIX, no qual a "raça superior" tem o direito à "conquista" por ser "superior", o que talvez seja a ideologia subterrânea do capitalismo. Isso é o país no qual a "modernidade" veio junto com a ditadura e a classe alta nunca teve realmente de "ser ameaçada" pelo comunismo, ou seja, os direitos humanos são uma doação. Tristes trópicos sem igualdade...

Afonso Lima

sexta-feira, julho 03, 2015

A divisão

Estou no cinema prestes a assistir um filme francês; eu e uma moça começamos a conversar; comento que fiquei sonolento em alguns trechos de "Made in EUA" do Godard, apesar de adorar o filme, deve ser sono acumulado; ela me diz: "Mas é que é preciso conhecer filme de arte, você conhece?"
Então imediatamente eu penso isso:  se você não conhece uma pessoa é mais fácil imaginar que ela é desinformada. Como chegamos a esse grau de esnobismo?

Um funcionário da minha imobiliária está no prédio e aproveito para passar alguns problemas que o edifício está tendo. Ele repete toda hora - "mande um email", como havia feito muitas vezes. Eu acabo deixando escapar uma certa irritação, mas ele diz: "Se eu falar não é a mesma coisa". 
Lembro então de um relato não lembro se em jornal ou livro. Alguém comentou que nos EUA os funcionários do balcão de um aeroporto podem resolver tudo, e que aqui a primeira coisa que fazem é chamar um supervisor. 
Isso deve dizer algo da nossa sociedade...

Ainda: em um evento com o ministro da cultura, da Bahia, ouvimos ele dizer: "Quanto mais nos afastamos do centro de São Paulo, mais as pessoas são feias, excluídas, maltratadas". Levo um choque. Mas será que devemos maquiar isso? (Um segundo momento, claro, é criticar os modelos de beleza, mas vivemos sob o império do sexo, a principal atividade da burguesia é seu corpo.) Devemos aceitar a imagem de meca da meritocracia? E será que Salvador tem, afinal, outro fator de igualdade, a pessoa não é apenas lucro e imposto?

Ao mesmo tempo, ele foi até a Brasilândia, ouviu as pessoas talvez pela primeira vez. Foi cobrado justamente porque os outros sequer ouviam as demandas e faziam do governo um intermediário nos negócios. Numa cidade onde até mesmo o nome "patrimônio cultural" parece uma ameaça ao sistema imobiliário e "tombamento" é um crime.

Grande parte da população dos bairros mais afastados mudou: está na faculdade, veste-se bem, sabe usar as redes, agita. Mas vamos esconder que São Paulo recebeu os trabalhadores pouco qualificados (enquanto a censura evitava greves) e deixou seus descendentes vivendo em bairros abandonados e violentos? O imaginário de uma cidade como São Paulo (complexa, o que permitiu mobilidade social e afastamento de padrões rígidos) infelizmente é de "informados" e "informáveis", dirigentes e dirigidos, "locomotiva" e "carga": estranho mesmo a palavra "periferia", hoje apropriada como forma de autoafirmação. Os herdeiros do imaginário dos barões de café pensam que tudo pode seguir como está, é o fascismo do esquecimento. 

A divisão horrenda do Brasil está cobrando seu preço: o deputado mais votado é alguém que "defende o consumidor", ou "defende a família e prende o bandido" porque essa é uma política e uma "proteção" compreensível, mas simplista. Agora, vivemos simplesmente um Congresso quase absolutista (pequenos partidos pós-ideológicos e um presidente com uma agenda conservadora e disposto a usar todas as artimanhas possíveis para curvar a lei ao interesse), um total desprezo pelo que a sociedade pensa, ou, pior, a apropriação da política por discursos pouco racionais e pelas piores escolhas. 

Acabar com os direitos do trabalhador, ameaçar os índios, prender no Carandiru os adolescentes infratores, entregar o petróleo... A falta de educação, que reforça preconceitos, chegou ao poder e vai reforçar a falta de educação (excluir o debate sobre gênero e homofobia, por exemplo). Ao mesmo tempo, é a ditadura do discurso, na qual pessoas sem casa se tornam "moradores de rua". Na linguagem do realismo-editado se mina a autopercepção da maioria oprimida. Dizem que uma das formas de Portugal dominar o Brasil, continental, foi evitando as estradas e a comunicação entre as regiões...


Afonso Lima

quinta-feira, julho 02, 2015

o eterno

O eterno quase, comédia da visão
não existe o corpo puro
sem metafísica - a pobreza
da linguagem é também pensar
por uma filosofia do olhar
que Pascal passe manteiga no pão
a literatura, volúvel beldade
gosta mesmo de bares, festas e prostíbulos
o esnobe saber derrotado
um pouco de Proust e muito mundo
Kant para pensar o cádmio e o mercúrio
no rio, a água podre que a africana bebe
a escola sem janelas e a chuva sobre o caderno
o conhecimento, esse vermezinho brilhante
agarrado às paredes, na escuridão
o bicho-vivo da vida e a cor do pintor
tudo muda, e assim o eterno

Afonso Lima